Dilemas e desafios

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Pensar e discutir sobre a Literatura Infantojuvenil (LIJ), como indústria cultural nos remete ao conceito desenvolvido por Gabriel Zaid em seu livro Los demasiados livros. Há mais de dez anos, falamos de um mercado em permanente crescimento.

Na Argentina aparecem, a cada ano, novas editoras dedicadas exclusivamente ao livro infantil, editoras tradicionais inauguram linhas de livros para crianças. Os espaços destinados à LIJ crescem em metros quadrados dentro de livrarias e feiras, e novas livrarias dedicadas a LIJ abrem por todo o país. O Ministério de Educação compra milhares de livros para programas de equipamento de bibliotecas sem precedentes por sua magnitude e recursos econômicos. A escola compra em um ritmo constante e, em muitos casos, utiliza seus planos leitores e bibliotecas como elemento de publicidade da mesma forma que as aulas de natação.

Não há cifras concretas, mas se sabe que cada vez mais escritores, ilustradores, editores e livreiros vivemos dos livros infantis e juvenis. Entretanto, apesar deste crescimento descomunal, muitos leitores e mediadores se sentem perdidos e em crise com a oferta de livros em circulação. Isto porque os demasiados livros é uma necessidade do mercado, e não do leitor, que dela padece.

E me refiro aqui unicamente aos demasiados livros, àqueles demasiado parecidos entre si, demasiado evitáveis, se me permitem. Porque como propõe Zaid, há um aspecto claramente positivo deste crescimento, e é que haja mais livros que vendam pouco, que interessem a um pequeno número de leitores. Títulos que escapam às grandes tendências, que apontam para a diversidade. E esta é, seguramente, uma das maiores vantagens do livro digital. “Em muitas cosas, o progresso destrói a diversidade. Não no caso do livro”. [OP. Cit. Pp 23]

Faz algum tempo, pequenos editores espanhóis comentavam comigo a exigência de seus distribuidores de apresentar uma determinada quantidade de novidades anuais. Com isso seriam assegurados a constante circulação de livros e o permanente movimento de faturas e cobranças. E, por sua vez, com as vendas de um título se garantiria o financiamento da publicação da próxima novidade, que não seria uma reimpressão, a volta ao mercado de um livro já publicado, mesmo bom. As reimpressões devem esperar algum excedente financeiro ou venda institucional (porque esses, os bons livros de fundo editorial, são os que as instituições costumam selecionar para suas compras).

As vendas das “novidades” que financiarão as “próximas novidades” devem ser, logicamente, imediatas. De tal sorte que esses editores ficam presos em uma trama que não duvido em qualificar como perversa, onde uma “novidade” sepulta a outra. Mas, não só isso, pior, onde eles se veem obrigados a publicar (a dedicar dinheiro, tempo e esforço) livros, em muitos casos anódinos e limitados, com frequência de autores ou temas da moda, que garantem um aceitável caudal de vendas pelos atributos da embalagem. O cuidado com o fundo editorial e a montagem de um sistema orgânico que pretende ser um catálogo ficam relegados a um plano sem prioridade.

E o que acontece com os livros que não cumprem as expectativas de circulação e vendas? Terminam em mesas de saldos, adquiridos por quilo de papel, onde se mistura o livro bom, que perdeu sua oportunidade, com livros que provavelmente não valham nem seu próprio peso em papel. Ou, em alguns casos, guilhotinados ou incinerados.

A venda do livro de LIJ é uma venda lenta. Necessita tempo para amadurecer no leitor. A boa literatura viaja por recomendação e pode tardar anos até ser traduzida em uma cifra de vendas razoável. E aqui fica claro o risco de se subordinar o mercado da LIJ ao do texto escolar. Neste último, um pouco por envelhecimento dos programas educativos e outro tanto pela necessidade da rápida recuperação financeira que justifique sua curta vida útil e seus enormes investimentos, o conceito de tempo fica reduzido ao imediatismo.

Disto no mínimo, resulta que os canais de comercialização de ambos também deveriam ser diferentes. As campanhas de promoção e venda de LIJ com a metodologia do livro didático, excluindo desde o princípio o livreiro, e oferecendo às escolas descontos que chegam a ser maiores que os do canal comercial, são, no mínimo, apressadas. Porque enfraquecem a relação com o livreiro, que deveria ser o principal aliado do editor, e porque confinam a prescrição escolar unicamente a certos títulos.

Se pretendemos levar o leitor mais além dos limites das aulas, deveríamos começar pondo à sua disposição novos catálogos nos pontos de venda; coisa que nem sempre acontece. Hoje vemos nos grandes grupos editoriais, postos estratégicos do setor de vendas e financeiros ocupados por profissionais alheios, em sua formação, ao mundo editorial, provenientes, por exemplo, de setores industriais, como farmacêuticos ou de alimentação. Indústrias que trabalham com matérias primas perecíveis.

Não quero estabelecer uma dicotomia entre editoras pequenas, grandes, independentes ou multinacionais. Nem uma apologia da gente do livro versus de outras indústrias. Mas o que sim é certo é que há certas regras próprias do setor. Há, ademais, uma questão de escala que é crucial para entender porque alguns suportam melhor que outros estas circunstâncias. E me refiro, contrariamente ao que se possa supor, a que uma pequena editora, com profissionais que conhecem o negócio do livro, suporta melhor que outra que um título esgote sua tiragem inicial em um par de anos e não em um par de meses.

A estrutura é distinta em cada caso. Os custos para assumir um risco se medem na evolução do projeto e não apenas em números negativos. E aqui me parece pertinente, como afirmou Daniel Goldin, nos perguntar qual é o risco de não assumir nenhum risco. A inércia, suponho. A quietude, ainda que sob a forma da constante novidade.

E o que acontece com o livreiro, principal mediador da cadeia comercial?

Ele faz o que pode que, na maioria dos casos, não é muito. Será por isso que o público aprecia cada vez mais o mediador capacitado e as propostas de especialização de algumas livrarias e pontos de venda, como feiras, sites ou clubes de leitura?

A tarefa de um bom mediador é tão criativa como a do editor. Assim como este último, o livreiro seleciona, exibe, recorta, avalia; não originais; mas produtos que esperam para seu aperfeiçoamento o encontro casual e fortuito com um leitor. Quanto mais souber e se interessar o editor/livreiro, mais sólido será esse corpus que conforma seu projeto de catálogo/livraria. Quanto menos souber, mais caótico, caprichoso e apegado à única promessa da rápida circulação.

Hoje ocorre a situação de que algumas estruturas artesanais e não convencionais vendem mais e melhor LIJ que livrarias tradicionais, sem mencionar as grandes cadeias comerciais. Muitas editoras começaram a distribuir nossos acervos em empreendimentos de venda originados por mediadores como bibliotecários e docentes; que formam opções alternativas e de qualidade, para fazer crescer o mercado atendendo, em muitos casos, pontos cegos da distribuição tradicional.

Hoje ocorre também que autores e editores podem promover seus livros sem necessidade de contar com a cumplicidade e competência do livreiro. As redes sociais, à distância e sem investimentos altos em publicidade, influem sobre as vendas. Ainda não sabemos aonde isso nos levará e como modificará a cadeia, mas é evidente que aproxima os extremos, o autor e o leitor.

Acima mencionei outro dos pilares do crescimento do mercado de LIJ na América Latina: as compras estatais; una das principais oportunidades para o desenvolvimento e a circulação de novos livros.

Em nosso caso, como distribuidores de vários selos editoriais da América Latina, essas vendas nos permitem colocar a disposição de numerosos leitores títulos que vínhamos promovendo em uma escala pequeníssima. Mas, além disso, sob a forma de coedições, quando a editora titular dos direitos concorda, nos permite ampliar a tiragem original, pensada para o canal institucional, para prover também o comercial, oferecendo esses títulos como parte de nosso catálogo, com os benefícios que isso supõe. Isso se reveste de especial importância uma vez que na Argentina existem controles sobre o ingresso de livros importados.

É curioso, nesse sentido, observar como o canal institucional costuma estar divorciado do comercial. São muitos os casos de editores que apresentam em suas dependências amostras de livros que supostamente cumprem as normas de seleção desses programas e não levam esses livros para outros canais. Assim como alguns livros nascem e morrem nas aulas, outros o fazem em determinados programas estatais. E morrem, literalmente, quando não são acompanhados de uma boa capacitação dos mediadores, verdadeiros doadores de sentido desses programas, ainda que frequentemente se esqueça disso.

São muitos os milhares ou milhões que se gastam e se cobram nesses programas, e que bom seria se fossem rentáveis a longo prazo: formando leitores críticos, principal objetivo das instituições, e criando estímulos para renovar e dar ar fresco a autores e editores. Ares que superem o meramente econômico. Que bom seria que acontecesse o óbvio, que nem sempre acontece: que os livros que chegassem às escolas, saíssem de suas caixas e chegassem a converter-se em experiências de leitura íntimas e ao mesmo tempo sociais, profundas e transformadoras.

Creio que a única maneira de fortalecer e melhorar a cadeia da LIJ na América latina é mediante alianças estratégicas; entre autores, editores, livreiros, instituições, mediadores e promotores. Entre pequenos, entre grandes e pequenos, entre grandes e grandes, e, inclusive, entre filiais locais de grupos transnacionais, que muitas vezes se comportam como se nada tivessem para trocar, salvo os capitais. Refiro-me aos bons livros publicados em um país que não chegam a migrar nos catálogos da mesma casa matriz. Grandes autores, inclusive, que são desconhecidos a poucos quilômetros de suas fronteiras. Talvez por isso seja difícil para mim pensar em una LIJ com identidade ibero-americana.

Parte disso, suponho, é responsabilidade de uma tendência que primou durante muitos anos em nossa região, que simplifica a leitura a ponto de supor que na escola devem entrar unicamente temas ou autores familiares aos costumes e idiossincrasias de um país.

Felizmente, mediadores e autores estão cada vez mais dispostos a acompanhar os livros em suas viagens em direção aos leitores. Afortunadamente, os leitores estão cada vez mais ativos, dispostos a buscar. E aonde quer que conduzam essas viagens e buscas, editores e livreiros, mediadores nessa cadeia, devemos estar alertas às transformações, adaptando nosso lugar a novas realidades econômicas, políticas, sociais e tecnológicas.

Há vários anos li una conferência de Vicente Ferrer, responsável pela inclassificável editora espanhola Media Vaca, na qual dizia que em todos os congressos de editores se discute sobre a sobreabundância de livros publicados a cada ano. Todos comentam esse fenômeno com preocupação, mas claro, ninguém está disposto a deixar de publicar. Como se os livros que sobrassem fossem sempre os alheios, nunca os próprios.

Além de verdadeira, a frase é devastadoramente certa. Eu diria que, já que nenhum de nós está disposto a deixar de publicar e produzir, o façamos pensando em contribuir, estimular, questionar, enriquecer. Cuidando, sobretudo, de não repetir fórmulas, que tantas vezes convertem livros e catálogos em cópias grosseiras de outros ou, inclusive, de si mesmos.1Texto apresentado no CILELIJ – Março 2013

Tradução Thais Albieri


Imagem: Fotografia da Feira de Bolonha 2015.


Referências Bibliográficas

Daniel Goldin, “Conferencia Magistral de apertura. Un catálogo, una imagen una marca: la construcción de una propuesta editorial para niños y jóvenes”, em: El libro para niños y jóvenes. Un mercado en crescimento. Memorias del VII Foro Internacional de Editores y Profesionales del livro, FIL Guadalajara 2008, Guadalajara- México, 2009.

Os dias e os livros – divagações sobre a hospitalidade da leitura. São Paulo: Pulo do Gato, 2012.

Fernando Esteves Fros e Leandro De Sagastizábal (orgs.), El mundo de la edición de livros. Buenos Aires: Paidós, 2005.

Gabriel Zaid, Los demasiados libros. Barcelona: Anagrama, 1996.

GracielaDe la Vega; Teresa Mlawer; Medina Pablo; “¿Cómo se conforma un mercado?”, em: El livro para niños y jóvenes. Un mercado en crescimento. Memorias del VII Foro Internacional de Editores y Profesionales del livro. FIL Guadalajara 2008. Guadalajara-México, 2009.

“Industria editorial argentina, modelo para armar”, em: Nuestra cultura. Buenos Aires, 2012, año 4, n° 16.

María Teresa Andruetto, Por uma literatura sem adjetivos. São Paulo: Pulo do Gato, 2012.

Natalia Méndez, Editado/infantil y juvenil, http://editadoenlij.blogspot.com/2012/07/breve-panorama-del-mercado-actual.html

Revista Educación y Biblioteca. Madrid, 2006, año 18, N° 155.

Notas

  • 1
    Texto apresentado no CILELIJ – Março 2013

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  • Judith Wilhelm

    Editora e livreira argentina, estudou Letras e Edição na Universidade de Buenos Aires. Em 1997 cria El Libro de Arena, um empreendimento de divulgação e promoção do livro infantil, com o qual percorre escolas, bibliotecas e centros de formação levando uma seleção de livros dos pequenos editores e organizando oficinas. Em 2005, funda Calibroscopio, libros para ver mundos, projeto editorial de livros infantis, juvenis e ilustrados.

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