As bibliotecas também tem algo a dizer

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Sempre é positivo que a reflexão sobre a cultura, neste caso sobre os livros, desperte a atenção dos meios de comunicação, mesmo quando isto ocorre sob uma perspectiva que foca o olhar e reitera, mais uma vez, o repetido alarme apocalíptico desde que a alta cultura deixou as esferas dos privilegiados e desceu, primeiro pela imprensa e, posteriormente, pelos meios de comunicação de massa ao povo simples, ao cidadão comum. A discussão foi abordada em profundidade por Umberto Eco no clássico Apocalípticos e integrados e a conclusão, que eu compartilho, é que a cultura (seja ela alta, média ou baixa) nunca chegou a tanta gente como hoje e nunca houve tanta aristocrática melancolia pelo paraíso perdido das noitadas culturais iluminadas por candelabros.

De acordo com a declaração da Unesco, as bibliotecas públicas são espaços de tolerância e diversidade, onde todos devem ter possibilidades de acesso aos materiais disponíveis, sem censura prévia de nenhuma índole. As bibliotecas públicas não são templos sagrados a serviço de um culto admitido pelo campo cultural; são espaços de encontro da comunidade que tem todo o direito de ingressar, seja por uma biografia de uma celebridade ou para disfrutar de uma coleção de gibis, mas onde se pode terminar também seguindo um fio que leve a José Miguel Varas, Sándor Márai e Irène Nemirovsky, só para citar passagens pelas quais o labirinto avança em meio a alternativas em constante renovação e, portanto, infinitas.

O campo intelectual, tão bem descrito por Pierre Bourdieu, tem suas próprias regras de hierarquia e não gosta precisamente destas anormalidades. Para o campo intelectual de sua época, como indica Bordieu, o Café da manhã na grama de Manet era basicamente um escândalo (talvez alguém tenha utilizado a palavra “impressionante” ou “banalidade”), algo que jamais poderia ingressar ao templo das belas artes. Não quero dizer que a célebre biografia do frustrado animador seja o Café da manhã sobre a grama; apenas destaco que as regras conservadoras do campo intelectual nem sempre são as mais apropriadas para avaliar os processos de formação do gosto, neste caso do gosto pela leitura. O mesmo ocorreu, quando em 1824 a Ode à alegria na Nona Sinfonia de Beethoven foi considerada pelos críticos especializados como uma obra escandalosa e incompreensível.

Na crítica feita à seleção de livros realizada pelos responsáveis de bibliotecas públicas se incide infelizmente no que Jonathan Potter denomina uma manipulação epistemológica, quer dizer, coloca-se a lente do microscópio em uma polegada definida por seu interesse e a partir dela se começa a descrever um vasto território. Ante a palavra “celebridade” (condensação por demais exagerada de todos os males da sociedade contemporânea) parece que toda uma proposta de gestão participativa no desenvolvimento de seleções para bibliotecas públicas se desmorona. Contudo, vejamos do que trata exatamente esta polegada e qual é o seu território.

Antes de mais nada, é necessário esclarecer que do orçamento global para compra de livros em bibliotecas públicas, esta seleção representa 30% do total. Em seguida, se comenta a inclusão de dois títulos sobre Felipe Camiroaga dentre 12 mil títulos selecionados (0,01%), os quais se traduzem em 287 exemplares de um total de 40 mil (0,71%).

São estas porcentagens representativas de uma tendência das temáticas sobre celebridades na seleção do material para as bibliotecas públicas? Qual é a avaliação que se faz sobre o restante 99,99% dos títulos selecionados? É questionável que os responsáveis pelas bibliotecas públicas participem da formação de seus acervos porque dedicaram 0,01% de sua seleção a uma temática que atraiu a atenção de um enorme grupo da população do país? Concluindo, as bibliotecas públicas deveriam estar fora da realidade?

Na construção deste modelo de seleção de livros realizado pelos responsáveis das bibliotecas públicas do Chile, do mesmo modo como já se faz na Argentina, México e tantos outros países, convidamos também os editores. Desta maneira, com a Câmara Chilena do Livro, os Editores do Chile e a La Furia del Libro, conversamos previamente apontando nossas apreensões, os convidamos a se reunirem com esses mesmos bibliotecários durante uma seção do Seminário Internacional de Bibliotecas Públicas e foram eles que receberam na FILSA essas mesmas pessoas, que foram atendidos de maneira personalizada.

Se poderá discutir que os processos são passiveis de aprimoramento, ou que as pessoas que participam na seleção do material bibliográfico necessitam de um maior apoio e formação. Por isso temos desenvolvido um curso em Gestão de Bibliotecas Públicas; por isso anualmente realizamos um Seminário Internacional em que os editores nacionais participam onde também estão presentes destacados especialistas de distintos países; por isso buscamos as ferramentas tecnológicas para estar em diálogo constante com nossos leitores, para que eles também possam participar da seleção dos livros que chegam até suas bibliotecas (ou isso também estaria inadequado?).

Estes leitores que, como bem indica Alessandro Baricco em Los Bárbaros, buscam nos livros “meios de passagem” que lhes permitem transitar entre os distintos âmbitos de sua realidade, uma realidade na qual, queiramos ou não, existe a televisão, as estrelas midiáticas, a tecnologia e a mutação constante. Um acervo bibliográfico que não dê conta de todos estes aspectos, ainda que não seja mais que 0,01% de seus títulos, é uma visão distorcida da realidade que não interpela o leitor e não o convida a enveredar no labirinto de textos possíveis.

Lamentamos a linguagem depreciativa com que alguns têm se referido, nesta discussão, aos encarregados de bibliotecas públicas do país. Consideramos tremendamente ofensivo utilizar uma linguagem humilhante para pessoas que dedicam dia a dia todo seu esforço ao fomento da leitura, além das dificuldades geográficas e a complexidade própria dos diferentes contextos sociais em que se desenvolvem. Menosprezar o trabalho do bibliotecário é também menosprezar o público que diariamente deposita seu carinho e confiança nestes espaços culturais por considerá-los próximos e plurais, onde qualquer pessoa pode ter acesso tanto aos grandes clássicos da literatura universal, como a best sellers, para aprender computação ou simplesmente ler o jornal.1Texto originalmente publicado no Boletim SNBP – Sistema Nacional de Bibliotecas Archivos y Museos en 19/2/2014.

Tradução Sandra Medrano


Imagem: Fotografia de Dublins Trinity College Biblioteca.


Nota

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    Texto originalmente publicado no Boletim SNBP – Sistema Nacional de Bibliotecas Archivos y Museos en 19/2/2014.

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  • Gonzalo Oyarzún

    Bibliotecário, Mestre em Direção e Gestão de Indústrias Culturais e Criativas, consultor independente e professor universitário no Chile e nos Estados Unidos. Avaliador internacional de projetos de biblioteca. Participou do desenvolvimento de políticas e planos de leitura e livros no Chile e aconselhou vários programas no Brasil, Colômbia e Peru. Tem várias publicações em livros e revistas, em formato impresso e digital em varios paises.

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