Biblioteca escolar, qual o sentido?

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A biblioteca escolar tem sido tema frequente de diversos setores em momentos diferentes da história recente de nossos países, especialmente entre profissionais da biblioteconomia, alguns educadores, e também entre setores associados à produção do livro e, às vezes, tem sido objeto da atenção de organizações internacionais e de governos nacionais e locais.

Por isso, gostaria de iniciar com uma breve história recente dos revezes sofridos pelas bibliotecas escolares em alguns países da região. Talvez assim possamos entender melhor sua situação atual. Enquanto me refiro em particular à Colômbia e a alguns países de língua hispânica, tenho a certeza de que não se trata de casos isolados, pois as políticas educativas de nossos países têm seguido caminhos muito semelhantes, orientações comuns, têm assistido às mesmas modas, muitas vezes impostas a partir de outras latitudes.

Levando em conta que a história do Brasil difere em vários aspectos, farei posteriormente uma breve referência a alguns pontos específicos.

Desde os anos 1970, a maioria dos nossos países deu início a processos de reformas de seus sistemas de ensino sob a consideração de que a democratização da educação tinha afetado seriamente a sua qualidade e que era necessário avançar em processos de melhoria com foco em uma renovação curricular. Essa democratização estava vinculada a milhares de crianças de classes baixas, que seriam treinadas para o trabalho e para uma incorporação à sociedade com a prática cívica, a qual, no entanto, não era completa, pois admitia apenas certos deveres e poucos direitos, e a leitura de literatura começou a perder terreno na escola.

Para os países da região, essas reformas foram estabelecidas pela Organização dos Estados Americanos (OEA), que na época teve um papel muito ativo no campo da educação e emitia orientações programáticas por meio do Comitê Interamericano para a Educação, a Ciência e a Cultura e seu Programa Regional de Desenvolvimento Educacional. O lema de então foi a tecnologia educacional¸ através da qual se pretendia resolver os problemas da qualidade da educação, esquecendo-se que esses problemas têm uma origem política e não se resolvem com soluções tecnológicas. Um dos pilares desse projeto foi a criação de bibliotecas escolares como centros de recursos para a aprendizagem, (desde então a expressão foi criada), como também nesta altura começaram a conduzir pesquisas sobre as limitações do livro didático como eixo do processo de ensino/aprendizagem e começaram a surgir as primeiras desconfianças no futuro do livro como único suporte da informação e do conhecimento, o qual supostamente seria substituído pelos meios de comunicação da época.

Foram os anos em que a TV foi proposta para a sala de aula, pensando que poderia no futuro substituir o professor: salas de aula equipadas com aparelhos de TV e centros de recursos para a aprendizagem com todo tipo de materiais educativos, não necesariamente livros exceto aqueles produzidos pelas crianças, seriam as ferramentas para transformar a educação. Também foi a era do “ensino à distância”, especialmente para os setores da população que não tinham à escola.

No entanto, junto com essas propostas, surgiram os primeiros programas de grande escala de bibliotecas escolares, graças a educadores e bibliotecários que não reduziram o futuro da educação à tecnologia. Colômbia, Costa Rica, Venezuela e Peru trabalharam juntos em um projeto regional que produziu como resultado o que se chamou o “Modelo flexível para um sistema de bibliotecas escolares”, que a OEA apresentou como proposta a seus países membros.

Neste momento, a indústria editorial nacional de alguns países começou a se consolidar e, sem abandonar seu produto preferido: o livro didático deu início à diversificação da sua produção com livros e materiais informativos complementares aos processos educativos e com a literatura infantil. Foi o início da produção de livros para crianças em muitos de nossos países. Estamos na década de 1980.

Esta pode ser chamada da primeira onda do apogeu da biblioteca escolar. No entanto, os projetos mencionados rapidamente desapareceram com as mudanças nas políticas educacionais e por falta de vontade de garantir os grandes investimentos necessários às bibliotecas, não apenas em libros, mas especialmente em profissionais encarregados. Não havia também muita segurança sobre a sua utilidade, porque, como eu disse, começava-se a achar que, não apenas o livro didático, mas também o livro impresso, em geral, estava em vias de desaparecer.

Ainda assim, e talvez justamente por isso, foram feitas distribuições em massa de livros didáticos para as escolas, sob a pressão das grandes editoras que produzem esses textos, as mais importantes e que tinham o maior poder de influência nas decisões das políticas públicas educacionais, distribuições financiadas pelo Banco Mundial, via endividamento externo dos países.

Passou um pouco mais de duas décadas até que se voltasse a falar das bibliotecas escolares. Enquanto isso, começaram a construir as grandes bibliotecas públicas, cujos edifícios são agora orgulhosamente exibidos, com a ideia de que elas substituiriam a biblioteca escolar. Refiro-me especialmente ao caso colombiano.

A indústria editorial espanhola, que não se conformava em perder seu mercado mais importante, a América de língua espanhola, e, dentro dele, a escola, começou a se consolidar na região sob o amparo de leis do livro que a isentavam de impostos, dando início a projetos de adoção de libros para as escolas, já não apenas didáticos, denominados Planos Nacionais de Leitura. Um esclarecimento: tratava-se apenas de entregas de livros, sem que isso fizesse parte de projetos que integrassem a biblioteca escolar ou acompanhando de programas de formação de profesores, com exceção de workshops esporádicos, sem continuidade. Também não foram previstas mudanças nos tempos e nos espaços das instituições voltados para a prática de leituras de livros diferentes do livro didático. Em muitos casos, esses livros foram recebidos pelas escolas e nunca foram usados.

No início deste século, depois de consultar a sociedade civil e acadêmica de alguns países, começou-se a pensar em políticas públicas. Alguns anos antes, em 1992, o Centro Regional para o Fomento do Livro na América Latina e no Caribe (Cerlalc) havia convocado uma primeira reunião no Rio de Janeiro sobre políticas públicas de leitura.

As bibliotecas escolares voltaram a encontrar novas oportunidades nessas políticas, como projetos nacionais associados mais uma vez à melhoria da qualidade da educação. Países como Argentina, Chile e México, com modelos diferentes, começaram a introduzir nas suas políticas de educação a questão das bibliotecas escolares e, até mesmo na sua legislação, a obrigação de organizá-las no interior das escolas.

Não é à toa que novamente algumas organizações internacionais, especialmente a Organização dos Estados Iberoamericanos para Educação, Ciência e Cultura (OEI) e algumas agências espanholas, como a Agência de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento, do Ministério dos Assuntos Exteriores da Espanha, com o apoio algumas editoras, como Santillana e SM, tenham começado mais uma vez a estimular o tema das bibliotecas escolares nos países da região. Eles estão agora exercendo o papel que na época correspondia ao Banco Mundial, não tão diretamente, mas através do estabelecimento de relações estreitas com os governos e da abertura e da colonização de espaços na sociedade civil e acadêmica.

Uma pesquisa recente sobre a situação das bibliotecas escolares na Argentina, realizada também no México, Chile e Brasil, promovida pelo Ministério da Educação, via Plano Nacional de Leitura da Argentina e Programa de Bibliotecas Escolares e Especializadas do mesmo país, patrocinada pela OEI e pelo Ministério de Assuntos Exteriores e de Cooperação da Espanha, destaca na sua introdução a importância da: “ampliação das coleções das bibliotecas com materiais literários diversos e atraentes (…) adequação e atualização dos acervos bibliográficos”.1Las bibliotecas escolares en Argentina: un diagnóstico desde sus actores. Buenos Aires: SM, 2010.

Durante todo esse tempo, as coisas no Brasil aconteceram por vezes de forma parecida e outras, diferente. Antes de mais nada, seria preciso dizer que nenhum país jamais fez distribuições de vários tipos de textos de forma tão massiva e tão antecipada quanto o Brasil, primeiro de livros didáticos e, em seguida, de literatura, especialmente literatura brasileira. A partir dos anos 1980, foram distribuídos livros para as Salas de Leitura, nome que foi dado à biblioteca escolar e que, segundo afirma Elizabeth Serra, negou por um tempo o reconhecimento da biblioteca escolar e a oportunidade de instalar na escola o conceito de biblioteca.

Entre 1982 e 1985, a FNLIJ promoveu o programa Ciranda de livros, com financiamento do setor privado, pioneiro no mundo, com uma distribuição que chegou a todas as escolas primárias, com uma coleção de livros de literatura de qualidade.

No entanto, foi preciso esperar até 1997 para falar de biblioteca escolar, ano em que foi instituído o PNBE (Programa Nacional de Bibliotecas Escolares), via comunicado do Ministério da Educação. Entre outras coisas, esta resolução estabelece a aquisição de obras de literatura brasileira. Mais tarde, no ano 2000, foi adicionada a obrigação de fornecer materiais didáticos pedagógicos para a capacitação de docentes.

A regra mais recente, a lei 12244 de 2010, determina a universalização das bibliotecas nas instituições de ensino fundamental para antes de 2020. Meta que para alguns parece inalcançável, ao menos nas condições exigidas.

Após esta breve história, a primeira pergunta que surge é: Qual é o motivo de não se ter alcançado as metas de sociedades com pleno acesso à cultura escrita e, principalmente, na qual as pessoas recorram a ela como meio para crescer na sua condição de seres humanos, que pensam, agem e se apropriam do capital simbólico representado na literatura, embora não tenham faltado ações de distribuição em massa de livros nas escolas e até mesmo nos lares?

Não acredito que exista uma resposta única a esta pergunta. Penso que convergem muitos fatores. O primeiro, ideológico. Não há interesse em formar leitores críticos que possam questionar a ordem estabelecida. E não é questão de que exista um poder invisível que determine isso. É justamente porque este poder não pode ser definido que torna difícil falar sobre ele. Quem nega a necessidade de formar leitores críticos, cidadãos responsáveis, ​​crianças que gostem de ler? Em nenhum plano de educação ou de cultura esse direito é negado. Pode ser que não seja mencionado de forma explícita, mas não se nega.

O que eu penso é que tanto educadores como bibliotecários têm aqui uma questão que requer a nossa atenção, temos muitas perguntas a fazer e acho que a biblioteca escolar pode ser um espaço para essas perguntas.

A breve informação com a qual comecei minhas palavras podem nos ajudar a levantar alguns temas para reflexão, por exemplo: Os múltiplos interesses que inspiraram a implantação de bibliotecas escolares, ao menos nos países latino-americanos de língua espanhola, desviaram-na do seu objeto central? Talvez questões como esta nos ajudem a pensar nas bibliotecas de outra forma e a escolher para elas objetivos que estejam mais ligados à democratização da cultura escrita e ao acesso mais equitativo à leitura e à escrita por uma população tradicionalmente privada delas.

Acredito que as funções da biblioteca escolar são de caráter político, ético e educacional, que elas não estão separadas do papel geral da escola e que seu cumprimento não pode acontecer em um trabalho isolado da sala de aula. Mas também acredito que a biblioteca da escola tem tarefas específicas que lhe conferem uma identidade própria e uma razão para existir dentro da escola e do sistema educacional.

Penso também que, enquanto a biblioteca escolar compartilha os seus objetivos com a escola, esta última não pode cumprir plenamente as suas metas se prescinde da primeira.

De acordo com o Manifesto da UNESCO, o objetivo da biblioteca escolar é fornecer “aos alunos as ferramentas que lhes permitirão aprender ao longo de toda a sua vida e desenvolver a sua imaginação, tornando possível que cheguem a ser cidadãos responsáveis”.

Acredito ser necessário esclarecer esses fins.

Para isso, gostaria de compartilhar algumas reflexões sobre o que considero ser o papel central da biblioteca escolar: trabalhar, como eu disse, com o apoio da sala de aula para garantir que todos os estudantes tenham oportunidades melhores e mais diversas de acessar a cultura escrita em todas as suas dimensões. Acredito que todas as funções da biblioteca escolar estão relacionadas a cumprir uma obrigação da sociedade e do Estado: garantir a todos o direito de acesso à cultura escrita, do qual deriva seu caráter político, ético e educacional. Direito que se exerce ao longo da vida e não apenas enquanto se permanece na escola.

Mas por que o acesso à cultura escrita é um direito que o Estado deve garantir?

O Prof. brasileiro Luiz Percival Leme Britto disse há um ano em uma conferência em Medellín, na Colômbia:

É fundamental para todas as pessoas que trabalham na educação, com leitura e escrita, reconhecer que nunca no mundo, incluindo a América do Sul, a escrita foi tão necessária nem tão usada como nos dias de hoje; nunca em nenhum momento da história da América se leu tanto como se lê hoje, e isso não tem nada a ver com a promoção da leitura, mas com uma determinação estrutural do sistema de produção, que objetivamente exige de todos a necessidade de alfabetização, e em alguma medida a necessidade de ler e escrever.

Em contrapartida, a escritora argentina Graciela Montes disse:

A soma dos textos é o tecido, a imensa tapeçaria na qual as sociedades (…) deixam registro expresso dos universos de significação que foram construindo ao longo do tempo e das circunstâncias.
(…)
Para aqueles que vivem em uma sociedade da escrita, ler não é o mesmo que não ler, entrelaçar-se e tornar-se parte da trama não é o mesmo que permanecer mudo e à margem. 2Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, Biblioteca da escola: direito de ler. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional: 2002.

As palavras anteriores não são juízos de valor, não determinam a superioridade da cultura escrita frente a cultura oral – tema que, por sua vez, foi debatido e contestado amplamente por muitos estudiosos3Graciela Montes, La gran ocasión. Buenos Aires: Ministerio de Educación, Ciencia y Tecnología. – ou afirmam que a escrita seja um fim em si mesma4A respeito pode-se consultar a diversos autores na antologia compilada por David Olson e Nancy Torrance: Cultura escrita y oralidad. Barcelona: Gedisa, 1995., mas sim insiste no fato de que o acesso à cultura escrita na sociedade atual é uma necessidade sem a qual outros direitos e posibilidades de existência ficam extremamente limitados.

É muito importante manter presente esta condição de meio e não de fim que tem a cultura escrita, pois disso depende muito a forma como a escola, e com ela a biblioteca, cumpre a sua tarefa de formar leitores.

O acesso à cultura escrita entendida como um meio pode se dar em duas dimensões: uma primeira, imediata, para um uso pragmático associado às necessidades do trabalho, ao exercício da cidadania responsável (ou seja, limitada) e ao lazer e ao consumo. É a dimensão imposta pela sociedade atual, seu modelo de produção, como lembra o prof. Leme Britto, com seu correspondente, o consumo. E outra, aquela que oferece possibilidades de ir além, como meio para pensar, refletir, distanciar-se da realidade, questionar, entender, conhecer e principalmente como meio de apropriação do capital simbólico representado na literatura, para fazer parte do tecido de significações de que fala Graciela Montes.

A escola, em geral, oferece a primeira dimensão deste acesso, aquela que a sociedade pede: que as crianças saibam ler e escrever com fins práticos, funcionais e rentáveis.

No entanto, ambas as dimensões são necessárias e de ambas a escola e a biblioteca deveriam se ocupar. Mas a questão central é: Como fazer para que nenhuma das duas se converta em instrumento de sujeição e, ao contrário, sejam meios de emancipação?, como diria Paulo Freire.

Geralmente, a escola costuma separar estas duas dimensões e rebaixá-las, uma à condição de leitura utilitária, que se aprende na sala de aula por meio de exercícios e testes de compreensão, e outra à leitura recreativa, que se promove para “adquirir o gosto pela leitura”, a chamada leitura lúdica, que às vezes, mas cada vez menos, se propõe como meio para adquirir uma certa “cultura”, mas que geralmente é oferecida como fuga. Esta última leitura é aquela a que a escola atribui como sendo responsabilidade da biblioteca.

Esta divisão entre leitura para dar acesso à informação e leitura de lazer, uma a encargo da sala de aula e outra da biblioteca, tem levado a muitas confusões e simplificações.

De um lado, produz a ideia de que a leitura para a informação é uma leitura útil, mas ao mesmo tempo reduz a informação ao dado, à cifra, ao episódio, à anedota, a descontextualiza.5“la escritura como la oralidad es un medio para lograr diversos fines, no es un fin en sí misma” afirma David Olson. La cultura escrita como actividad metalinguística. En op. cit. Em relação a esta leitura, são atribuídas à biblioteca algumas funções com as quais, aparentemente, os alunos alcançam o acesso à informação, ou melhor, acumulam informações, e a biblioteca se converte em um espaço de gerenciamento de bancos de dados, de ferramentas digitais, de acesso às novas tecnologias e, às vezes, de algumas fontes bibliográficas que ainda são usadas para não perder o hábito, o que também não impede que os alunos só façam uso de cópias baixadas da Internet.

A este respeito, em um texto sobre o tema, elaborado em co-autoria com o Professor Didier Alvarez Zapata, propusemos a necessidade de que a escola assumisse:

“Uma nova postura frente à informação e ao conhecimento, ao considerar que estes podem ser questionados, comparados, relacionados, contextualizados, abordados de diferentes perspectivas, e que são objetos de uma construção coletiva, na qual a experiência e o conhecimento de todos os envolvidos nesta construção contam e têm valor. Tudo isso no horizonte pedagógico proposto por Paulo Freire com suas ideias libertadoras sobre o saber, ao dizer que “quanto mais criticamente for exercida a capacidade de aprender tanto mais se construirá e desenvolverá o que venho chamando de ‘curiosidade epistemológica’, sem a qual não alcançamos o conhecimento total do objeto”.6Para aprofundar sobre o tema consultar: Álvarez Zapata, Didier y Silvia Castrillón. Biblioteca escolar. Bogotá: Asolectura, 2013.

A segunda grande dimensão que expus acima é a de uma leitura que, nos tempos atuais, é “uma leitura escassa”, nas palavras do Prof Britto. E é escassa justamente porque o que ela pode trazer como possibilidade para o conhecimento de nós mesmos, do mundo e da nossa relação com o mundo e com os outros, é contrário ao que a sociedade propõe. É essencialmente a leitura da literatura, reivindicada como um direito pelo grande brasileiro Antonio Candido, e também a leitura de filosofia e de outros textos teóricos.

É a leitura que nos permite “aprender a ler uns aos outros, embora isso seja difícil (…) compreender mais e melhor e talvez com mais profundidade o que significa viver e morrer”, segundo palavras de Fernando Bárcena.7Paulo Freire,Pedagogía de la autonomía. México: Siglo XXI, 1997.

O que eu venho propondo, em encontros como este, em reuniões com professores e bibliotecários do meu país, é a necessidade de que a escola se responsabilize por essa leitura. Que abra espaços que permitam a descoberta por seus alunos das possibilidades que oferece a leitura da literatura, espaços e tempos dentro da escola para a “leitura escassa” e para a conversação.

E é nesta tarefa em que acredito que a biblioteca escolar encontra o seu sentido mais profundo e seu papel mais necessário: fazer da “escola uma comunidade de leitores e escritores”, como sugeriu Delia Lerner.8Fernando Bárcena, El alma del lector: la educación como gesto literario. Bogotá: Asolectura, 2012.

Abrir a possibilidade para o encontro entre leitores de todas as idades, um encontro enriquecido pela conversa. Encontros que envolvam alunos, professores e membros da administração.

Por tudo isso, a escola deveria ser a “grande oportunidade”, como disse Graciela Montes, e, para isso, segundo Graciela, deve “garantir um espaço e um tempo, textos, mediações, condições, desafios e companhia para que o leitor se instale na sua posição de leitor […] (“que é uma postura única, inconfundível, que requer um certo recolhimento e um distanciamento, um colocar-se à margem para, de lá, produzir observação, consciência, viagem, pergunta, sentido, crítica, pensamento) […]

“A escola deve encorajar [as] ousadias [das crianças e dos jovens], acompanhar suas hesitações, contribuir para a sua poética, fortalecer a sua condição de sujeitos de uma experiência, ajudá-los a ampliar essa experiência, dar ouvidos às narrativas, às intervenções, aos registros, facilitar a sua entrada na tapeçaria cultural e dar a eles possibilidades de se entrelaçarem na sua trama…”9DeliaLerner, Leer y escribir en la escuela: lo real, lo posible y lo necesario. México, FCE: 2001.

E para isso a escola conta com a biblioteca e com o bibliotecário.

E é aí onde também faz sentido um trabalho da escola com a comunidade, trabalho em que a biblioteca escolar tem um papel central: envolver a comunidade neste propósito.

As pessoas dentro e fora da escola precisam de espaços que permitam descobrir essa leitura, que não é a pragmática, associada com o trabalho, nem a recreativa, ligada ao consumo, mas a leitura que se propõe uma busca de sentido, a “leitura escassa”, de que fala o prof. Britto, a qual, nas palavras de Marina Colasanti, “aciona o sistema de atenção e de alerta”.10Marina Colasanti, Minha guerra alheia. Rio de Janeiro, Record: 2010.

E desta forma adquire sentido o trabalho com a comunidade, um trabalho direcionado não somente a que os alunos descubram um sentido para a leitura da literatura associada a um sentido para a vida, a vida humana, mas também a incluir aqueles que estão fora da escola, que sempre estiveram ou quando fizeram parte não tiveram a oportunidade de encontrar sentido para a leitura.

Em geral, a comunidade e especialmente os pais são convocados a serem sócios da aprendizagem de seus filhos ou para entretê-los com atividades aparentemente relacionadas à aquisição do gosto pela leitura dos seus filhos, mas não em sua condição de sujeitos que também têm o direito à leitura.

Em vez disso, criar espaços onde a comunidade se sinta chamada pela leitura, descubra que lhes diz respeito, que tem a ver com ela, que é capaz de ler e escrever, por meio de práticas socializadas de leitura de textos literários e conversas sobre esses textos, abre novas perspectivas para todos. Espaços onde todos, alunos, professores e membros da comunidade, possam estabelecer com os textos relações que lhes permitam encontrar na leitura uma maneira de tornar seu um patrimônio da humanidade e fazer parte do tecido de sentidos que a sociedade constrói para não permanecer “mudo e à margem”.

Eu acredito nisso, e acho que a melhor forma de atingi-lo é por meio da biblioteca escolar, que está convocada a realizar um trabalho, com o apoio da aula e todos os professores. E é o bibliotecário, leitor convencido da necessidade da leitura e da literatura, o responsável por envolver os professores e gestores neste propósito, se não quisermos que a maioria de nossas crianças e seus pais permaneçam excluídos desse direito à cultura escrita e em especial à literatura. E à melhor literatura.

E quando falo de biblioteca, falo da necessidade de que os livros, os bons livros, livros de muito boa qualidade, cheguem às escolas no âmbito de programas de bibliotecas escolares bem concebidas, com profissionais responsáveis, e também com professores formados como leitores, bibliotecas acompanhadas por transformações nos espaços e nos tempos das escolas, que levem a leituras e escritas compartilhadas, a conversas, debates e discussões sobre elas, tudo isso para fazer das escolas “comunidades de leitores e escritores”.11Texto apresentado no III Encontro Escola SESC de Bibliotecas Escolares, em 25 de setembro de 2013, no Rio de Janeiro.

Agradeço às observações de Elizabeth Serra, que permitiram detalhar o contexto brasileiro.

Notas

  • 1
    Las bibliotecas escolares en Argentina: un diagnóstico desde sus actores. Buenos Aires: SM, 2010.
  • 2
    Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, Biblioteca da escola: direito de ler. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional: 2002.
  • 3
    Graciela Montes, La gran ocasión. Buenos Aires: Ministerio de Educación, Ciencia y Tecnología.
  • 4
    A respeito pode-se consultar a diversos autores na antologia compilada por David Olson e Nancy Torrance: Cultura escrita y oralidad. Barcelona: Gedisa, 1995.
  • 5
    “la escritura como la oralidad es un medio para lograr diversos fines, no es un fin en sí misma” afirma David Olson. La cultura escrita como actividad metalinguística. En op. cit.
  • 6
    Para aprofundar sobre o tema consultar: Álvarez Zapata, Didier y Silvia Castrillón. Biblioteca escolar. Bogotá: Asolectura, 2013.
  • 7
    Paulo Freire,Pedagogía de la autonomía. México: Siglo XXI, 1997.
  • 8
    Fernando Bárcena, El alma del lector: la educación como gesto literario. Bogotá: Asolectura, 2012.
  • 9
    DeliaLerner, Leer y escribir en la escuela: lo real, lo posible y lo necesario. México, FCE: 2001.
  • 10
    Marina Colasanti, Minha guerra alheia. Rio de Janeiro, Record: 2010.
  • 11
    Texto apresentado no III Encontro Escola SESC de Bibliotecas Escolares, em 25 de setembro de 2013, no Rio de Janeiro.

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  • Silvia Castrillon

    Presidente da Associação Colombiana de Leitura e Escrita (Asolectura), é formada em Biblioteconomia e especializada em Educação. É uma das mais destacadas autoridades latinoamericanas no desenvolvimento de bibliotecas. Especialista em políticas públicas de apoio à leitura e escrita, trabalha na concepção e implantação de projetos e campanhas de fomento ao livro e à leitura e bibliotecas públicas e escolares. Durante sua direção, a Fundação para o Fomento à Leitura (Fundalectura) recebeu em 1995 o premio IBBY-ASAHI, a mais importante distinção outorgada ao trabalho na promoção de leitura. Participa do comitê executivo da IBBY (International Board on Books for Young People) e é consultora de organismos internacionais como a Unesco, a Organização dos Estados Americanos, Organização dos Estados Íbero-Americanos, Cerlalc e ONU, entre outros. Autora do livro O direito de ler e de escrever (Pulo do Gato).

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