8 ideias equivocadas sobre o que é escrever para crianças

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São já muitos, muitos anos, lendo livros para crianças. Lendo livros de todo tipo e gênero, para todas as idades, torcendo cada vez que um livro consegue me comover ou se destacar pela sua originalidade. Em todos estes anos e principalmente depois de ter começado meu blog, tenho recebido muitas solicitações para ler a obra de escritores que querem começar seus passos nos livros infantis.

David Saracino
David Saracino

Lamentavelmente observo uma série de “maneiras de escrever pensando nas crianças” que tem origem em lugares comuns desde os quais é difícil criar novos livros. Por isso me animei a escrever este pequeno texto. Registre-se que sou daquelas que pensa que escrever desde o “não” é sempre mais fácil que desde o “sim”, isto é, não sei , por exemplo, se me animaria a escrever um texto com o título 10 boas ideias sobre o que é escrever para crianças.

Aqui vai esta seleção. Pelo menos provocará um sorriso de cumplicidade de alguns. Tenho que dizer ainda que estas ideias são de originais que ainda não foram publicados, mas também – e muito – de livros publicados e em circulação.

Charlotte Gastaut
Charlotte Gastaut

1. Meus filhos adoram as histórias que lhes conto antes de dormir

Sendo assim, todas as crianças devem adorar igual, não? Isto se aplica também aos avos que inventam histórias, aos professores que fazem o mesmo nas aulas, e em quase toda situação que tenhamos as crianças sob controle, seja porque tem que estar (na escola), bem porque precisam desse momento (pais antes de dormir). Esse momento de cumplicidade absoluta e de afeto não se produz de forma tão espontânea quando a historia está no papel e outras crianças em situações totalmente diferentes à leem (numa biblioteca, numa livraria, um adulto lendo o livro). No relato espontâneo há muita tolerância em relação às imperfeiçoes da historia, aos absurdos improvisados ou, simplesmente, ao sentimentalismo.

2. Os contos para crianças devem trazer uma lição

É uma velha demanda da pedagogia, o aprendizado da leitura e a escola. E já que aqui estamos que pelo menos se aprenda alguma coisa. Por esse motivo sempre se pensa na mensagem da história e se tenta coloca-la da forma mais clara possível. O literário? deixa pra lá, eles são pequenos, melhor que eles tenham muito claro o que é correto e o que não é para poder reconhece-lo na vida real. De acordo com este principio, autores, editores e professores dão prêmios a livros onde se pode reconhecer claramente qual é a mensagem, onde estão os “valores” e de que maneira a leitura desse livro pode contribuir na formação de uma boa pessoa.

Miguel Porlan
Miguel Porlan

3. Escrever para crianças é mais fácil do que escrever para adultos

Claro! A final eles tem menos vocabulário, sabem menos e até mesmo tem que escrever menos palavras, basta com juntar umas quantas coisinhas e pronto, lá está a história. Escrever as coisas de maneira simples é, de modo geral, mais difícil que não ter que quando não há que escolher palavras ou níveis de leitura. Quando não se leva em conta isto proliferam os livros cheios de frases simples, muita ação, muitos diálogos (“para que complicar com descrições!”), escassa experimentação e temas mais do que batidos.

4. Tenho uma ideia genial e preciso de um ilustrador

Liz Pulido
Liz Pulido

Em geral, uma ideia não é uma história. Repito: uma ideia não é uma história. É difícil fazer entender esta questão à escritores que querem esticar uma anedota, basear uma história numa piada, ou simplesmente, ter um momento de genialidade. Uma história tem muitos níveis, ainda que não sejam vistos, e implica numa profunda reflexão sobre os personagens, as situações que vivem, o tempo, o espaço… Por isso muitos pensam que o que eles precisam é um ilustrador que desenhe o que lhes falta. Mas se um ilustrador não tem a consistência necessária numa historia será praticamente impossível interpretá-la.

5. As crianças pensam em abstrato

As crianças adoram a fantasia! Esta é uma ideia que leva muitos escritores a descuidar da verossimilhança. Afinal, se os bichos falam, tudo é possível. Alguns exemplos: uma menina que conversa a noite com o seu travesseiro, um menino cuja bicicleta o ajuda a superar os perigos, uma avo que voa, as letras de um livro que fogem para viver a sua própria aventura, etc. Em muitos casos, o autor sequer se preocupa em justificar essa fantasia e, muito menos, pensar no porque essas coisas acontecem.

6. O livro ideal para crianças tem ação, suspense e aventuras

Mariana Massarani
Mariana Massarani

Quando lemos as contracapas dos livros temos a impressão de que o mesmo modelo se repete sem parar. Por exemplo: algo desapareceu (um quadro num museu, uma criança, alguma coisa na escola), ou mudou o seu comportamento (a padaria fechou inexplicavelmente, uma menina de uma turma não fala mais com as suas colegas) e toda a trama gira ao redor desse suspensa. A partir daí, é uma sucessão de corridas, reuniões secretas, se inventam hipóteses, se encontram as soluções do mistério. É, sem dúvida, uma maneira excelente de criar futuros leitores… de novelas policiais.

7. Sou contador de histórias e as histórias que invento as crianças adoram

Podemos relacionar este item com o 1º, com a observação de que, na atualidade, tem muitos contadores de histórias publicando suas histórias e até recebendo prêmios por elas. O contador tem uma pratica com as estruturas narrativas que lhe ajuda na hora de inventar uma história. Mas, um conto contado, nem sempre funciona quando é escrito e muito menos quando é ilustrado.

Nathalie Dion

Nathalie Dion

O espaço imaginário que o contador propõe quando conta a sua história, cada criança o realiza de uma maneira e essa é a maravilha da tradição oral. Ver no álbum colorido a interpretação que o ilustrador deu empobrece, muitas vezes, uma historia com matizes , no geral, o texto fica reduzido a uma anedota que nem sempre se entende.

8. Não sei contar histórias mas tenho muita sensibilidade

Sim, e as crianças são seres de muita sensibilidade. Isto quer dizer que às crianças vamos falar da lua e das estrelas, do mar e do vento e tal vez das nuvens, porque são objetos cheios de romanticismo e as crianças adoram os momentos poéticos. E neste caso não precisamos de nenhuma história porque “não é verdade que falar de contemplar o céu estrelado e escrever isso num livro, as crianças vão adorar? E com isso vamos ajudar a que eles desenvolvam a sua imaginação?” Sim, sem duvida, e se ainda acrescentarmos que não pode se jogar o lixo na praia, teremos o livro perfeito. É isso!1Texto originalmente publicado no blog da autora, em 2/6/2014.

Tom Gauld

Tradução Dolores Prades

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  • Ana Garralón

    Ana Garralón trabalha com livros infantis desde finais dos anos 80. Colaborou como leitora crítica para muitas editoras, realizou oficinas sobre formação e incentivo à leitura e livros informativos em importantes instituições. Escreve regularmente na imprensa. Publicou Historia portátil de la literatura infantil, a antologia de poesia Si ves un monte de espumas e 150 libros infantiles para leer y releer (CEGAL, Club Kirico, 2012 e mais recentemente Ler e saber: os livros informativos para crianças (Pulo do Gato, 2015). É membro da Rece de Apoio Emília. É autora do blog http://anatarambana.blogspot.com.br/.

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6 respostas

  1. Quando leio, as vezes mudo a voz para dar sentido e vida aos personagens. Fazer as crianças sentir as duferentes emoções… quando invento algum texto procuro inserir um personagem parecido com elas e sempre histórias alegres e que mantenham seu interesse.

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