Engrenagens que contam histórias

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Um dos aspectos mais interessantes dos livros infantis do artista e designer italiano Bruno Munari (1907-1998) são os recursos gráficos usados para estabelecer relações inusitadas entre as diversas partes de uma publicação: facas para corte e vinco proporcionam um suspense entre uma página e outra, e transparências geram novas imagens pela sobreposição de duas ou mais páginas, que se transformam à medida que são folheadas.

Nem todos seus livros, no entanto, exploram abordagens do gênero, notabilizando-se por outras características. É o caso de Le macchine di Munari (As máquinas de Munari), lançado em 1942. Mais conformado com a opacidade e bidimensionalidade do papel, o livro está, no entanto, longe de ser convencional. Cada página dupla apresenta uma máquina absurda, composta por peças surpreendentes. O primeiro estranhamento são os componentes dessas parafernálias: ao invés de peças de metal, se fazem presentes os objetos e personagens mais inesperados, como um ovo, uma bengala, uma tartaruga, uma lâmpada, um caracol. Conectados por fios, roldanas, apoios de materiais diversos, por vezes apenas dispostos em proximidade, essas peças geram sequências de causa e efeito inusitadas.

Além do aspecto fantasioso das máquinas, há também humor no esforço desmesurado dessa congregação de seres e objetos orquestrados para gerar verdadeiros malabarismos a serviço de finalidades praticamente inúteis. Convenhamos: uma “máquina para tocar a flauta quando você não está em casa”, por exemplo, não corresponde exatamente às nossas necessidades mais urgentes. Para executar tal função, no caso, é necessário que um gato preto veja por um espelho retrovisor a imagem refletida do ratinho Mattia, que está às suas costas preso em uma gaiola, e que ande para trás como se fosse pensar no que fazer: esse movimento empurra a gaiola (presa ao gato e ao espelho) para frente, fazendo com que o rato alcance uma corda molhada com molho parmesão. Roída por Mattia, ela se rompe e um ferro de passar roupa, ligado por roldanas, cai, puxando uma segunda corda. Esta abre a válvula, responsável por liberar jato de ar comprimido de um cilindro em um tubo conectado à flauta. O ar quente emitido pela flauta gera sons, e faz o jovem pato campestre, posicionado sobre o instrumento, sapatear sobre os buracos, improvisando uma prazerosa melodia. Essa é apenas uma das treze máquinas criada por Munari para o livro: engenhosas manifestações da imaginação atentas a um novo repertório de formas, decorrentes das transformações técnicas e das experimentações das vanguardas artísticas.

Máquina Munari/flauta
Máquina para tocar a flauta quando você não está em casa

Munari não resolveu fazer máquinas por acaso. Desde o início de sua carreira há um interesse pelo papel da tecnologia no mundo moderno. Ainda aos 18 anos, deixou Badia Polesine – onde passou a infância e adolescência – e voltou à sua cidade natal, Milão, para trabalhar com um tio engenheiro. Logo depois integrou o círculo de artistas do Futurismo, encabeçado por Marinetti, participando de várias exposições e eventos, como a Trienal de Milão. O Futurismo era atraente por diversos motivos: métodos heterogêneos, exploração de novas mídias e meios de expressão, mistura de diversas técnicas, e elos com a indústria cultural. Houve por parte do artista, no entanto, um distanciamento gradual do movimento, que culminou em uma emancipação total. Munari passou a enxergar sua participação na vanguarda futurista apenas como uma “fase” sem maior importância. Sua compreensão do uso da tecnologia era totalmente outra: avesso à mitificação da máquina e da técnica, representadas pelas pesadas e grandiosas estruturas do movimento, o designer preferia enxergá-las como instrumentos, propondo uma sóbria manipulação dos mecanismos e aparatos tecnológicos. Aos poucos, se aproximou das ideias do construtivismo russo e da Bauhaus, e não demorou a criar, durante a década de 1930, trabalhos com formas abstratas em três dimensões. “Machine Aerial” indicou um movimento em direção a uma estética construtivista, e foi precursor das “Useless Machines”, estruturas muito leves construídas com várias partes móveis, elaboradas na mesma época que os móbiles de Calder.

Bruno Munari pode ser considerado, portanto, o primeiro italiano e um dos primeiros na Europa a criar arte cinética. Por volta de 1938 ele ainda escreveu o Manifesto of Machinism, publicado apenas em 1952, que atesta sua vontade de testar os limites de materiais em termos construtivos e formais. Nele, defendeu a vontade de abandonar as tradicionais categorias da pintura e escultura para buscar uma maior relação com as tecnologias, deixando de lado os “românticos pincéis, a paleta suja, as telas e os cavaletes”. Le macchine di Munari, portanto, é mais um dos trabalhos de Munari sobre o tema, tendo sido criado e publicado poucos anos após as “Useless Machines” e o manifesto. Também “inúteis”, esses aparelhos não produzem bem de consumo, não tornam as forças de trabalho obsoletas, tampouco contribuem para o crescimento da riqueza ou do capital.

Munari trouxe as máquinas de volta a uma “sintaxe de emoções poéticas”, nos dizeres do artista futurista Enrico Prampolini. O poeta e engenheiro Leonardo Sinisgalli chegou a inserir as criações de Munari dentro de uma grande genealogia de equipamentos fantásticos e cômicos, que incluem o trabalho surreal de Raymond Roussell, as absurdas máquinas de Francis Picabia, as ilustrações de Rowland Emett, os pesadelos de Franz Kafka – como a engenhoca bizarra presente em Na colônia penal.

Máquina Munari/tartaruga
Motor dirigido por lagarto para tartarugas cansadas

O esquema do livro Le macchine di Munari é sempre o mesmo: no alto da página esquerda, o nome da máquina, sugerindo o propósito pouco usual do equipamento; logo abaixo, a descrição do funcionamento da geringonça, etapa por etapa; e por fim, jocosas notas de rodapé, capazes de mergulhar em grandes digressões. Na página direita a máquina é apresentada em desenho limpo, com traço a caneta mesclado a áreas compactas de cor sem linhas de contorno. As peças e engrenagens compõem um diagrama que complementa as descrições do texto, auxiliada pelos números correspondentes às etapas. Há uma apropriação criativa da linguagem dos manuais, livros técnicos e cartilhas, subvertida pela fantasia de Munari: elementos a princípio díspares como um balão, um homem dormindo, um muro de tijolos, um relógio, fios, engrenagens, números, setas, se apresentam organizados em um espaço razoavelmente abstrato, sem profundidade ou distâncias e escalas evidentes. As descrições são claras e poderiam se sustentar sozinhas, mas fica a sensação de que foram criadas para, justamente, gerar as belíssimas e envolventes ilustrações.

Distante da habitual sisudez que caracteriza muitas propostas sofisticadas, o texto e as notas são carregados de um tom leve e jocoso, que tende ao absurdo. Os animais, de modo geral, recebem nomes pomposos como o caracol do “Temporizador automático para ovos cozidos”, denominado Maria Lumèga di Monselice. Em outro caso, ao começar a explicar a máquina “Leque com asas batendo”, o texto brinca com o leitor: “não demoramos a perceber que esta é uma máquina de verão. Se você se comportar e não começar a me chutar nas canelas, irei explicar como funciona. Pronto? Vamos lá!” As notas, recheadas de humor, podem ser vistas como histórias dentro de histórias, e por vezes são maiores que o próprio texto que descreve as engenhocas. São também comuns notas curtas, como a do “Aparato para abrir por debaixo garrafas de vinho gaseificado”, que diz no item “b”: “para maiores informações, me chamar após seis da tarde”.

Máquina Munari/vinho
Aparato para abrir por debaixo garrafas de vinho gaseificado

Podemos entender essas criações como máquinas de contar histórias. Suas peças são personagens que atuam nas mais diversas situações de causa e efeito para fazer tudo funcionar. Levando isso em conta, temos uma narrativa singular, que conduz o olhar de modo diferente pela página a cada história contada. Diferentemente de uma tradicional página de história em quadrinhos ocidental, por exemplo, que direciona a leitura sempre da esquerda para a direita e do alto para baixo, nas páginas de Le macchine de Munari o movimento varia a cada página. A única regra é seguir a numeração, que pode começar no alto em uma máquina, e embaixo em outra; fazer zigue-zague em uma história, e um percurso circular em outra – e assim por diante. Também inovadora é a história invisível do aparato “Borrifador de uva passa”: personagens e situações estão escondidos por detrás de muros, cortinas e outros elementos opacos. Ao mesmo tempo que tal solução proporciona um novo resultado gráfico, reforça a curiosidade e imaginação de quem lê a narração dos eventos. E desencadeia o humor, talvez a verdadeira função dessas máquinas criadas pelo “Leonardo da Vinci e Peter Pan da arte italiana do século vinte”1

Máquina Munari/uva passa
Borrifador de uva passa

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  • Daniel Bueno

    Formado em arquitetura pela USP, é designer gráfico e ilustrador. Com uma técnica que explora colagem manual e digital, trabalha em diversos campos, como o editorial, institucional, publicidade, quadrinhos e animação, além de fazer experimentações com o coletivo Charivari. Recebeu vários prêmios. É membro da Society of Illustrators of NY e desde 2004 é conselheiro da Sociedade dos Ilustradores do Brasil. É mestre pela FAU-USP com o trabalho “O Desenho Moderno de Saul Steinberg: obra e contexto” (2007) e escreve regularmente para a ColunaSIB.

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