Criança é vândala

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Criança Zapatista, foto da 1ª cartilha da “Resistência Autônoma”.

O conceito de infância mostra-se bastante mutável ao longo dos anos e de acordo com a situação sociocultural em que vive a criança. De modo geral, na maioria dos meios os infantes são caracterizados como “irresponsáveis”, querendo dizer que vivem em um mundo paralelo ao mundo das responsabilidades práticas e intelectuais, das coisas sérias e válidas. Mas percebemos que esta visão, de maneira implícita, sugere a inferiorização de quem não está dentro de certo padrão estabelecido de mundo, e reparando com um olhar mais aguçado e crítico vemos que este tipo de definição é feita por parte de quem, por ter noções fixas de mundo e a detenção do dinheiro através do trabalho, ou seja, um universo “responsável”, se coloca em posição de superioridade, desconsiderando os valores que fogem às suas regras, instituindo-se como regente do mundo que criou e também do das crianças. Então as definições de criança e infância, passam pela intenção de quem pretende a definir.

“Pode-se dizer que elas pertencem, de fato, a uma cultura diferente – talvez uma anticultura ou contracultura” (Hunt, 2010), e isso acaba por afetar (e afetou ainda mais no passado) a produção artística voltada para as crianças, pois essas características despidas de regras são vistas como nocivas, e tentam assim regrá-las, porém de uma forma que pressupõe seu gosto e suas necessidades enquanto leitores, e a leitura proporciona prazer, mas também atividade intelectual. E ainda não é um fator de preocupação a qualidade artística completa de um livro infantil, ou melhor, o que transita entre o estético e o político.

Essas produções existem, ainda raras, pois não há o costume de se dar voz ou instrumento para ela quando se trata de uma criança. Porém, os pais também precisariam ampliar a sua visão sobre o potencial de entendimento e percepção das crianças para que, antes de oferecer um objeto de arte, como um livro, filme ou música, não o veja apenas como um entretenimento a fim de deixar a criança fora de ação, para não “dar trabalho”, e sim que merece obras de qualidade artística e que as faça questionar.

O “ser-criança” possui características comuns entre si, que vão desde apectos psicológicos à fisiológicos, mas também cada criança, por não ter esquemas fixos de relações (de mundo) em si, desenvolve uma maneira própria de lidar e sentir com coisas que são estranhas a ela.

“Serão mais abertas ao pensamento radical e aos modos de entender os textos; serão mais flexíveis em suas percepções de texto. E, como a brincadeira é um elemento natural de seu perfil, verão a linguagem como outra área para exploração lúdica. Elas são menos limitadas por esquemas fixos e, nesse sentido, têm uma visão mais abrangente.”
Peter Hunt. Crítica, teoria e literatura infantil, 2010, pág. 92.

Este motivo é bom o bastante para ouvirmos e darmos voz às crianças, assim como não deveríamos desprezar a sua capacidade de propor atitudes revolucionárias, devíamos observar e dar mais valor ao processo de desaprendizagem, pois ao tornarmos as coisas cristalizadas na cabeça é difícil ter atitudes fora deste padrão, e difícil pensar o mundo de forma livre e ter a ousadia necessária para mudá-lo.

“Falar à criança, no Ocidente, pelo menos, é dirigir-se não a uma classe, já que não detém poder algum, mas a uma minoria que, como outras, não tem direito a voz, não dita seus valores, mas, ao contrário, deve ser conduzida pelos valores daqueles que tem autoridade para tal: os adultos. São esses que possuem saber e experiência suficientes para que a sociedade lhes outorgue a função de condutores daqueles seres que nada sabem e, por isso, devem ser-lhes submissos: as crianças.”
Maria José Palo & Maria Rosa D. Oliveira. Literatura Infantil: voz de criança”, 2006, pág. 5.

Muitas vezes também vemos as crianças serem tratadas como incapazes de reflexões sobre o mundo e sobre elas mesmas, as tratamos como se fossem “cafés com leite” na brincadeira de “filosofar” e experimentar. Quando na verdade, exercem uma interpretação de mundo criadora, e as inquieta pensar seu lugar nele e o que nele há. A criança, cada uma a sua maneira, está sempre atenta, tentando entender onde está inserida e o que acontece também dentro dela, fazendo uma “escuta poética”1Expressão de Severino Antônio, extraída deste vídeo, sobre escutar e educar a criança. constante do mundo.

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Ilustração de Niños invisibles, Tyto Alba.

Na verdade, seria preciso que a criança fosse valorizada enquanto criança, com toda a sua extensão lúdica de mundo, e não apenas como futuro adulto que será, claro que suas experiências irão influenciar suas atitudes mais adiante e a isso deve-se dar atenção, mas trata-se de deixá-la exercer a sua infância com liberdade e criatividade, assim como reconhecer e lembrar que existem outras infâncias possíveis por aí, e não só o que a sociedade ocidental-racionalista-heteronormativa-branca pratica. Precisam ser respeitadas como seres com uma percepção de mundo diferente da nossa, por não ter a mente acostumada a esquemas retrógrados, e por isso mesmo têm muito a nos ensinar, tanto sobre nossa relações com elas, e de nós para conosco adultos mesmos.

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Ilustração de Niños invisibles, Tyto Alba.

Porém, esta necessidade de falar de outros temas que não são comuns na literatura infantil, vem cada vez mais ganhando espaço, é uma forma de resistência, já que a realidade de muitas crianças está longe de ser um conto de fadas.

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Ilustração de Irene Singer para o capítulo que conta a história de Manuel em
¿Quién Soy?.

“Para quien se interese por el campo de la literatura como manifestación plena del hombre, el tema de la literatura infantil y juvenil brindará siempre una serie de facetas originales y motivos para muy diversas reflexiones.”
Carmen Ruiz Bravo. La literatura infatil árabe, 1978, pág. 43

Dentro da literatura existem diversos gêneros, linhas e estilos, pois as pessoas tem diversos gostos, e não é diferente com as crianças, nem toda criança gosta de contos de fadas, assim como nem todas tem a mesma realidade. Existem crianças que tem uma realidade bem próxima da guerra, como as do Oriente Médio, um cotidiano de resistência, como as zapatistas, e com o relento, como as “crianças de rua”, mas também as crianças que não vivem em meios tão extremos também tem as suas reivindicações para que as deixem ser crianças, e tenham espaço para tal, como fizeram as crianças de Pijp, um bairro descolado de Amsterdã em 1972: falam sobre ocupação da cidade e protestam porque querem uma rua para brincar. Batem o pé no asfalto de megafone na mão e vão bater na porta do poder público. Veja o vídeo (com legendas em inglês).

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Criança protestando? Aí já é vandalismo!

Revolução para Crianças

“De fato a associação entre crianças e contos de fadas é um acaso de nossa história nacional. Os contos de fadas no moderno mundo letrado foram relegados ao “jardim de infâncias”, como os móveis gastos ou antiquados são relegados ao quarto de brinquedos, basicamente porque os adultos não os desejam e não se importam se forem maltratados. Não é a escolha das crianças que decide isso. As crianças enquanto classe – exceto pela normal falta de experiência, elas não são uma classe – não gostam mais de contos de fadas, nem os entendem melhor que os adultos.”
J.R.R. Tolkien, Tree and Leaf, 1970, pág 70.

A imagem da criança também está, muitas vezes, relacionada ao estigma da família, e liga-se a ela através da ideia de moral, assim como eram feitas as histórias para crianças, com o exclusivo fim de passar um conselho moralizante. Mas a criança também tem suas individualidades e desejos, deve poder ter o prazer de deleitar-se com a beleza de uma obra de arte, experimentar sensações visuais, auditivas, imaginativas, etc., e também ficar mexida, indignada, confusa. Pensar histórias que tenham uma função política também são importantes, para que possam aprender a própria história e tenham direito a ela, pois sabemos que quem conta uma história sempre está dando sua versão.

Ainda é escasso, mas vira e mexe aparecem obras revolucionárias para crianças, devem ter mais coisas legais por serem descobertas, e outras estão em processo de tradução, por ora ficam essas dicas:

Um livro incrível é o Los niños invisibles [Fundación Divina Pastora, 2013] do ilustrador e cartunista catalão Tyto Alba, onde, depois de uma visita a uma casa de amparo na Guatemala acabou criando uma oficina de desenho com as crianças, muitas, vítimas de abusos domésticos, sexuais e outros traumas. Da experiência surgiu um livro com excelentes ilustrações. Conhecer a realidades daquelas crianças foi um choque para o autor que soube condensar essas histórias tristes e reais, e o livro também virou prêmio de comic social.

Outro livro com conteúdo político é ¿Quién soy? [Calibroscópio], a história surgiu ao relembrar uma história com monstros reais, o sequestro de crianças durante a ditadura militar em 1976. O livro consiste em 4 capítulos inspirados em depoimentos de seus protagonistas e narram o reverso dos contos de fadas em forma de aventura, suspense e, também, terror. Cada história foi adaptada ao universo infantil por escritores e ilustradores que, sem meias palavras e com imagens fortes – mas, cheias de sensibilidade – contam às crianças de hoje esse capítulo difícil da história argentina. Leia matéria completa sobre o livro.

Outro livro muito interessante é Um outro país para Azzi [Pulo do Gato] de Sarah Garland, esta comovente narrativa na forma de quadrinhos convida o leitor a imaginar, com delicadeza e fidelidade, o que é ser uma criança refugiada. Azzi é obrigada, com sua família, a viver um difícil processo de deslocamento enquanto seu país é devastado pela guerra. A menina terá de enfrentar a saudade que sente da avó e muitos desafios: aprender outra língua, adaptar-se à nova casa e cidade, frequentar uma escola diferente e fazer amizades. Leia mais sobre o livro aqui.

De olho nas penas, de Ana Maria Machado [Salamandra], conta a história do pequeno Miguel, depois de ter vivido em vários países, acompanhando sua família militante de esquerda na fuga do regime militar e na busca de asilo político, encontra-se agora vivendo no Brasil, em função da Anistia (1979). A história se desenrola com uma viagem mágica e lúdica através dos tempos, e guiado por um ancestral, o menino conhece a verdadeira história dos povos indígenas da América e do povo negro, onde é valorizada sua cultura contada através dos mitos e revelada toda a opressão e os estragos da colonização. Em 1981 o livro ganhou o Prêmio Casa de Las Americas, Cuba.

Suzana e o mundo do dinheiro, Wim Dierckxsens [Expressão Popular]. A história que aqui se conta é a de uma jovem de 14 anos – Suzana – e das indagações e respostas que coleciona e elabora sobre os problemas e fatos que vai se confrontando no cotidiano. Seu universo está povoado de personagens do mundo do trabalho, bem como de velhos militantes socialdemocratas e socialistas, a partir de cujas experiências e opiniões, em confronto com o mundo que a cerca, a jovem vai construindo a sua própria visão de mundo.

E aqui encontramos a forma de aprendizado de crianças que vivem outro cotidiano, podemos baixar os livros didáticos de educação autônoma da Primera Escuelita zapatista, organizada pelo Ejército Zapatista de Liberación Nacional (EZLN), Na “Escuelita Zapatista” os estudantes aprendem organização comunitária e resistência civil como forma de vida. “Em muitos sentidos a escolinha não é uma escola típica, os livros de texto não citavam a prestigiosos acadêmicos anteriores, e as salas de aula não tem lousa, a aula estava em curso 24 horas por dia, e a sessão de perguntas e respostas estava aberta todo o dia. (…) A maioria das lições mais importantes se aprendiam ao compartilhar hospedagem, as comidas, o trabalho a vida” (livre tradução).

Dentre as obras cinematográficas: O menino e o mundo, que é a história de uma criança procurando pelo pai que a abandonou. E é também a história de uma criança que descobre o mundo e, ao tentar seguir o caminho da música e das cores, encontra um jovem e um velho que carregam as tristezas da desigualdade, da repressão policial e da exploração. Animação brasileira do diretor paulista Alê Abreu, o qual não segue fórmulas nem partiu de um roteiro pronto. A partir da trilha sonora original de Gustavo Kurlat e Ruben Feffer, o filme é guiado pelos sons e pela imagem, dispensando diálogos. Apesar de carregar o tom pesado da crítica política, o filme não é pessimista. Pelo contrário, a inocência e a esperança estão nesse menino, que parte com um propósito simples e descobre um mundo complexo.

O curta O fim do recreio, uma produção de Parabolé: Educação e Cultura, em 17 minutos, diverte muito com Felipe e Cléber, alunos de escola municipal de Curitiba, revoltadíssimos com a proposta de um senador que pretende acabar com o recreio para “aumentar os lucros”. O roteiro, bastante dinâmico e redondinho, casa bem com a fotografia quente com ares de sol de outono. Assista o filme aqui.

Kiriku e a feiticeira, dirigido por Michel Ocelot (1998), conta a história de um recém-nascido superdotado que sabe falar, andar e correr. Ele é o salvador de sua aldeia, ameaçada pela feiticeira Karabá. A bela animação nos aproxima do universo africano, quase não apresentado às crianças como contos da tradição oral, e tem como protagonista uma criança com uma atitude de muita combatividade e resistência contra o opressor, e a coragem de Kiriku é acompanhada de muita doçura, paz e tranquilidade. Assista o filme dublado, e o musical aqui.

Este acervo já dá um caldo para montar a biblioteca revolucionária do seu filho, e aprender com ele a vandalizar, vandalize você também! 2Texto publicado na revista Ellenismos.


Imagem: Ilustração de Tyto Alba, Niños invisibles.


Notas

  • 1
    Expressão de Severino Antônio, extraída deste vídeo, sobre escutar e educar a criança.
  • 2
    Texto publicado na revista Ellenismos.

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  • Carina Castro

    Carina Castro é autora de Caravana (2013, Editora Patuá). Pesquisa Literatura Infantil e Política pela USP e também se dedica a escrever textos para crianças e jovens. É uma das realizadoras do blog Espaço Marciana, projeto que visa através da arte e da educação empoderar jovens garotas. Assina a coluna “Infante ingente” na revista Ellenismos. Em 2012 recebeu o Prêmio Lusofonia de Portugal com um conto infantojuvenil. Escreve em Tudo é Coisa.

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