Anthony Browne

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Este artigo marca um importantíssimo lançamento em 2014 no Brasil: a publicação da obra de um dos maiores autores e ilustradores contemporâneos, Anthony Browne, pela editora Pequena Zahar (sob consultoria de Dolores Prades, publisher da Emília). Pouco conhecido dos jovens leitores brasileiros, seus livros publicados no país estão há muito tempo esgotados. Os dois primeiros títulos previstos para serem lançados no primeiro semestre são: Na floresta e Vozes no parque. E na sequencia Gorila e O túnel.

Anthony Browne

I. O homem

Browne vem repetindo com muita paciência a sua vida a todos que lhe perguntam. Dele conhecemos apenas o que ele nos conta. O que é pouco. Faz alguns anos ele deslumbra seus entrevistadores com as mesmas anedotas que permanecem as mesmas ao longo do tempo. E, desse mesmo jeito, vamos seguir contando.

Ele nasceu em Sheffield, Inglaterra, num dia fácil de lembrar hoje: um 11 de setembro de 1946. Ele conta que, desde criança, gostava de desenhar. Mas que criança não gosta? Portanto, nenhuma anedota relevante ou personalidade magnética. Sua infância passou muito rápido, embora confesse, quando encurralado com perguntas sobre a solidão das crianças em seus livros, que ele nunca se sentiu sozinho e que, em sua infância, ela sempre teve amor e companheirismo.

Anthony Browne criança

Gorilas


Nos anos de ensino superior, é o tempo de focar sua vida em alguma direção. Escolheu design gráfico no Leeds College of Arts. Lá, ele descobriu que a ilustração é considerada “como um tipo de arte de segunda classe” e odiava o design gráfico pela sua excessiva orientação comercial. “Eu só queria pintar”. No entanto, seu desejo não se realizou porque, fugindo de tudo que tinha aparência comercial, ele começou a trabalhar como ilustrador biomédico. Sua missão era entrar na sala de cirurgia e desenhar o que via. “Foi um grande treino, diz o autor. Tinha que explicar visualmente algo que era muito difícil de explicar de outro jeito”.

Anos mais tarde, ele conta que a sua etapa como ilustrador especializado lhe serviu mais do que tudo o que ele aprendeu na escola de arte: dominou a arte da aquarela e aprendeu a contar uma história com o desenho. “Abandonei essa profissão, porque, após certo tempo se tornou repetitiva. Uma cirurgia é muito parecida com as outras e não deixa espaço para a imaginação.”

De lá ele foi desenhar cartões de visita, com os quais, na medida do possível, ele começou a descobrir outras maneiras de contar outras coisas. Essa busca profissional parece que chegou a um momento importante, quando em 1976 ilustra a primeira história para crianças. “Imaginei que seria apenas mais um trabalho”, diz anos depois, surpreso inclusive com a sua afirmação. Mas, neste momento, ele teve a sorte de encontrar uma editora sensível, Julia McRae, que deu forca a sua criatividade e lhe ajudou a canalizar o seu potencial criativo para se conectar ao público infantil.

II. A obra

Esse seu primeiro livro, A through the Magic Mirror [Através do espelho mágico], permitiu-lhe descobrir o que realmente significava capturar em imagens e texto uma história. Reconhece que para este livro, só pensou nas ilustrações e só pensou na história, não lhe ocorreu que “palavras e imagens devem ser desenvolvidos ao mesmo tempo.”

Continuou experimentando com seus livros posteriores: A Walk in the Park [Um passeio pelo parque](1977), que visto agora, acaba sendo um esboço de seu mais recente Voices in the Park [Vozes no parque] (1998): o passeio pelo parque de um homem e de uma mulher com seus respectivos filhos e cães. É muito estimulante comparar esses dois álbuns para observar a evolução de seu estilo: os homens que se converteram em macacos, a composição, as cenografias e as atmosferas. Todo esse mundo que ele esboça nos anos 1970 já permite perceber a criatividade de Browne: as referências pictóricas, as metamorfoses, os elementos apresentados fora de sua função natural, como muitos detalhes que dão toques poéticos e bem-humorados às cenas. A primeira banana aparece.

Túnel

Depois ele escolhe animais para antropomorfizar, principalmente o pequeno urso, com o que faz uma série de vários livros, mas ele admite que nunca encontrou neles a forca que procurava.

E, então aparecem os macacos.

Gorilas capa
Super gorila

III. O símio

Em 1983 publica Gorila. Gorila não é apenas um sucesso comercial e também literário (recebeu muitos prêmios), para Browne é a descoberta total do livro álbum. Com Gorila acaba o tempo da experimentação e concretiza uma forma de fazer livros na qual está incluida o layout da página, o uso de elementos de composição para criar ambientes (perspectivas exageradas, formas geométricas, ângulos), a cor como recurso expressivo, ou a utilização de uma mesma ilustração com diferentes significados. “Continua sendo um dos meus favoritos”, diz o autor.

Gorilas canto

Gorila quarto
E também o favorito de muitas crianças que experimentam essa emoção de um texto que convida a virar a página e uma ilustração magnética que nos obriga a parar nos detalhes e também na emoção do momento, como nessa cena em que Ana está dormindo e um enorme gorila olha para ela: o leitor sabe do poderoso desejo da menina por gorilas de verdade e o que deveria ser um momento de terror resulta numa cena muito libertadora e gratificante.

Gorilas entrada
A experimentação dessa nova linguagem visual anda junto com uma evolução do que deveria ser um livro para crianças. Seu próximo livro, Willy, o tímido (1984) comprova isso. Esse pequeno chimpanzé acomplexado e diminuído que se deixa seduzir – ou não – por falsas promessas, traz uma mensagem clara para os leitores que se reconhecem imediatamente na fraqueza de Willy e observam a sua transformação em um musculoso macaco que afugenta os grandes e recebe recompensas das mulheres, ainda que tudo continue como antes.

“Com Willy queria usar muitos desenhos de páginas – sequenciadas, circulares, sangradas, com marcos, partes que pareciam recortadas de revistas e várias técnicas: aquarela, guache, tintas e lápis de cera, para manter uma atmosfera leve.” Essas atmosferas e as mensagens em diferentes níveis (estar em forma, a autopromoção, a publicidade, o homem macho) acompanham uma ideia central que o autor fórmula com uma pergunta: “Será que a possibilidade de mudança é apenas uma utopia?”

Gorila

É o velho dilema do desejo e da realidade, presente em cada cultura e em cada geração de crianças. De fato, a maioria das cartas que recebe de seus leitores é por conta do personagem Willy, a quem dedicou a sua maior série, até agora (seis títulos). No entanto, essas cartas de crianças preocupadas e ansiosas sobre o destino deste personagem indefeso e, obviamente, perdedor, o levaram a querer “matá-lo” ou a tentar dizer a seus leitores que Willy é um personagem inventado: em Willy, o sonhador e Willy, o pintor abandona a estrutura narrativa para substituir uma história por uma série de imagens, que são pequenas homenagens ao mundo do surrealismo e da pintura.

Os chimpanzés já são uma referência na obra de Browne. Ele sempre tenta justificar a sua escolha: “Sou fascinado pela ideia como a do gorila que precisa da tranquilidade que lhe dá um ursinho de pelúcia”. E fazendo uma conexão com a sua vida em família, reconhece que a figura do gorila lembra o seu pai, que morreu quando ele tinha 17 anos. Dele lembra “o contraste entre sua masculinidade, força e
delicadeza, e como nos encorajava a nos esforçarmos com o desenho e a escrita poética.”

À seu pai dedica um de seus últimos álbuns.

Gorila sofá

IV. As mudanças

Browne sempre disse que seus ilustradores favoritos são Maurice Sendak e Chris Van Allsburg, ou seja: um ilustrador de profundas raízes clássicas e outro cujas imagens transmitem atmosferas irreais, mas que tem a aparência de ser absolutamente reais. E é verdade que seus desenhos combinam cenas hiperrealistas (no O túnel fotografou crianças de amigos para desenhar mais tarde as cenas), com um mundo de elementos fora do lugar que assombram qualquer leitor que olhe detalhadamente algumas ilustrações de detalhe.

“Gosto que haja algo nas ilustrações que não seja reconhecido numa primeira vez, de modo que a criança possa retornar e descobrir coisas nos desenhos. Esta técnica torna o livro algo que poder-se-ia querer voltar”, diz o autor quando tenta explicar o porquê dos elemento que aparecem em seus desenhos.

Browne gosta dos contrastes: grande e pequeno, duro e mole, áspero e suave. E na arquitetura de seus livros não o desperdiça: suas histórias podem ser contadas com uma única linha, mas também se poderia escrever facilmente seis páginas sobre qualquer um dos seus livros. Pelas suas influências clássicas ilustrações, aparentemente, são simples e fáceis de entender: ocupam a página inteira, ou estão enquadradas, ou são pequenas; o texto nunca se mistura com as imagens, as cores e as formas são realistas, os gestos de seus personagens econômicos. Os temas abordados são também atemporais: um passeio pelo jardim zoológico (Zoológico), o isolamento familiar (Gorila), as relações afetivas entre irmãos (O túnel), entre amigos (Willy e Hugo), entre crianças (Vozes no parque). No entanto, em todos
eles o cotidiano ganha em seguida uma dimensão especial, como é mostrado no livro Changes onde as transformações de objetos do cotidiano vão tensionando a história num crescendo que termina na porta preta e o surgimento da mãe com um bebê.

Venus


Em outros momentos, esses elementos se misturam em cenas muito realistas e o leitor olha com admiração ciclistas que pedalam ao contrário, ou árvores em forma de frutas que dão uma dimensão onírica do momento e convidam o leitor a manter alerta visual durante a sua leitura visual.

O mundo civilizado se apresenta diante dos olhos da criança de uma forma irreal, e as mudanças se oferecem como uma estimulante perturbação do equilíbrio. A leitura de qualquer um dos livros álbuns de Browne é dinâmica e ativa, não despreza as capacidades imaginativas de seus leitores e os convida a
entrar em um mundo afastado da lógica e cheio de poesia.

Parece que Browne foi, durante sua infância, um jogador de primeira de Stop the difference (Busca da diferença), esse jogo, aparentemente inofensivo, que é o de encontrar elementos escondidos nas imagens. “As chaves visuais tornaram-se fundamentais em meu trabalho” e essas chaves chegam sem dificuldade nos leitores, que “podem entender-se bem com ideias complexas e sofisticadas . As crianças são muito mais visuais do que os adultos e percebem as chaves e detalhes ocultos em meus livros muito mais rápido do que os seus professores ou pais “.

Casa

V. O alimento

Às vezes, as chaves e os detalhes escondidos são fáceis de detectar, como os detalhes decorativos que desempenham um papel importante. Os cabelos da boneca que se eriçam quando aparece Gorila diante de Ana, interruptores de luz que sorriem ou inofensivos papéis de parede cujas flores rosas se transformam em cabeças de porco (El livro de los cerdos).

Porcos

Esses elementos aparentemente inócuos dão profundidade ao significado da história. Às vezes, são objetos discretos em algum segundo plano que parecem estar lá como prova da fantasia louca do autor, mas que se repetem de um para outro álbum formando um corpus de referências e uma interrelação entre todos os seus livros que permite que o leitor esteja familiarizado com antecedência com uma obra de alguma complexidade.

Os túneis, os muros de tijolos, ou as cenas onde as sombras também parecem têm significado acostumam o leitor a um novo código visual, cuja interpretação depende da sua imaginação.

Porcos sala
Porcos lua


Também há todas essas referências culturais que, cada um, de acordo com sua capacidade, pode capturar: o Planeta dos Macacos, King Kong, Elvis Presley, um protagonista que se chama Joseph Kah que nos lembra um conto de Kafka; a sala de Van Gogh em Arles, onde, em vez do quadro de uma noite estrelada pendurado na parede, aparece um cartaz de E; Mr. Atlas; Superman; Sargent Peppers; Marilyn Monroe e muitos mais, incluindo muitas alusões pictóricas.

O leitor pode passear, despreocupado por essas referências cultas, sem sua transcendência ser desvelada. O que importa é a presença de um mundo de significados interrelacionados em toda a sua obra, com elementos que, por vezes, se repetem, como a ideia de ser bloqueado, enjaulado em nossa própria realidade,

quarto Van gogh
Ana como o Gorila quando apresentado em sua cama como uma célula, ou Zoo dos homens, ou ambientes Vozes no parque com estas paredes densidades diferentes que denotam status social dos personagens. E se o leitor não interpretado na época e irá fazê-lo em outro. “Eu não me importo que as crianças não tenham visto ou não conheçam os quadros originais que recrio. Talvez um dia, eles os vejam e possam comparar, mas será uma leitura que terá outro sentido. Quero que os quadros que “recrio” funcionem por eles mesmo, não como referências.”

El mundo imaginativo de Browne, que lhe deu merecidamente o Prêmio Andersen, é um mundo real que enfrenta o leitor no seu próprio mundo e, ao mesmo tempo, o afasta graças a um olhar idealizado e sedutor que nos permite sonhar as coisas de diferentes maneiras. Como quando na cena final de Gorila o pai carrega no bolso de trás justo onde deveria levar a carteira com seus documentos, uma banana que o leitor pode interpreter como a sua nova personalidade ou como a correção de Ana da imagem que até aquele momento tinha de seu pai.

Este é o Browne que muitos admiramos. O único capaz de modificar tudo com uma banana. Particularmente, compartilho com ele, não posso me queixar, a paixão por essa fruta.

Oz

Tradução Dolores Prades

Referências Bibliográficas

Anthony Browne. Entrevista. Revista Babar

Sergio Andricaín, Anthony Browne, un postmoderno en el universo del libro infantil. Em: Taller de Talleres.

Brigitte Andrieux: De l´homme au singe: l´evolution d´Anthony Browne. La Revue des Livres pour enfants n.185, Février 1999.

Anthony Browne, El mundo de Anthony Browne. Em: Encuentros, 31, 1997

Anthony Browne, Golpe de suerte navideño. Anthony Browne: reflexiones sobre su obra. Atiza Nr. 30-31-32, 1990.

Anthony Browne, Discurso de aceptación del Premio Andersen. Memorias del 27. Congreso del IBBY. Bogotá: Fundalectura, 2001.

Stéphanie Dambroise: Etrange, vous avez dit étrange? Sur l´album Tout change de Anthony Browne. Em: Alice Nr. 6, 1998.

Sylvia e Kenneth Marantz, Una entrevista con Anthony Browne. Educación y Biblioteca, 112, 2000.

Maite Ricart, Anthony Browne, el mago. CLIJ 141 Septiembre 2001.

Vários: A propos d´Anthony Browne. Em: Lire et ecrire a l´ecole Nr. 13, 2001.

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  • Ana Garralón

    Ana Garralón trabalha com livros infantis desde finais dos anos 80. Colaborou como leitora crítica para muitas editoras, realizou oficinas sobre formação e incentivo à leitura e livros informativos em importantes instituições. Escreve regularmente na imprensa. Publicou Historia portátil de la literatura infantil, a antologia de poesia Si ves un monte de espumas e 150 libros infantiles para leer y releer (CEGAL, Club Kirico, 2012 e mais recentemente Ler e saber: os livros informativos para crianças (Pulo do Gato, 2015). É membro da Rece de Apoio Emília. É autora do blog http://anatarambana.blogspot.com.br/.

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