Beatriz Martin Vidal

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Numa de minhas primeiras idas à feira de Bolonha, se eu não me engano em 2005, uma jovem ilustradora ficou me esperando no stand para me mostrar seu portfólio. Me lembro que não havia lugar e sentamos e ela abriu a pasta no chão. Ela tinha os esboços de um primeiro livro que estava fazendo para uma editora australiana. Eram pássaros e mais pássaros em preto e branco de uma beleza incrível. Nunca mais esqueci aquelas imagens. De volta ao Brasil, entrei em contato com ela e até tentei encomendar um trabalho, mas a distância e a língua não contribuíram para que isso se realizasse. Foi pela mão de Antonio Ventura, grande editor espanhol, responsável pelo catálogo da editora Jinete Azul, que eu a reencontrei. E como da primeira vez, me emocionei com todos os seus trabalhos, alguns ao alcance dos leitores brasileiros, publicados pela editora Pulo do Gato. Quando Antonio me disse que tinha feito esta entrevista especial para a Revista Babar e que ele gostaria de publicar na Emília foi um presente. A ambos agradecemos.
Dolores Prades | Revista EMÍLIA

Beatriz Martín Vidal nasceu na Espanha, em Valladolid. Estudou artes plásticas na Universidade de Salamanca e desenho na escola de Arte de sua cidade natal. Ganhou diversos prêmios nas categorias ilustração e quadrinhos. Trabalha como ilustradora para diferentes editoras na Espanha e em outros países. Em 2008 publicou Secrets, seu primeiro livro como autora e ilustradora, pela editora Lothian, da Austrália. Atualmente publica pela editora Thule.

Há dois anos colabora com o escritor Gustavo Martín Garzo no jornal El Norte de Castilla. Em relação à Beatriz Martín Vidal se cumpre aquilo que dizia Leonardo da Vinci, de que todo artista realiza sua obra à sua imagem e semelhança. E não só pela beleza de seus traços e a exatidão de suas palavras, que refletem fielmente um pensamento claro e elaborado, fruto de uma observação rigorosa do mundo, mas por sua imagem e aparência, pois ela mesma bem poderia ser um de seus personagens, que escapara de sua obra para conversar de maneira inteligente e sábia sobre seu trabalho e a ilustração em geral.

Antonio VenturaO que te sugere esta frase de Pablo Picasso: “Aos doze anos sabia pintar como Rafael, mas precisei de toda uma vida para aprender a pintar como uma criança”.

Beatriz Martín Vidal – Conhecendo a trajetória de Picasso e o virtuosismo acadêmico de suas obras da adolescência, sempre pensei que essas palavras se referiam ao seu caso concreto, e, por extensão, à arte do século 20; a como se passou de um grande domínio técnico e perfeição formal como objetivo final da pintura, a outro paradigma diferente. Ultimamente, existe outra interpretação possível que me deixa mais feliz. Essa volta à sinceridade da criança, ao instinto, pode se aplicar ao processo de aprendizagem de todas as disciplinas artísticas. É, provavelmente, a parte mais prazerosa do processo artístico, o momento em que se pode esquecer o que foi aprendido, porque foi incorporado. Transformou-se em instinto. Talvez seja necessário aprender a desenhar como Rafael para poder esquecer que aprendemos a desenhar, porque a armadilha da frase de Picasso é que não se trata se retroceder e desenhar como quando éramos crianças. Trata-se de desenhar tanto para sair pelo outro lado do virtuosismo, quanto para atravessar o campo do que sabemos e voltar ao do instinto. O artista japonês Katsushika Hokusai expressou também este pensamento quando disse: “Aos 5 anos tinha a mania de desenhar coisas. Aos 50, havia produzido muitos desenhos; contudo, nenhum, até os 70, tinha verdadeiro mérito. Finalmente, aos 73, aprendi algo sobre a verdadeira forma das coisas: pássaros, animais, insetos, peixes, campos e árvores. Portanto, aos 80 terei feito algum progresso, aos 90 me aproximarei um pouco mais na essência da arte. Aos 100 terei chegado, finalmente, a um nível excepcional e aos 110, cada ponto e cada linha de meus desenhos terão vida própria”.

ilus bird children

AV Creio que no fundo as duas frases têm o mesmo significado. Fiz essa pergunta porque muitas vezes, diante da obra de alguns jovens criadores – estou me referindo somente a ilustradores –, as pessoas têm a sensação de que chegaram à desconstrução sem haver construído nada antes. Sei que uma das ideias implícitas desse pensamento é quase a da saudade de um cânone, ou não, talvez esteja simplesmente ficando velho.

BMV – Às vezes também me pergunto se é necessário ter passado por uma fase de domínio do desenho, ajustado ao cânone clássico, antes de estilizar, desconstruir ou sintetizar. Não tenho uma resposta certa para isso. Mesmo entre os grandes pintores modernos há divergências. Alguns, como Picasso ou Degas, dominavam perfeitamente o desenho acadêmico antes de começar a distanciar-se desse tipo de representação. Outros não. Simplesmente seus desenhos de juventude não são tecnicamente bons, mas seu estilo da maturidade, sim. Creio que dominar o desenho clássico é importante, mais pelo processo que isso implica do que pelo que isso vai refletir em seu estilo. Ou seja, dominar o desenho supõe ir assimilando uma série de conceitos e sensações que não podem ser transmitidos verbalmente. E, por outro lado, um cânone dá um parâmetro claro para medir o progresso, a sensibilidade, muito importantes em um processo de aprendizagem. É uma grande pedra que pode ser usada para afiar as habilidades de cada um. Outra coisa, é que, em algum momento, foi o único instrumento para avaliar todo resultado artístico. Se alguém tem essa sensação de que não construiu nada antes de reconstruir é provavelmente porque a obra em questão carece de qualidade. E essa sensação, essa apreciação da qualidade é um cânone muito mais sutil, muito mais determinante. A falta de rigor, a falta de base, geralmente é percebida, seja qual for o estilo, porque faltam essas qualidades que se aprimoram precisamente, batendo de frente uma e outra vez contra um cânone, seja ele qual for.

AVVocê explicou muito bem e concordo plenamente com sua análise. Não pretendia creditar tudo ao domínio do desenho e da composição, mas nota-se quando a síntese ou a estilização não é original, mas um simulacro que, a meu ver, se transforma em maneirismo. Bem, queria que falássemos um pouco desse elemento tão citado nas análises dos últimos álbuns ilustrados, o componente narrativo das imagens.

BMV – O elemento narrativo de uma imagem é o que torna qualquer imagem o que entendemos por ilustração. Nesse sentido, toda imagem que faça referência a uma história externa é uma ilustração. Isso inclui, digamos, A última ceia, de Leonardo da Vinci, em comparação com a Gran Vía, de Antonio Lopez. O fato de conhecer a história a que se refere A última ceia define o significado dessa imagem. Se não conhecêssemos a história que essa imagem ilustra como obra de arte, seria algo totalmente diferente. Quando falamos de um livro, e não de uma imagem isolada, acrescentamos outro elemento que reforça esse componente das imagens, que é a sequência. Dependendo do tipo de livro, esse elemento será mais ou menos importante. Em uma novela ilustrada, a sequência não entra muito em jogo, uma vez que as imagens ficam isoladas umas das outras, separadas por blocos de texto. Mas um álbum ilustrado é uma sucessão contínua de imagens dentro das quais se integra o texto. Não abordamos um álbum ilustrado como abordamos uma novela ou um conto com ilustrações. Não podemos, porque as imagens são muito grandes, muito invasivas, e porque formam uma sequência totalmente consistente, sucedendo-se umas às outras sem interrupção, de modo que não é exatamente uma experiência literária, com intervenções gráficas, mas uma experiência visual e literária simultaneamente. A meu ver, é uma conjunção que só se dá, além do álbum, nas histórias em quadrinhos. Esse enorme peso narrativo faz com que, ao menos no meu caso, aborde a criação ou a ilustração de um álbum ilustrado de uma forma totalmente diferente de como enfrentaria qualquer outro trabalho e ilustração. Preciso saber qual é a história que as imagens vão contar e como essa história visual vai se articular com o texto, de modo que o resultado final seja algo que nem o texto nem as imagens podem contar separadamente. Creio que é essa essência do álbum ilustrado, algo que tento respeitar sempre que me deparo com ele, porque quando você lê os grandes álbuns ilustrados, os que realmente funcionam, você percebe que transcenderam o formato. Como os quadrinhos, que se transformaram em outra coisa, que não é exatamente uma forma literária, nem uma representação visual, tampouco uma simples soma de ambas. É uma forma diferente de narrar, com tantas possibilidades como qualquer outro meio de expressão artística.

AVGostaria que você citasse dois exemplos de álbuns que correspondem a essa forma de narrar, como você bem define, um produzido na Espanha e outro em outro país.

BMV – Um álbum ilustrado abarca várias formas diferentes de narrar, considerando a maneira como se entrelaçam as ilustrações com o texto. Podem harmonizar-se e ir, mais ou menos, na mesma direção, podem parecer duas histórias diferentes que, ao entrelaçar-se, criam uma terceira história e inclusive contradizer-se. Acho difícil dar exemplos precisos porque não existe um arquétipo. O álbum El lazo rojo [O laço vermelho], de Antonio Ventura (Edicions de Ponent, 2003), me parece um exemplo de como as imagens criam uma narrativa que joga com o texto, acrescentando camadas de significado, de maneira que a união das imagens e do texto não é gratuita. A história final, o que esse álbum conta, é a fusão de ambos e não se pode suprimir nenhuma das duas coisas sem mudar o significado. Outro exemplo é The three pigs [Os três porquinhos], David Wiesner (Clarion Books, 2001). É um caso totalmente extremo porque leva o jogo entre palavras e imagens até um ponto em que se rompe a estrutura narrativa e se constrói outra nova. Os protagonistas da história tomam consciência precisamente da articulação entre palavras e imagens em um álbum ilustrado e eles, como imagens, decidem ignorar o significado do texto. Além disso, é uma história extremamente divertida, é um livro que deixa clara a engrenagem de um álbum ilustrado. Uma história que não pode funcionar em nenhum outro formato e que torna evidente que o álbum ilustrado é uma forma particular de narração.

Vampiro e outros contos
El vampiro e otros cuentos (editora Anaya, 2008)

AVObrigado pela referência a O laço vermelho, mas é um álbum com o qual me sinto muito pouco satisfeito, talvez porque as imagens que eu tinha na cabeça não têm nada a ver com o que foi criado. Talvez por isso sou incapaz de ver se texto e ilustração funcionam como você disse. Mas vamos falar um pouco de sua obra. Sem falar de nenhum livro especificamente, gostaria que nos dissesse, distanciando-se o máximo possível, quais são suas intenções na hora de construir uma sequência de imagens.

BMV – Minha intenção, ao enfrentar qualquer trabalho, é que a inclusão das imagens faça sentido. Que integrem a obra e não se limitem a adornar um texto. Em um conto ou novela ilustrada a entrada é mais sutil, se somam matizes, as imagens criam algo como um filtro através do qual se contempla a história, como um vitral. Mas no álbum ilustrado, como já falamos antes, as imagens têm uma função diferente. Do meu ponto de vista, a única maneira de desenvolver graficamente um álbum é criar uma narração paralela à trama principal. Por isso, para um álbum, é imprescindível desenvolver primeiro um storyboard. Minha intenção quando crio uma sequência para um álbum é desenvolver uma história que não necessariamente coincida com a que desenvolve o texto. A narração é dupla, e é no jogo entre essas duas narrações que reside a alma do álbum; de tal forma que, quando estabeleço a sequência das imagens, tenho diante dos olhos todo o quadro criado, não só para o texto que aparecerá junto a cada uma das ilustrações, mas o efeito conjunto que ambos produzirão.

AVEm um álbum ilustrado, do meu ponto de vista, esse discurso gráfico a que você se refere supõe uma mudança no texto, por menor que seja. Quero dizer: o ilustrador é o leitor privilegiado que enfrenta o texto antes do público e, de alguma maneira, o modifica, de tal modo que o escrito deixa de ser o que foi. Por exemplo, em El pacto del bosque [O pacto do bosque, Gustavo Martín Garzo, El Jinete Azul, 2010] sua intervenção propicia uma história que redefine o conto. Não sei se estou sendo claro …

BMV – Sim, perfeitamente. Falei disso antes quando falava do quão invasivas são as imagens em um álbum. A mudança pode ser leve ou mudar drasticamente o significado do texto. A melhor forma de abordar a criação de um álbum ilustrado é entendê-lo de uma forma parecida com as histórias em quadrinhos. Isto é, entender que o autor tem de escrever um texto e, por outro lado, construir um roteiro gráfico. No mundo dos quadrinhos há duas maneiras: ou bem o autor escreve os diálogos e descreve brevemente o que deveria aparecer nas imagens, ou descreve com precisão, definindo número de vinhetas, o tamanho, a disposição, detalhando o que aparece em cada imagem. Naturalmente, isso só pode ser feito por um autor com bom conhecimento da narrativa gráfica, o que, em todo caso, não é o usual. De qualquer forma, histórias em quadrinhos e álbuns não são a mesma coisa, pois o texto tem muito mais peso no álbum e, trabalhando assim, o ilustrador pode sentir que lhe tiraram das mãos a parte fundamental de seu trabalho, mas se o autor quiser ter um controle praticamente total da história, essa seria a forma. Sinceramente, não aceitaria trabalhar dessa maneira, porque a alma de uma ilustração é sua parte da narrativa e me sentiria como um instrumento de desenho, não como uma ilustradora, mas esta é outra questão. Quando se é o autor do texto e das ilustrações, não há problema, o processo é bastante natural, pois se pode pensar ao mesmo tempo em imagens e texto, inclusive e fundamentalmente em imagens, porque nos casos em que autor e ilustrador são a mesma pessoa, normalmente se trata de ilustradores que preferiram escrever seus próprios textos e não de escritores que decidiram ilustrar. Quando se trata de duas pessoas, o autor do texto deveria procurar alguém cujo mundo criativo de que ele gosta coincidisse com o seu para estabelecer um pacto, colocar o texto em suas mãos e confiar que o ilustrador saiba o que está fazendo, entendendo que a obra final não vai ser só seu texto ilustrado, mas outra história, melhor, pior, parecida ou não com a que ele queria contar, mas, em todo caso, diferente. Ainda que nunca tenha visto o caso inverso, seria uma experiência interessante. Ou seja, partir de uma série de ilustrações e passá-las a um escritor para que realize essa segunda narrativa. Pessoalmente eu acharia bastante inquietante fazer isso, de modo que compreendo a hesitação de um escritor ante a ideia de dividir sua narrativa e compreendo que pode se sentir incomodado com o resultado final.

O pacto do bosque
O pacto do bosque (editora Pulo do Gato)

AVNão creio que, nesse caso, o escritor tenha se sentido incomodado com seu trabalho, por mais que tenha destoado um pouco do texto. Gostaria, agora, que me contasse um pouco de seu trabalho com o conto “Chapeuzinho Vermelho”. Diria que a sua Chapeuzinho e a que criou Carmen Segovia, a quem tive o prazer de editar, são duas representações, digamos, espanholas, que mais me inquietam.

BMV – É um conto maravilhoso. É curioso, pois quando somos pequenos não apreciamos a qualidade literária dos contos clássicos. Uma das melhores coisas de ser ilustradora é que redescubro histórias que achava que já conhecia. Chapeuzinho nem era meu conto favorito, mas quando terminei de ilustrá-lo, houve algo que jamais me aconteceu com um texto: quis que me encarregassem de fazer Chapeuzinho outra vez. Não porque não estivesse satisfeita. Ao contrário. Estou muito contente com o resultado. Mas gostei de ilustrar as Chapeuzinhos em sequência porque a história permite isso e, talvez, mais. Havia mais Chapeuzinhos na minha cabeça quando terminei o trabalho e gostaria de trazê-las para a luz algum dia. Quanto à natureza inquietante das ilustrações, a maioria dos contos clássicos é muito inquietante. Há um fundo que não foi domesticado devido ao que se criou e refinou em uma tradição oral de séculos. É mais mitologia do que literatura. Na história de Chapeuzinho Vermelho, concretamente, há uma escuridão terrível. As adaptações modernas de Cinderela, por exemplo, podem dar lugar a comédias amáveis, porque suas partes mais cruéis não são parte de sua essência, mas as histórias que inspiram Chapeuzinho caem no campo do terror, porque a alma desta história é muito escura. O medo é a chave deste conto. Embora acredite que as ilustrações permitam muitas liberdades em relação ao texto de uma obra, ainda mais uma tão elaborada quanto Chapeuzinho, é necessário respeitar esse espírito.
No que diz respeito ao meu trabalho, não digo que houve um esforço consciente para adaptar imagens à história. É algo mais orgânico que isso. Acredito que qualquer leitor pode entendê-lo se perguntarmos a ele que sabor lhe fica na boca depois de ler uma história. Não importa se com final feliz ou não, todas as histórias têm uma marca, que é o que recordamos quando pensamos nelas depois de um tempo. No caso de Chapeuzinho, a marca que fica é a da inquietação, da ameaça. Sabemos que ela acaba bem, sabemos que o lobo perde e que Chapeuzinho volta para casa, mas o que fica na memória é o medo, do bosque, do monstro disfarçado.
Todas as imagens surgem dessa sensação. Logo vem toda a parte plástica, o planejamento das cenas, a aparência de Chapeuzinho e do Lobo, as cores, enfim, a realização das ilustrações. É precisamente essa parte plástica que poderia ser totalmente diferente. Talvez algum dia eu desenhe outra versão de Chapeuzinho, que tenha uma aparência diferente, mas nunca poderia desenhar uma versão que não seja inquietante.

Chapeuzinho vermelho
Caperucita Roja (editora Oxford, 2010)

AVE falando em inquietações, não posso deixar passar, seu trabalho que, para mim, é o mais arriscado e, me perdoe a grandiloquência, fascinante. Me refiro à sequencia de imagens de Birgit, o texto de Gudrun Mebs.

BMV – Na verdade, é também para mim um dos trabalhos que me trouxe mais satisfação; principalmente considerando o resultado final, a edição impecável da El Jinete Azul, em que a impressão das ilustrações foi trabalhada com uma delicadeza que eu não tenho palavras para agradecer. Minha primeira ideia em relação às ilustrações era muito menos arriscada. Birgit é uma novela e no início eu a considerei como tal, tentando me aproximar de cada imagem separadamente. Sabia que seriam oito imagens no total, então tentei imaginar oito cenas, oito momentos diferentes. No entanto, quando comecei a ir por esse caminho, percebi que não era o que a história pedia. A história de Birgit é muito direta, muito linear, não é uma história que promove nenhuma virada, mudança de cenários, ou situações diferentes. A beleza do texto é a sua simplicidade. Uma menina narra a morte de sua irmã. Somente se ouve a voz da menina e só se conhece o seu ponto de vista. Cheguei em um ponto onde pensei que só tinha uma escolha: ou as imagens refletiam somente a menina narradora, ou representavam Birgit. E a partir daí tudo fluiu com certa rapidez. Se representasse apenas a narradora, o ponto de vista gráfico seria oposto ao texto, de certa maneira as imagens te colocariam para fora da história, pois o narrador seria visto de fora. Portanto quem tinha aparecer era Birgit; mas Birgit, a menina doente, na realidade só aparece realmente na história. O que está realmente presente são os pensamentos sobre ela, sobre o que a doença pode estar fazendo nela. Os pensamentos quase mágicos de uma criança pequena que tenta imaginar, traduzir o que os adultos contam para poder entender. Acho que foi isso que me levou à sequência de imagens que resultaram no final. Nunca tinha feito nada parecido.

Birgit
Íris (editora Pulo do Gato)

Nunca tinha pensado criar uma sequência tão consistentemente para uma novela, mas assim que tive a ideia de que as imagens tinham que representar um processo, soube que a sequência tinha que ser muito precisa. O resultado final é bom porque foi a história que me conduziu até ali. E é curioso, porque esteticamente pode parecer o contrário. Assim que eu tive a idéia da sequência, a abordagem gráfica que me veio não era nada realista. É evidente que as ilustrações são simbólicas, mas me parecia que equilibravam muito bem o realismo do texto e também sugeriam o ponto de vista de uma menina tentando descobrir um processo tão perturbador, cujas consequências só pode intuir. Este é, em linhas gerais, o caminho mental que levou às imagens de Birgit. Porém, quando cheguei a essa solução relutei um pouco na hora de fazer a proposta, pois me parecia que eu tinha me afastado muito do que se poderia esperar quando te dão um texto como o que eu tinha, e porque não tinha certeza de poder explicar coerentemente por que queria ir por esse caminho. A única forma que me ocorreu para explicar o que eu queria fazer era mostrar, e já que era uma sequência, fazer ela completa. De tal maneira que no fim mandei as oito ilustrações finalizadas, se bem me lembro; e a recepção positiva e a compreensão do que eu queria fazer foi uma das maiores satisfações profissionais que já tive. Na verdade, este é o tipo de trabalho que depende inteiramente do editor para quem você está trabalhando, não pelas possíveis objeções, mas porque, se estivesse trabalhando para alguém em quem não tivesse tanta confiança, eu não teria sugerido essa proposta gráfica.

El Norte de Castilla
Ilustração para
El norte de Castilla

AVPara terminar, quais são teus projetos futuros nos quais você já está trabalhando?

BMV – Neste momento estou terminando um livro de imagens. É um projeto baseado nos contos de fadas clássicos. O texto é meu e não foi feito sob encomenda para nenhuma editora. Trata-se de um projeto absolutamente pessoal. Era algo que eu precisava fazer, depois de trabalhar tanto com textos de outros autores. Consiste numa série de imagens, cada uma das quais se apoia em um texto muito curto. Este texto define o conceito de cada imagem, lhe dá uma interpretação e completa seu significado. O título provisório é O livro das perguntas. Cada ilustração é uma pintura a óleo, de modo que o processo de realização foi longo e bastante complicado, mas agora que está quase finalizado, acho que valeu a pena apostar nessa técnica. Por outro lado, colaboro regularmente com o escritor Gustavo Martín Garzo, ilustrando seus artigos para o jornal El Norte de Castilla; são quase dois anos de colaboração e começo a considerá-lo como um projeto de desenvolvimento contínuo. Para o próximo ano tenho sobre a mesa de trabalho um romance, Drácula. Uma obra como esta é uma oportunidade incrível para qualquer ilustrador. Acho que já me referi que é necessário apropriar-se das histórias para ilustrá-las. Você as lê, se apropria delas e quando assimiladas, você pega as imagens que surgem e as põe no papel. É como semear textos para colher imagens. Raramente você tem a oportunidade de fazer isso com uma obra tão importante como Drácula. Estou ansiosa para ver como começam a se materializar as imagens. Finalmente, algo que eu quero continuar fazendo é trabalhar em projetos pessoais. Para o outro ano, minha intenção é fazer pelo menos mais um livro ilustrado. É um formato de livro que pelo qual estou fascinada e gostaria de continuar explorando as possibilidades que oferece.1Entrevista publicada originalmente na Revista Babar, em 9/12/2011, atualizado em abril 2017.

Tradução Thais Albieri

Sites
www.beavidal.com | beatrizmartinvidal.blogspot.com

Notas

  • 1
    Entrevista publicada originalmente na Revista Babar, em 9/12/2011, atualizado em abril 2017.

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  • Antonio Ventura

    Nasceu em Madri, foi professor do ensino público durante 19 anos, criador da coleção Sopa de livros, da Editora Anaya, em 1997, onde foi diretor de publicações. Atualmente, é editor da Jinete Azul. Foi fundador da revista Babar (1989) e da revista Bloc (2007) e dirigiu as publicações infantis da Oxford University Press da Espanha. Tem mais de trinta livros publicados para adultos, jovens e crianças. É membro da Rede de Apoio Emília.

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