Do ponto de vista do ilustrador…

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A coluna sobre o politicamente correto deu o que falar, e olha que só levantei a lebre. Tem muito chão pela frente para discutir e aprofundar e, desde já, me proponho a dar continuidade. Mas fazendo um pequeno desvio nessa direção, queria compartilhar algumas reflexões provocadas por uma conversa com uma querida amiga ilustradora.

Normalmente, quando se trata de pensar a produção editorial para crianças e jovens, tanto do ponto de vista do mercado como de sua realização, o peso acaba recaindo quase exclusivamente no texto. As ilustrações, que não só marcaram a produção editorial para crianças desde as suas origens, como ganharam um papel de destaque na produção contemporânea, nem sempre são devidamente consideradas. Assim, o lugar do ilustrador e de seu ponto de vista no mercado raramente é levado em conta por olhares que não os de seus pares.

A literatura infantil e juvenil vive hoje um momento de reconhecimento da ilustração como elemento narrativo, cuja importância e peso muitas vezes são os mesmos do texto, mas em alguns casos assumem uma importância maior. A tal ponto que o livro álbum, ou livro de imagem, é hoje um dos gêneros de ponta do segmento. Foram muitos os que compartilhamos, nos mais diferentes cantos do mundo, há poucas semanas, a tristeza pela morte de Maurice Sendak, pioneiro no gênero e um dos grandes país da literatura infantil contemporânea.

O peso cada vez mais decisivo da ilustração, no sentido autoral, não se mede apenas pela tendência, não só nacional, de muitos ilustradores serem também autores dos livros que criam. Outro aspecto é a relação cada vez mais orgânica e menos complementar do texto com a imagem. Certamente são diversos os motivos que reforçam essa tendência e, se o aspecto econômico por parte dos ilustradores não deve ser descartado, ele, no entanto, não explica a vitalidade e riqueza que assistimos na dupla autoria. Inclusive porque não é todo ilustrador que pode se transformar em autor – ainda que esta possibilidade seja muito mais fácil que seu contrário –, e porque nem todo ilustrador deve necessariamente querer ser autor.

Muitos dos grandes ilustradores/autores sempre desempenharam esses dois papéis. A valorização do livro ilustrado abre espaço para a plena experimentação criativa de muitos ilustradores, que brindam o leitor com verdadeiras obras de arte. Aprimorar e educar o olhar do leitor (e do mediador) para a leitura de imagens é a chave para uma maior expansão desse gênero, que, vale a pena lembrar, rompe qualquer limitação etária, entre muitas outras características.

Tudo isso para trazer à tona duas questões: a primeira remete à discussão do politicamente correto de um ponto de vista da ilustração, pois obviamente o comprometimento com um dado universo de concepções não é privilégio apenas do texto. [Leia aqui o texto “Politicamente incorreto”.]

Há uma transposição do discurso moralizante, pedagógico, para as ilustrações, que se manifesta de inúmeras formas, do estereótipo à previsibilidade, à representação chapada, convencional etc. Ambos os discursos narrativos (texto e imagem), em nome de uma vocação facilitadora e funcional, resultam na maior parte das vezes em um produto final destituído de qualidade. Porém, esse não é critério de descarte para o mercado que, dia a dia, da mesma forma que absorve, coloca de lado uma extensa produção rapidamente perecível.

Mas, paralelamente a essa produção descartável, da qual muitas vezes não temos a dimensão, o mercado do livro infantil no Brasil vem progressivamente conquistando índices de qualidade e reconhecimento que lhe dão uma visibilidade para além de suas fronteiras. Porém, o sucesso desse movimento para fora, em termos de competitividade, não depende só da qualidade.

E aqui entra o segundo aspecto que quero ressaltar. As dificuldades para uma afirmação internacional são de diversas ordens: cultural, estética, cromática, temática. Não é fácil exportar a nossa ilustração. Não é fácil para nossos ilustradores competirem, por exemplo, na Europa ou nos Estados Unidos. Do reconhecimento à publicação há um longo caminho difícil de percorrer. Talvez voltar os olhos para dentro, para a América Latina, represente uma abertura de possibilidades, considerando identidades culturais e temáticas muito maiores.

A conquista de novos mercados nunca é fácil. Exige paciência, persistência e investimento. Maiores incentivos à difusão da ilustração produzida no Brasil seriam bem-vindos. Em alguns países existem políticas que, sem colocar barreiras à compra de direitos estrangeiros – o que é fundamental –, facilitam o investimento na produção de livros com ilustradores nacionais. A promoção de cursos, oficinas, o fomento ao intercâmbio por meio de exposições e concursos são também formas de enriquecer e promover nossos criadores. O longo e muitas vezes penoso trabalho de criação deveria de algum modo receber incentivo e apoio, pois ele vai na contramão do ritmo imposto pelo mercado.

Não resta dúvida de que no Brasil somos muito mais abertos para incorporar e receber a produção de fora. Mas, para além de traços culturais, o crescimento das compras governamentais e institucionais aqueceu o mercado, que teve que intensificar sua oferta. E, junto com isso, um investimento numa diversidade cultural que pressupõe contato com o que há de mais avançado, sejam livros clássicos ou de ponta. Essa aposta está na base da edição de livros para crianças e jovens no Brasil nas últimas décadas e, graças a ela, o leitor pode ter acesso a livros de referência das mais variadas nacionalidades, gêneros e estilos.

É no plano editorial que se pode pensar no estabelecimento de um equilíbrio entre a facilidade da edição de livros estrangeiros e o investimento em projetos nacionais, sem dúvida mais custosos, mas que são a marca da produção brasileira. Daí a importância do editor, de seu papel, de sua visão e de sua aposta em projetos novos e ousados, de maior fôlego, e na promoção e sustentação de parcerias longas, que invistam no exercício da criação e na qualidade.


Imagem: Ilustração de Mô Gutierrez.


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  • Dolores Prades

    Fundadora, diretora e publisher da Emília. Doutora em História Econômica pela USP e especialista em literatura infantil e juvenil pela Universidade Autônoma de Barcelona; diretora do Instituto Emília e do Laboratório Emília de Formação. Foi curadora e coordenadora dos seminários Conversas ao Pé da Página (2011 a 2015); coordenadora no Brasil da Cátedra Latinoamericana y Caribeña de Lectura y Escritura; professora convidada do Máster da Universidade Autônoma de Barcelona; curadora da FLUPP Parque (2014 e 2105). Membro do júri do Prêmio Hans Christian Andersen 2016, do Bologna Children Award 2016 e do Chen Bochui Children’s Literature Award, 2019. É consultora da Feira de Bolonha para a América Latina desde 2018 e atua na área de consultoria editorial e de temas sobre leitura e formação de leitores.

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