Escrita indígena: registro, oralidade e literatura

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A escrita é uma conquista recente para a maioria dos 250 povos indígenas que habitam nosso país desde tempos imemoriais. Detentores de um conhecimento ancestral apreendido pelos sons das palavras dos avôs, estes povos sempre priorizaram a fala, a palavra, a oralidade como instrumento de transmissão da tradição, obrigando as novas gerações a exercitarem a memória, guardiã das histórias vividas e criadas.

A memória é, ao mesmo tempo, passado e presente, que se encontram para atualizar os repertórios e possibilitar novos sentidos, perpetuados em novos rituais, que, por sua vez, abrigarão elementos novos num circular movimento repetido à exaustão ao longo da história.

Esses povos traziam consigo a memória ancestral. Entretanto, essa harmônica tranquilidade foi alcançada pelo braço forte dos invasores: caçadores de riquezas e de almas. Passaram por cima da memória e escreveram no corpo dos vencidos uma história de dor e sofrimento. Muitos dos atingidos pela gana destruidora tiveram que ocultar-se sob outras identidades para serem confundidos com os desvalidos da sorte e assim sobreviver. Esses se tornaram sem-terras, sem-teto, sem-história, sem-humanidade. Tiveram que aceitar a dura realidade dos sem-memória, gente das cidades que precisa guardar nos livros seu medo do esquecimento.

Por outro lado – e graças ao sacrifício dos primeiros – outro grupo pode manter sua memória tradicional e continuar sua vida com mais segurança e garantia. Esses povos foram contatados um pouco mais tarde, quando os invasores chegaram à Amazônia e tentaram conquistá-la, como já haviam feito em outras regiões. Tiveram menos sorte, mas também fizeram relativo estrago nas culturas locais e as tornaram dependentes dos vícios trazidos de outras terras. Foram enfraquecidos pela bebida, entorpecidos pela divindade cristã e envergonhados em sua dignidade e humanidade.

Esses povos – uns e outros – estão vivos. Suas memórias ancestrais ainda estão fortes, mas ainda têm de enfrentar uma realidade mais dura que a de seus antepassados. Uma realidade que precisa ser entendida e enfrentada. Não mais com um enfrentamento bélico, mas através do domínio da tecnologia da cidade. Ela é tão fundamental para a sobrevivência física quanto para a manutenção da memória ancestral.

Se estes povos fizerem apenas a “tradução” da sociedade ocidental para seu repertório mítico, correrão o risco de ceder ao canto da sereia e abandonar a vida que tão gloriosamente lutaram para manter. É preciso interpretar. É preciso conhecer. É preciso se tornar conhecido. É preciso escrever – mesmo com tintas do sangue – a história que foi tantas vezes negada.

A escrita é uma técnica. É preciso dominar essa técnica com perfeição para poder utilizá-la a favor da gente indígena. Técnica não é negação do que se é. Ao contrário, é afirmação de competência. É demonstração de capacidade de transformar a memória em identidade, pois ela reafirma o ser na medida em que precisa adentrar no universo mítico para dar-se a conhecer ao outro.

O papel da literatura indígena é, portanto, ser portadora da boa notícia do (re)encontro. Ela não destrói a memória na medida em que a reforça e acrescenta ao repertório tradicional outros acontecimentos e fatos que atualizam o pensar ancestral.

Há um fio muito tênue entre oralidade e escrita, disso não se duvida. Alguns querem transformar este fio numa ruptura. Prefiro pensar numa complementação. Não se pode achar que a memória não é atualizada. É preciso notar que a memória procura dominar novas tecnologias para se manter viva. A escrita é uma delas (isso sem falar nas outras formas de expressão e na cultura, de maneira geral). E é também uma forma contemporânea de a cultura ancestral se mostrar viva e fundamental para os dias atuais.

Pensar a literatura indígena é pensar no movimento da memória para apreender as possibilidades de mover-se num tempo que a nega e que nega os povos que a afirmam. A escrita indígena é a afirmação da oralidade. Por isso atrevo-me a dizer como a poeta indígena Potiguar Graça Graúna:

Ao escrever,
dou conta da minha ancestralidade;
do caminho de volta,
do meu lugar no mundo.


Imagem: Ilustração de Fernando Vilela.


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  • Daniel Munduruku

    É escritor e professor brasileiro. Pertence à etnia indígena mundurucu. É graduado em filosofia, história e psicologia. Tem mestrado em antropologia social pela Universidade de São Paulo.

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