Ainda sobre o saco de gatos

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No embalo das questões suscitadas na última coluna, resolvi aprofundar o tema da abrangência contida no que normalmente se entende por literatura infantil e juvenil. Desta vez pelo viés do mercado e da crítica. Este fenômeno está longe de ser exclusivo deste gênero literário. Porém, o instrumental crítico-teórico produzido em torno da chamada literatura adulta é responsável pelo estabelecimento de cânones e critérios que estabelecem as distinções que orientam grande parte dos leitores.

O crescimento da indústria editorial somado às imposições das regras do mercado tem contribuído, sem dúvida, para uma forte relativização de tais cânones e critérios. No cerne da forte standarização da cultura, a literatura se confunde e engloba desde os mais descartáveis best-sellers até a mais enganosa autoajuda. No entanto, entrar nesta ceara é bastante complicado, pois significa se embrenhar na velha discussão indústria cultural X consumo que, sem dúvida, perpassa toda a nossa reflexão, sem no entanto ser o centro.

Deixando esta questão de lado, vale ressaltar dois aspectos: a superioridade, prestígio e reconhecimento que caracterizam a literatura adulta em relação à literatura infantil e juvenil e as consequências da falta de difusão de uma crítica especializada, o que dificulta o compartilhamento de critérios que orientem escolhas dos mediadores e ampliem sua formação como leitores.

A produção literária para jovens leitores ganhou, nessas últimas décadas, reconhecimento e prestígio inquestionáveis, tanto no plano nacional, como no internacional e é fruto de um conjunto de fatores cuja abrangência se estende da ressonância das premiações internacionais, passando pelos investimentos governamentais e editoriais, até os efeitos resultantes das múltiplas ações promotoras da leitura. Este reconhecimento, no entanto, está longe de traduzir um entendimento mais amplo sobre o que é literatura infantil e juvenil.

Considerada por muitos um gênero menor, de produção fácil, que não requer grandes conhecimentos específicos, a literatura infantil e juvenil sofre deste desconhecimento geral que justifica muita coisa em seu nome. Daí o balaio de gatos da coluna anterior – e desta.

Por abarcar um universo etário muito amplo, uma diversidade de maturidades leitoras enorme, assim como de gêneros literários e de tipos de livros distintos, não contribui para um aprofundamento do conhecimento do gênero, ou melhor, dos gêneros. Refém dessa generalização extrema, a literatura infantil e juvenil acaba sendo uma denominação abstrata que mais confunde do que identifica.

Mas este território sem fronteiras acaba sendo um facilitador para muitas editoras que, frente ao desconhecimento geral, fazem dos seus comerciais – muitas vezes sem formação para isso – seus principais porta-vozes na relação, por exemplo, com os professores. Esta ponte frequentemente distante de critérios literários mais rigorosos só aprofunda o desconhecimento. Nesse sentido, destaca-se a importância dos catálogos das editoras e dos materiais de divulgação – todos merecedores de pelo menos uma coluna e de vários estudos – reveladores da visão e dos critérios que orientam cada editora sobre suas escolhas, seus pesos e sua lógica de catalogação.

Mas não é só de fronteiras que se ressente este território. A falta de sinalização clara também propicia uma produção cada vez maior neste segmento. É impressionante o crescimento do mercado nos últimos anos, o que somado à imposição perversa de uma vida curta para cada livro resulta na avalanche de títulos impossível de acompanhar que estamos vivenciando. É claro que isto se deve às perspectivas oferecidas pelos programas do governo, porém é importante lembrar que o mercado é oscilante e não podemos deixar de olhar para experiências vizinhas, como a do México.

Porém, é visível que esta bolha de crescimento tem um limite e que certamente qualidade e quantidade serão critérios que, em breve, farão repensar a atuação estratégica neste mercado. O investimento na formação de mediadores, mesmo que no seu ritmo lento, certamente também será um elemento que a médio prazo estabelecerá critérios mais consistentes na seleção e escolha dos livros para o jovem leitor.

Mas para que este salto se dê é necessário que se abram espaços de discussão e reflexão, espaços de crítica sobre a produção existente que forneçam parâmetros e orientem os mediadores. No momento, a crítica existente está restrita à academia ou aos círculos próximos de algumas instituições voltadas para a promoção da literatura infantil e juvenil, como por exemplo a FNLIJ, responsável histórica pela divulgação de critérios de qualidade por meio de suas premiações e de seu investimento na defesa da literatura. Se este trabalho é decisivo e a ele se deve um grande avanço na produção desta literatura, ele é, todavia, insuficiente em termos do seu raio de extensão.

As livrarias não dão conta de expor e de dar visibilidade a todos os lançamentos, não há espaço, e a literatura infantil e juvenil pode ser tão descartável como tantos outros produtos. Acompanhar as novidades fica cada vez mais difícil e, portanto, ter novas referências fica mais distante também. Talvez a efemeridade do mercado – que vivemos e que de certa maneira todos alimentamos – agradeça essa ausência de critérios e de fronteiras, mas certamente não o leitor.


Imagem: ilustração de Mô Gutierrez.


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  • Dolores Prades

    Fundadora, diretora e publisher da Emília. Doutora em História Econômica pela USP e especialista em literatura infantil e juvenil pela Universidade Autônoma de Barcelona; diretora do Instituto Emília e do Laboratório Emília de Formação. Foi curadora e coordenadora dos seminários Conversas ao Pé da Página (2011 a 2015); coordenadora no Brasil da Cátedra Latinoamericana y Caribeña de Lectura y Escritura; professora convidada do Máster da Universidade Autônoma de Barcelona; curadora da FLUPP Parque (2014 e 2105). Membro do júri do Prêmio Hans Christian Andersen 2016, do Bologna Children Award 2016 e do Chen Bochui Children’s Literature Award, 2019. É consultora da Feira de Bolonha para a América Latina desde 2018 e atua na área de consultoria editorial e de temas sobre leitura e formação de leitores.

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