Espaços de experiências das crianças

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Infância de experiências

Ao pensar os espaços de experiências das crianças, podemos considerar desde as ruas, as casas, as escolas, os livros, até o próprio espaço do imaginário. Para as crianças, o espaço, na arte e nos livros, pode ser visto como contexto de invenções e aprendizagens. Os espaços e a maneira de habitá-los, tanto os físicos, quanto os expressivos e, entre estes, mais especificamente os espaços da literatura, são potências para as experiências infantis.

A contemporaneidade homogeneizou os espaços físicos e conceituais voltados às crianças. Os móveis e brinquedos são lisos, sem rugosidade, fáceis de limpar, de higienizar; mas pobres, no sentido de propiciar uma diversidade tátil, comparado ao que natureza oferece, que traz riqueza às experiências das crianças. As crianças bem pequenas vão estabelecendo nexos, realizando movimentos de aprendizagem, movimentos de conexão com o mundo através de seus corpos. Elas tateiam o mundo, o que resulta em uma série de aprendizagens.

As crianças são afetadas por todos os sentidos do corpo, o que desencadeia processos complexos de cognição. Na incidência da luz do sol em uma sala, temos um sistema simples e complexo ao mesmo tempo. A incidência do sol varia com o passar do dia, produzindo sombras dos objetos, árvores e folhagens que estão entre o sol e a superfície onde sua luz é projetada. Há uma profusão de indagações que podem se dar em uma experiência dessas, que envolve uma complexidade de vetores, que enriquecem as experiências dos corpos das crianças em relação a esta luz.

A cultura da infância é o universo expressivo da criança, em que ela experimenta situações com nuances e antagonismos que podem levá-la a investigar. Para que a aprendizagem aconteça, é necessário que haja um processo de investigação, de modo que os deslocamentos sejam realizados, o que também acontece na arte.

Para fazer arte, um artista precisa ter alguma coisa que se desloque dentro dele e que traga outras referências e questionamentos, outras perguntas que o movam no sentido da construção de seu trabalho, no sentido do processo de invenção de um outro universo expressivo. O mesmo sucede com as crianças, o processo de invenção vai se ampliando à medida que o corpo vai guardando memórias táteis e perceptivas que se enriquecem e são impactadas pelo vivido.

A cultura da infância é constituída pelas experiências vitais das crianças. Muitas vezes, temos a tendência de achar que para que se concentrem, elas precisam parar. Mas, sua concentração é difusa, elas precisam do movimento: pensam enquanto se movimentam.

Ao entender a potência da infância, considerando suas singularidades nos vários modos de realizar interações e diálogos com o mundo, podemos perceber que cada criança interage à sua maneira com os objetos, com os fenômenos, inventando seus percursos, realizando escolhas em seus caminhos. Estamos tratando de experiências que realmente façam sentido na vida delas. Os sentidos na primeira infância estão intrinsecamente relacionados à curiosidade, ao encantamento, ao estranhamento, a sucessivas vontades, sucessivos desejos de conhecer o mundo, de entender como ele funciona, de pensar sobre a existência. Conhecer o mundo a partir do pequeno, do concreto, do cotidiano, do que é trivial, que é tão rico e encantador.

Mergulhos no sensível

O que é experiência na cultura da infância? Jorge Larrosa Bondía (2003) afirma que a experiência não é aquilo que passa por nós, mas aquilo que se passa em nós. Para isso, precisamos de tempo. Tempo que não é dado só pelo relógio, mas que também que é poético, tempo como interação prolongada, não tão cindida e fragmentada, como temos no mundo contemporâneo. Frequentemente, a vida das crianças é um liga-desliga: começam a fazer uma coisa, alguém avisa que tem que parar; começam a fazer outra, nova interrupção, o que gera vivências muito fragmentadas.

Vejamos o que muitas vezes acontece na escola. A criança está profundamente envolvida com o desenho… chega o professor e diz: “Agora chega, não é mais hora de fazer desenho. Olhe para cá e vamos fazer uma experiência de Ciências”. Menos de uma hora depois, nova interrupção: “Agora chega, pare de fazer a experiência de Ciências. Olhe para cá, vamos estudar línguas”. Esta fragmentação, além de criar ansiedade, gera tristeza, insatisfação de nunca se conseguir chegar à realização de uma experiência fecunda, profunda.

Como as experiências podem estar em relação, para que a criança não se sinta tão fragmentada em suas percepções e investigações? Como podemos, enquanto educadores, lidar com o tempo e com os fluxos de maneira contínua? Como é que a experiência estética pode impregnar e irradiar-se pela existência das crianças no decorrer de suas vidas?

Uma vez perguntaram ao neurologista Oliver Sacks (1998) qual era sua lembrança mais antiga: uma fazenda que ele frequentava quando tinha um ano, todas as vezes que visitava fazendas, na vida adulta, e sentia o cheiro da terra, se acendia nele aquela experiência estética. A relação da terra, das plantas, da diversidade dos vegetais, tudo aquilo estava impregnado nele.

As experiências estéticas na primeira infância impregnam nossa existência, são territórios nos quais construímos sentidos para nossa vida. É vital e potente para a humanidade se debruçar sobre a primeira infância. Ao perceber a complexidade desta fase da vida, podemos cada vez mais, intencionalmente, enriquecer as múltiplas relações que cada criança estabelece nas indagações do dia a dia, e inventar contextos para que a expressão por múltiplas linguagens aconteça, sem que com isso tenhamos que criar um universo de parafernálias e montanhas de materiais. Para que no simples, se dê o complexo; para que no arcabouço amplo, possamos mergulhar nas minúcias do dia-a-dia naquilo que é tenro. Será que podemos fazer isto acontecer no cotidiano, não como algo que acontece como efeméride ou celebração, mas nos pequenos movimentos diários?

Espaços da infância

As meninas e os meninos podem se sentir desafiados por situações muito corriqueiras, como andar no meio-fio – a fronteira entre a calçada e a rua -, sair correndo com uma grande folha, brincar com a água entre as mãos. Todos os espaços que existem no mundo são interessantes para a infância – alguns mais potentes, outros menos.

Emprestemos as reflexões de alguns geógrafos para perceber a relação entre as pessoas e o espaço físico. Para o brasileiro Milton Santos (2011), o território é o espaço físico acrescido daquilo que as pessoas fazem ali. O sino americano Yi-fu Tuan (2013) faz uma distinção entre espaço e lugar: espaço é o espaço físico e tudo o que o compreende – a topografia, o clima. Lugar é o espaço habitado, o sentido que o espaço faz na vida das pessoas. Quando o espaço ganha significação na vida de uma pessoa? Quais os valores postos ali?

Ao entrarmos em uma casa que tem muitos livros, pensamos: ”puxa, as pessoas que vivem aqui gostam de ler”. Se um espaço é muito iluminado, ao entrar ali, se pensa “nossa, que lugar claro, saudável”. Este é o valor do lugar. Às vezes, entramos em um ambiente que tem materiais nobres, como mármore, granito, que de alguma maneira informam que aquele é um espaço austero. Os espaços são habitados por nossos valores, por aquilo em que acreditamos: há marcas de nossas vidas ali.

O etnólogo e antropólogo francês Marc Augé (2004) trata dos não-lugares: lugares de passagem, não habitados, mas nos quais transitamos. Bonaldo e Careri (2013) abordam o caminhar como prática estética, considerando os lugares de passagem como uma possibilidade de quem caminha fazer paisagem, criando sentidos. Os filósofos franceses Deleuze e Guattarri (2017) também pensaram sobre a habitação dos espaços, definindo os espaços estriados como aqueles que já tem uma função pré-determinada, como os espaços institucionalizados, e os espaços lisos como aqueles em que acontecimentos inusitados podem acontecer.

As crianças são peritas em ocupar os espaços lisos, que, a princípio, seriam não- lugares. Elas fazem a paisagem, quando os ocupam. Embaixo das escadas, um lugar geralmente sem graça em que não acontece nada, as crianças fazem casas, brincam de pega-pega, de esconde-esconde. Várias brincadeiras da infância acontecem ali. Nas escolas, é muito raro ter um lugarzinho de aconchego para as crianças mais reservadas, que gostam de desenhar ou de ficar quietas. Na hora do recreio, geralmente é aquela correria, aquela alegria, as crianças jogando, brincando. As crianças introspectivas inventam um lugar para estar, muitas vezes usam os corredores entre salas.

São exemplos de lugares que não tem uma ocupação pré-determinada, nos quais as crianças inventam ocupações. São espaços que criam outras possibilidades de estar no mundo com aspectos que são nossos, singulares, que o mundo não supre. A transitoriedade dos espaços é, cada vez mais, algo vital para a vida contemporânea: um espaço que possa agregar, acolher muitos afazeres, experiências diferentes.

Lugares de leitura

Até um tempo atrás, as bibliotecas talvez fossem os únicos ambientes ideais para quem queria ler um livro. Mas em muitos espaços lisos e não-lugares se vê pessoas lendo: no banheiro, no ponto de ônibus, dentro do metrô. Isto faz com que a leitura povoe nossa vida em momentos que muitas vezes não se está fazendo nada, ou em que o trânsito nos deixa nervosos ou ansiosos para chegar.

Os espaços lisos podem nos trazer uma brecha para povoar o mundo de outros modos. Nosso tempo cotidiano e os modos como os operamos e significamos os tornam lugares singulares a cada ocupação. Os espaços lisos permitem que inventemos todos os dias, fujamos da institucionalização do que fazemos, possibilitando que nossa significação do mundo esteja em trânsito.

Vamos pensar os espaços da arte. Nos primeiros tempos, eram as cavernas. Totalmente fundidos com a vida, os espaços da arte estavam dentro da vida das pessoas. Nas sociedades mitológicas, aquelas que se organizam em torno das narrativas orais, arte e vida estão juntas. Depois, o homem foi especificando lugares para cada coisa: lugares da saúde, da educação, da leitura, da arte. Agora, estamos fazendo cada vez mais trânsito desses lugares, e a arte está misturada com a vida, de novo.

No caso da literatura, temos a literatura da tradição oral, as linguagens virtuais trazendo à literatura uma nova investigação, temos o livro, o áudio livro, televisões que trazem livros narrados por meio de imagens que se movimentam e, cada vez mais, as linguagens estão se articulando, se misturando, se tornando híbridas. O livro ilustrado traz a potência de linguagens em diálogo. No livro ilustrado, o picture book, há um diálogo entre a palavra e a imagem: a palavra alimenta a imagem e a imagem alimenta a palavra.

Pensando arte de uma maneira mais ampla – que inclui literatura, música, dança, artes visuais, teatro – que relações trazemos dela para nossa vida? Será que a vida pragmática precisa ser uma coisa separada de nossa vida poética? Como fazemos isso com a vida das crianças? Como a vida pragmática dialoga com a vida poética?

Relação entre palavras e imagens

Luiz Pérez Oramas (2012), curador do MoMA de Nova York e ex-curador da Bienal de São Paulo, trata sobre a relação entre a palavra e a imagem lembrando do mito de Narciso e de Eco. Narciso, quando olhava para sua própria imagem refletida na água, ficava encantado com ela, pensando que fosse outra pessoa. Ao mesmo tempo, a ninfa Eco, apaixonada por Narciso, tentava fazer com que sua voz, seus sentimentos, sua palavra chegasse a ele. Mas a voz de Eco sempre se voltava para ela mesma.

Oramas afirma que é da não possibilidade da correspondência absoluta entre a palavra e a imagem, que se alimentam mutuamente, que nasce a arte. Uma palavra nunca é traduzida por uma imagem, ela é sempre de certo modo traída, porque a palavra é uma coisa e a imagem é outra, são linguagens que se retroalimentam que não têm uma correspondência absoluta. Esse é o espaço da criação, de afeto vital onde, na obra de arte, podemos nos colocar.

É justamente nessa fenda da não correspondência entre as linguagens que a nossa imaginação, memória e percepção entram no encontro entre a nossa história de vida e a história que está sendo contada.

O livro como espaço a ser habitado, é tanto mais potente como um espaço para a infância quanto generosamente cria uma fenda para a invenção do outro.

Livros para crianças

O livro muitas vezes é equivocadamente simplificado para as crianças, mas são justamente elas que têm muito interesse pela complexidade. Elas gostam de livros que têm camadas de compreensão. Assim também acontece com as histórias de tradição oral. Elas oferecem a possibilidade de mergulhar em seu enredo em vários momentos da vida, permitindo a percepção de nuances, o que possibilita o envolvimento com aquela obra de arte.

Muitas vezes os meninos querem ler de novo a mesma história, querem que contemos a mesma história várias vezes – porque eles estão tendo contato com suas nuances, estão recontando suas próprias histórias, enquanto aquela história fica murmurando dentro deles. Nesse encontro é que o afeto vital se dá e, para que ele aconteça, precisamos lidar com a riqueza que pode ter uma obra de arte para uma criança.


Imagem: Fotografia Stela Barbieri.


Referências bibliográficas

AUGÉ, Marc. Não lugares. Campinas: Papirus, 2004.

BONALDO, Frederico; CARERI, Francesco. Walkscapes: o caminhar como prática estética. São Paulo: GG Brasil, 2013.

BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de Experiência. Revista Brasileira de Educação. Jan/Fev/Mar/Abr 2002 Nº 19. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n19/n19a02.pdf. Acesso em 15/02/2017.

DELEUZE, Gilles; GUATTARRI, Felix. O liso e o estriado. In Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia. Volume 5. São Paulo: Editora 34, 2017.

ORAMAS, Luiz Pérez. Entrevista para a #30bienal (Ações educativas). Luiz Peres Oramas: Eco e Narciso. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=8alRYmRm0M8. Acesso em 15/02/2017.

SACKS, Oliver. In KAYSER, Wim. Maravilhosa obra do acaso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

SANTOS, Milton. As metamorfoses do espaço habitado. São Paulo: Edusp, 2011.

TUAN, Yi-fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo: Eduel, 2013.

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  • Stela Barbieri

    É artista, educadora, escritora e consultora nas áreas de educação, artes e literatura. É conselheira da Pinacoteca do Estado de São Paulo e foi conselheira da Fundação Calouste Gulbenkian de 2012 a 2016. Foi curadora educacional da Bienal de Artes de São Paulo (2009-14) e diretora da Ação Educativa do Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo (2002-14). É assessora de artes plásticas na Escola Vera Cruz há mais de 25 anos, autora de livros infantis e contadora de histórias. Dirige o Binah Espaço de Artes, um ateliê vivo, com palestras, cursos e encontros experimentais. Membro do Conselho Gestor da Revista Emília.

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2 respostas

  1. Stela Barbieri, excelente artigo!
    Parabéns pela reflexão, também compartilhei em minha página do face e com os pais das crianças dos quais atendo em consultório.

    Abraços,
    Ruth

  2. querida Stela!

    achei excelente sua reflexão sobre o universo da aprendizagem infantil, me trouxe informações significativas. já compartilhei com amigos e colegas de trabalho.

    obrigado à Revista Emília por disponibilizar gratuitamente!

    abraços, Tatá

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