A famosa invasão dos ursos na Sicília

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O melhor e mais belo livro juvenil publicado na Itália e um dos
grandes clássicos contemporâneos do livro para crianças e jovens.

Ursos capa

Esta obra-prima escrita e ilustrada por Dino Buzzati, traz para o universo infantil os dilemas e as grandes questões de um mundo pautado pela violência e pela desigualdade. Porém, as muitas alusões que permeiam a obra, dada sua contextualização e seu esplêndido tratamento literário, não a tornam menos atual; ao contrário, a mensagem pacifista e contra a tirania fazem dela uma obra exemplar para leitores de todas as idades.

Ao escrever seu livro para os pequenos leitores, Buzzati atenua o seu olhar pessimista sobre o mundo, mas mesmo assim não os poupa do enfrentamento com algumas das grandes questões humanas e para tanto aposta numa infância inteligente e capaz de enfrentar grandes questões.

Talvez tenha sido esta convicção e aposta, na contramão da concepção de infância de sua época, que provocou o descaso e o pouco reconhecimento crítico deste livro no seu país. Mas não só, pois A famosa invasão dos ursos na Sicília1 responde aos principais critérios do que chamamos hoje de modernidade no livro infantil e como tal pode ser considerado um grande precursor desta tendência de ponta. Fora do seu tempo, a obra de Buzzati foge aos padrões da literatura infantil tradicional.

Historia do livro

A primeira edição deste livro data de 1945, porém existe uma versão de 1942 publicada no suplemento infantil do Corriere de la SeraIl Corrieri del Piccoli.

Ao receber a encomenda do jornal, Buzzati disse:

Gosto da proposta, mas escrever para as crianças é muito mais difícil que escrever para os adultos, já que, mais ou menos, sabemos como eles pensam.

/…/ a conversa com os pequenos não é simples nem óbvia, pois a sua imaginação tem plena dignidade e é preciso nutri-la e surpreende-la.2

Esta consciência e respeito frente a esse novo destinatário ao qual o autor vai se dirigir é um aspecto central da obra de Buzzati. Porque é partindo desse conceito que o autor engancha o leitor por meio do aguçamento de sua curiosidade, de um diálogo em várias vozes – uma delas muito cúmplice – o uso da imaginação e da fantasia, a diversidade de gêneros, enfim, um conjunto de estratégias que constituem a riqueza literária do livro.

A história dos ursos tem a sua origem num pedido de um desenho dos seus sobrinhos, que gostavam de vê-lo desenhar. Ele tinha esse material guardado e foi a oportunidade de aproveitá-lo. Mas, não há gratuidade nos ursos, recorrentes no imaginário de Buzzati3, pois remetem às suas origens: a forte presença em toda a sua obra da geografia montanhosa, dos picos nevados de sua região natal que, para ele, aludem à pureza e à energia vital e são a base que uma vida em harmonia e respeito entre homem e natureza demanda.

ursos2

Em A famosa invasão dos ursos na Sicília a presença deste imaginário toma corpo e se materializa de forma explícita na contraposição entre a vida na montanha e a da planície. A natureza intocada de um lado e a civilização corrompida do outro. Um certo maniqueísmo aparente se dilui no momento em que os ursos não resistem aos apelos de luxo e de poder da sociedade dos homens. Ingênuos, puros, como a vida na natureza, os ursos despreparados são rapidamente contagiados pelos vícios e costumes. Até que no final, abrem mão dessa vida e voltam para a floresta nas montanhas.

Vale lembrar o papel que a figura do urso desempenha no imaginário da literatura para a infância. Temos desde Pele de urso, dos Irmãos Grimm, na melhor tradição da época medieval4, até a figura moderna dos Teddy bears (ursos de pelúcia) que povoam a literatura infantil.

Os ursos de Buzzati, no entanto, são de verdade, da espécie Ursus Spaeleus – conhecido urso das cavernas – cujos restos foram descobertos nas montanhas da Europa, a 3.000 metros de altura. Eles eram grandes, fortes, com mais de 2,5 metros de altura.

Só no final, no momento da ruptura com o mundo dos homens, é que eles se tornam “ursinhos”, talvez uma invocação dolorida que parece querer segurar a própria infância. Daí mais um sentido metafórico que o texto de Buzzati contém, pois na contraposição entre mundo das montanhas e da planície, está contido também a contraposição entre a infância e o mundo adulto.

A primeira versão era composta por dois contos distintos, publicados em 11 capítulos divididos em duas partes no “Il Corrieri del Piccoli”:

  1. A famosa invasão dos ursos – do Nº 1 (7/01/1942) ao Nº 7 (18/02/1942).
  2. Velhos ursos, adeus! – do Nº 14 de (8/04/1942) ao Nº 17 (29/04/1942).

O fechamento do jornal deixou esta última parte incompleta. A semelhança da temática no título e nos personagens entre as duas versões encerra no entanto algumas diferenças significativas. Buzzati manteve a mesma impostação fabular, mas muda de Maremma para a Sicília, o grão-ducado, assim como acrescenta uma parte em versos e desaparecem algumas ilustrações.

Além disso refez para o livro muitos episódios, amenizando o tom opressivo que na versão em capítulos certamente a guerra impôs (Milão foi bombardeada em agosto de 1943). A primeira versão foi escrita sob o peso de uma atmosfera de derrota iminente e da extrema incerteza de um pais sem rumo. Enquanto que a revisão do texto publicado em 1945 coincide com o final da guerra. Dois momentos distintos que marcam as diferenças mais significativas entre as duas versões.

Estrutura da obra

O livro foi escrito e ilustrado em 4 meses. Ele é dividido em 12 capítulos e 2 partes iniciais que tratam dos personagens e dos cenários. Narrado por um adulto, onisciente, cuja incursão pela fábula parece absolutamente natural, o gancho e a cumplicidade com o leitor se estabelece de saída. Mas Buzzati não faz um relato linear, utiliza várias vozes e vários tempos o que torna o livro estruturalmente altamente sofisticado, sem ser complexo, e accessível a muitas maturidades leitoras.

Mais do que a sua estrutura, o que remete à fabula é a atmosfera criada por Buzzati que, de acordo com Francesca Lazzarato, se resume nos seguintes aspectos:

  • Tempo remotíssimo e lendário, tempo da alegoria, um tempo sem tempo.
  • Localização – Sicília – totalmente inventada e estranha (parecida às ambientações dos irmãos Grimm, Bechstein…).
  • Presença de um mago.
  • Viagem iniciativa e premiação ao final.
  • Monstros e bichos do universo infantil.
  • Animais antromorfizados, falantes (os ursos guerreiros de Buzzati muito próximos dos Berserk – montanheses cheios de vigor e ingênuos).

Os animais de Buzzati são ursos de verdade, que se vestem como os humanos e assumem os símbolos e hábitos humanos; nesse sentido, Chiara Lepri diz que o autor amplia o modelo de Esopo, imprimindo um lado de mistério e surrealismo perturbador. Eles atuam como caminho para a salvação. Daí, esse mundo onírico-surrealista da obra de Buzzati.

Com a fábula, Buzzati usa a ótica do mundo animal para colocar o foco na contradição de sua época, polarizando o povo da montanha “os ursos” e o da planície “os humanos” corrompidos pelo luxo, pelo poder e movidos pela traição. Com este recurso ele convida a uma reflexão sobre o comportamento humano. E assim os animais são um meio para chegar a outro lugar, uma sátira à civilização contemporânea.

Com muita elegância, ironia, riqueza de recursos literários, misto de fábula e literatura fantástica, Buzzati constrói uma narrativa rica e sofisticada que se situa na linha de frente da literatura infantil já produzida.

Dentre os pontos altos podemos destacar:

1. Sistema linguístico-narrativo complexo e o uso de diversos gêneros: fábula, poesia, prosa, crônica jornalística, teatro.

2. Diversidade dos códigos narrativos: verbal, icônico, musical.

3. Diversidade de registros (alto, baixo, popular).

4. Ilustrações pouco tradicionais que conversam, ampliam, dilatam o texto escrito.

5. Traço contemporâneo, lúdico, moderno, antecipatórias. Buzzati usa as imagens como hipertextos.

6. Riqueza das referências aos contos fantásticos e a personagens fabulares presentes no folclore e no patrimônio popular: Gato Mammone, Serpente dos Mares.

Tudo isto feito sem perder a simplicidade, a fluidez, o livro é escrito com leveza e com tons épicos. Sem o menor traço de infantilização, com um grande respeito com o leitor, um cuidado com os mínimos detalhes que mostra o trabalho artesanal do processo criativo de Buzzati (tanto no texto como nas imagens). E sua engenhosa narrativa. Buzzati põe à serviço do jovem leitor uma enorme riqueza de referências, temas, estilos, gêneros. E para isso utiliza como estratégia narrativa a primazia da imaginação e da fantasia, que possibilita a fruição imediata, o anzol que pega o leitor criança.

A famosa invasão dos ursos na Sicília é uma história de coragem autêntica, de amizade e generosidade, onde no final a vida plena fala mais forte que o luxo e o poder. Ótima literatura, construída com materiais nobres, sem descuidos. Buzzati “inventa uma língua para contar a sua história, que é o resultado de um códice. Ler esta língua significa fazer uma experiência de leitura completa e multissensorial.

Há uma intenção de educar as novas gerações para o respeito com a natureza. E, como outro escritor italiano, Gianni Rodari (1920-80), Buzzati contribui dando dignidade à literatura escrita para crianças e jovens.

O fantástico e a infância como horizonte na obra de Buzzati

De acordo com Chiara Lepri, “o fantástico e a infância” são elementos constitutivos da visão de mundo de Dino Buzzati, presentes na sua obra como um todo e não apenas no livro escrito e destinado aos jovens leitores. De acordo com esta análise existe “uma poética, em Buzzati, de retorno à infância”, isto é “um olhar que cada vez mais se dá pela lente do fantástico e do maravilhoso para aproximar-se, reescrever e reinterpretar o real”.

Este traço é o que permite pensar que ao contrário do que pode se supor, a passagem de Buzzati pela literatura infantil não foi por acaso. Sua poética e seu imaginário estavam totalmente afinados. O autor era completamente avesso a separação dos gêneros, e, ao contrário, investia na procura da experimentação, à inclinação fabular.

Seu leitor ideal? “a um tempo bambino e adulto”.

Quem foi Dino Buzzati

dino buzzati

Dino Buzzati nasceu em 16/10/1906, em San Pellegrino, região montanhosa no Norte da Itália e faleceu em 1972, na cidade de Milão, onde viveu a maior parte de sua vida. Estudou direito e se formou em 1928. Mas, sua atividade profissional se dará como jornalista, escritor, dramaturgo e pintor. Muito cedo entrou como estagiário no importante jornal Corriere de la Sera, onde trabalhou durante praticamente toda a sua vida. Na medida em que desenvolveu a sua carreira jornalística, escreveu crônicas, crítica de arte e de música, até que em 1939 se tornou correspondente de guerra na África e no Mediterrâneo. Esta diversidade de gêneros e uma visão generalista e humanista marcou profundamente sua carreira artística.

O escritor e o artista

Buzzati, na sua diversidade de facetas, também foi um grande artista, designer gráfico e ilustrador. Dono de um traço refinadíssimo, limpo, moderno e altamente gráfico, como as suas ilustrações mostram.

Em 1933, publicou seu primeiro romance Bárnabo delle montagne, em 1935 Il segredo del Bosco Vecchio e em 1939, O deserto dos tártaros, considerado a sua obra prima.

Buzzati escrevia regularmente depois das 2 horas da manhã, quando voltava do jornal, e semeou fama de escritor fantástico, surreal e inclinado a cultivar formas narrativas que reforçam o livre jogo da imaginação, sem nenhuma filiação a correntes, escolas e tendências literárias.

Inovou e criou gêneros e estilos que hoje marcam a produção editorial de ponta, como os HQs, o casamento entre a imagem e o texto. Entre as suas obras mais inovadoras vale citar o seu livro Poema da fumetti.5

Buzzati foge a toda classificação e jamais concedeu à modas literárias ou artísticas. Profundamente comprometido com o seu tempo e na busca de “uma vida verdadeira”, foi defensor do equilíbrio e harmonia da vida social com a natureza, de um ponto de vista ecológico extremamente atual. Detentor de uma perspectiva pioneira, apontou questões atualmente na pauta global e que são a garantia para a vida de futuras gerações no planeta. Buzzati foi ambientalista, em defesa da natureza e do vegetarismo. E na sua obra existe uma sintonia particular entre mundo vegetal, animal e infância.

Por outro lado, Buzzati também foi marcado pelo desencanto de um mundo entre-guerras, que se reflete, no conjunto de suas obras, por uma certa desilusão e pessimismo diante da civilização contemporânea. Pacifista e crítico mordaz da hipocrisia social de sua época, a obra de Buzzati é marcada por este compromisso com o seu tempo.

Refinado, ambientalista, pacifista, contra toda tirania, provocador, comprometido com o seu tempo, Buzzati coloca sua arte e sua criatividade à serviço de seus destinatários, sem concessões e de forma plena.1Texto-base do “Programa de Lecturas”, promovido pela Universidade Autónoma de Barcelona e ministrado por mim, em torno deste livro, em abril de 2015.

Notas

  • 1
    Texto-base do “Programa de Lecturas”, promovido pela Universidade Autónoma de Barcelona e ministrado por mim, em torno deste livro, em abril de 2015.

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  • Dolores Prades

    Fundadora, diretora e publisher da Emília. Doutora em História Econômica pela USP e especialista em literatura infantil e juvenil pela Universidade Autônoma de Barcelona; diretora do Instituto Emília e do Laboratório Emília de Formação. Foi curadora e coordenadora dos seminários Conversas ao Pé da Página (2011 a 2015); coordenadora no Brasil da Cátedra Latinoamericana y Caribeña de Lectura y Escritura; professora convidada do Máster da Universidade Autônoma de Barcelona; curadora da FLUPP Parque (2014 e 2105). Membro do júri do Prêmio Hans Christian Andersen 2016, do Bologna Children Award 2016 e do Chen Bochui Children’s Literature Award, 2019. É consultora da Feira de Bolonha para a América Latina desde 2018 e atua na área de consultoria editorial e de temas sobre leitura e formação de leitores.

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