A literatura juvenil: uma etiqueta forçada

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Existe uma literatura juvenil com entidade própria, pertence a um subgênero dentro do corpo de literatura, ou, pelo contrário, trata-se de um artifício gerado pelo mercado, que responde aos obscuros interesses econômicos do sistema capitalista dominante e à tentativa de controlar e doutrinar os jovens por parte do mundo dos adultos?

Tomo essas questões como ponto de partida para tentar argumentar, porque acredito que o rótulo “literatura juvenil” não consegue nomear os díspares caminhos da leitura tomados por nossos jovens.

Vivemos em uma sociedade marcada pelo império do capitalismo, que parece fagocitar tudo em seu caminho. Totalmente imersos no mundo da produção, do quantificável, das competências e da padronização das mesmas, no qual nos deram as respostas sem saber quais são nossas perguntas, na era da uniformidade, em que a subjetividade corre grave perigo e a Literatura não é alheia a essa ordem de coisas.

Tudo está centrado no utilitarismo, há um ruído que não cessa, um imperativo superegoico que diz que as crianças e os jovens têm de ler mais, há uma preocupação de que a juventude leia, aduzindo argumentos em torno desse utilitarismo, focado principalmente no entorno escolar e suas competências. Essa voz, que não é outra senão o discurso do mestre, diz que os jovens devem ler mais para melhorar sua compreensão de leitura, melhorar seu vocabulário e compreender melhor as tarefas acadêmicas impostas pelo sistema educacional.

Mas ler está muito longe do discurso do quantificável, aninhado no mais particular e subjetivo de um ser humano: lemos para compreender o mundo que nos rodeia, para nos refugiarmos da solidão, para vivermos outras vidas, para nos protegermos da realidade que nos machuca, para combater o medo ou os pesadelos, para ter esperança quando estamos exaustos, para nos emocionarmos, para nos indignarmos, para nos rebelarmos. Podemos pensar em muitas causas de leitura como seres humanos que leem em nosso planeta, porque um leitor nasce de uma necessidade que estará intimamente ligada à história desse sujeito, que procede, como disse Isabel Escudero, dessa fonte que não é de água, mas de sede. Ser leitor não consiste apenas em ler muito, é tornar-se um intérprete da realidade, é estar disposto a se deixar seduzir pelo sussurro das palavras, pelas infinitas construções possíveis que a linguagem nos oferece, é buscar nos nomearmos e, ao fazermos isso, cavar um oco próprio para nossa existência, é aceitar um pacto fictício e dar-lhe consistência para nele habitar.

Se voltarmos à origem da literatura infantil e juvenil propriamente dita, nos encontramos com uma obscura realidade. Como o atual sistema educacional procede da funcionalidade gerada em torno da demanda por mão de obra qualificada por parte do lobby empresarial, o campo da literatura juvenil responde a uma visão lucrativa da literatura e se vangloria de um servilismo literário que se rendeu aos poderes econômicos. Neste caminho, o literário perde consistência, despojando-se da força simbólica que possui, arrancando-lhe o poder que tem de nomear aquilo que escapa ao sentido e se coloca a serviço do poder econômico e do mercado.

Por outro lado, a cada ano aparecem uma infinidade de títulos dessa literatura para jovens, respondendo às demandas dos pais ou dos educadores, mostrando outro servilismo, que se rende, dessa vez, ao doutrinamento e às exigências escolares nesse desejo de controle e superproteção da infância e da juventude por parte do adulto. Nesse sentido, aparece um novo filão nos livros criados para trabalhar certos temas, os quais acabam sendo textos insossos e ocos, que não dizem nada para a juventude de hoje, mas os quais lhes oferecemos como um entretenimento grosseiro, com formatos que cada vez mais imitam o televisivo e se afastam da essência do literário. Nesse ponto, o livro no terceiro mundo se torna um objeto inalcançável, ao passo que no primeiro mundo ele se torna mais um objeto de consumo que, nas palavras de Santiago Alba em seu livro Leer con niños, pouco se diferencia de um eletrodoméstico ou uma barra de chocolate.

Por isso, permito-me afirmar que a literatura juvenil não é uma etiqueta adequada, por mais que as livrarias estejam repletas de coleções e livros chamados juvenis. Creio, então, que a questão, neste ponto, será diferenciar o que é Literatura do que não é.

A literatura responde a uma necessidade expressiva da parte de alguém, que escreveu uma história para nós, na qual ele nos dá uma visão única e irrepetível de outro ser humano, de uma determinada parcela do mundo. Desta forma, o literário se faz Universal a partir do particular, a partir de uma visão concreta que fala conosco e em cujas experiências e pensamentos podemos nos sentir identificados. Ela nos ajuda a nos compreendermos e explicarmos o mundo que nos rodeia, e também a conhecermos a nós mesmos, é uma ferramenta para interpretar a vida e conhecer a alma humana.

Precisamente, uma das características da boa literatura é que ela pode ser lida por crianças, jovens e adultos, e cada um, em seu nível, pode extrair de sua leitura algo que conquistou e lhe sirva para continuar seu caminho para ampliação dos limites de seu mundo através da linguagem. Um bom exemplo disso encontramos nas aventuras de Pippi Meialonga,3 em que sua autora nos mostra essa ânsia de liberdade que pode habitar em todos os seres humanos. Portanto, sua leitura não pode ser classificada em uma categoria de acordo com a idade do leitor, mas será compartilhada por milhões de leitores de diferentes partes do mundo em que essa ânsia de liberdade habite.

Há um poema de León Felipe que fala precisamente disto, e nos narra de onde surge a necessidade do literário no ser humano:

SEI TODOS OS CONTOS (León Felipe)
Não sei muitas coisas, é verdade.
Digo somente o que vi.
E vi:
que o berço do homem é balançado com contos,
que os gritos de angústia do homem são afogados com contos,
que o pranto do homem é sufocado com contos,
que os ossos do homem são enterrados com contos,
e que o medo do homem…
tem inventado todos os contos.
Eu sei muito poucas coisas, é verdade
mas me fizeram dormir com todos os contos…
e sei todos os contos. (FELIPE, 2018)

Também não deixamos de lado as questões relativas às características específicas que poderiam definir a juventude. O psicanalista Philippe Lacadée nos presenteia com uma definição muito sutil da adolescência, à qual ele se refere como “a mais delicada das transições”.

Neste sentido, podemos tomar a adolescência como uma viagem rumo à maturidade, uma viagem do território seguro da infância para o território desconhecido e inexplorado da idade adulta, em que o jovem deve dar conta de sua posição com relação ao saber, e de seu encontro com sua sexualidade que irrompe no real do corpo.

Isso está longe de reduzir esse processo subjetivo a uma série de temáticas, ou à exigência de se criar personagens à sua semelhança, nos quais se classifica o que é a essência da juventude, estreitando os limites de nossos jovens a partir de etiquetas carregadas de preconceitos mais vinculados com o mercado do que com sua essência. É muito interessante o que diz Alejandro Flores Ramírez em seu manifesto Soy joven, soy lector: “A cultura jovem nasce das manifestações espontâneas dos jovens, mas logo é engolida e processada pelos adultos, para revendê-la”.6

Uma jovem pode se sentir muito identificada com a personagem de Madame Bovary, com aquele sentimento trágico e romântico da vida, por mais que esse romance transcorra na época vitoriana. Essa visão romântica da vida se conecta com um sentimento universal que pode habitar qualquer jovem hoje e, por sua vez, ser compartilhada por qualquer mulher de meia-idade que não tenha renunciado a seus anseios juvenis. Porque não há uma única maneira de ser jovem, já que não há uma única forma de crescer ou ser adulto, e por isso cremos ser mais correto falar de adolescências, no plural, colocando em evidência o caráter subjetivo desse processo.

A verdadeira literatura não conhece barreiras de idade, é aquela que nos toca, que nos convida a refletir, que faz com que nos questionemos e tomemos partido, que nos permite ampliar os limites de nosso pensamento e nos compromete como seres humanos, não aquela que se rende a objetivos curriculares ou moralizantes.

Portanto, nossa função como mediadores com os jovens será colocá-los em contato com obras literárias de qualidade por meio das quais eles possam se conectar com suas inquietudes e aqueles sentimentos universais que se aninham nas grandes obras literárias. Sempre partindo do um por um, sem preconceitos, sem classificar em temas ou personagens, sem restringi-los à etiqueta de literatura juvenil, nem reduzi-los a uma única estrutura linguística, dando consistência ao subjetivo e conferindo-lhes seu lugar como sujeitos de pleno direito.1Este texto foi apresentado como projeto final ao curso A literatura me mata – existe literatura juvenil?, organizado pelo Laboratório Emília de Formação e selecionado entre os melhores.

Tradução Tais Prades Villela

Referências Bibliográficas

ALBA RICO, Santiago. Leer con niños. Madrid: Editorial Cavallo de Troya, 2007.

ESCUDERO, Isabel. Condiciones de Luna: Coplas y juegos de lengua, ritmo y razón. Madrid: Ediciones La Torre, 2013. Referência aos versos “Acérquense a beber: / esta fuente no es de água, / es de sed” [Aproximem-se para beber: / esta fonte não é de água, / é de sede] (N.T).

FELIPE, León. Nueva antología rota. Madrid: Visor Editorial, 2018, tradução nossa.

FLORES RAMÍREZ, Alejandro. Soy joven, soy lector. In: Linternas y bosques – Literatura infantil y juvenil. Disponível no link. Acesso: 05 ago/2018.

LACADÈE, Philippe. L’éveil et l’exil : Enseignements psychanalytiques de la plus délicate des transitions : l’adolescence. Bordeaux: Éditions Cécile Defaut, 2007.

LINDGREN, Astrid. Pippi Meialonga. São Pauo: Cia das Letrinhas, 2016.


Imagem: Ilustração de Shaun Tan, para A árvore vermelha, Edições SM.


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  • Silvia García Esteban

    Especialista em promoção de leitura, escritora e poeta. Antes de descobrir o mundo da literatura trabalhou como mediadora em diferentes projetos sociais relacionados com o mundo da imigração e o refugio.Tem um compromisso particular com a infância e desenvolveu durante 4 anos o projeto "Mamãe durante o dia em casa", um espaço de acompanhamento respeitoso para crianças entre 0 e 3. Atualmente trabalha em um projeto de promoção de leitura e de criação artística em várias escolas de Madri.

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