Existe um editor de literatura para crianças e jovens? | 1

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Muita gente me pergunta o que caracteriza um editor de literatura infantil e juvenil. Falar sobre o editor de literatura para crianças e jovens, em um plano mais geral, não nos remete a nenhum terreno original ou novo. Ao contrário, nos força a olhar para alguns dos traços mais característicos do fazer do editor, independentemente da área. Pois há sim um ofício de editor, que sobrevive e se faz cada vez mais necessário para enfrentar as fortes “tendências” que têm esvaziado essa função, assim como os novos desafios do fazer editorial.

A escritora, jornalista e especialista em leitura na primeira infância colombiana Yolanda Reyes, em recente visita ao Brasil (ela foi palestrante do último Conversas ao Pé da Página) expôs lindamente essa questão. Peço licença para compartilhar sua cristalina fala: “Gosto de usufruir da companhia de um editor e não a de um simples publicador. Entre essas duas figuras existe uma distância como a que há entre o atendimento de um médico particular e o de um médico de convênio, aquele que examina o paciente em menos de 15 minutos. Temo que os editores se converteram em uma espécie em vias de extinção. Me refiro àquelas espécies raras que se envolvem com seus pacientes (porque os escritores somos vulneráveis), conduzem suas patologias, e os acompanham durante este processo […]. Aqueles que lêem os nossos originais, como quem lê a íris, esquadrinhando os segredos que às vezes guardamos e outras revelamos. Aqueles que não se limitam a nos mandar um contrato com uma data de entrega e algumas provas rabiscadas em vermelho […], mas que nos revelam o que não podemos ver por falta de distanciamento: a possibilidades e os obstáculos. Aqueles que acreditam em seus autores, mas sem deixar seduzir-se pelas suas vaidades, nem pelo jogo de palavras. […] Aqueles que apostam com a gente e nos dão a confiança para explorar caminhos inusitados, sem deixar que vendamos o que poderíamos vender se repetíssemos a velha fórmula que já funcionou (e que não queremos que siga funcionando). Aqueles que valorizam a voz dos autores e não simplesmente as cifras do mercado, fazendo o impossível para vender os livros que entregamos. Estou pensando nessa mescla entre amigo incondicional e impiedoso conselheiro, que nunca vê o leitor, mas cuja ausência termina refletindo-se em tantas páginas que poderiam ser muito melhores se em vez de um publicador tivéssemos tido um editor”.

Essa longa e bela citação ajuda a iluminar a questão e coloca em cena o papel do editor que quero focar. Para muitos talvez isto soe antigo, dado o espaço progressivamente menor desta figura tão ligada a editoras independentes e com estreito compromisso cultural. Muitos dos grandes grupos editoriais, com estratégias ditadas exclusivamente pelo dito mercado, contribuíram muito para o esvaziamento do papel do editor. O coração do negócio foi deslocado da área editorial para a comercial ou de marketing, e esses departamentos começam a ditar normatizações quantitativas, abstratas na grande maioria das vezes e muito distantes do mundo do livro. A edição passou a estar a serviço das outras áreas – e não o contrário – e se converteu numa cadeia de produção, onde fluxos, cronogramas, prazos e companhia se impõem em detrimento do conteúdo, da qualidade, da singularidade de cada livro. Afinal, a questão passou a ser a produção em série e não mais a arte e a cultura.

O tal publicador ganhou força, muitas vezes na figura de um exímio controller de fluxos e procedimentos, que não lê o livro que publica e não tem domínio do processo global de edição – o que no caso da literatura para crianças e jovens é fundamental, como veremos mais adiante. Nesses casos, a pasteurização, a reprodução de fórmulas de sucesso que precisam ser reinventadas cada vez mais rapidamente, a vida cada vez mais curta dos livros, a busca da “novidade” pela novidade, acabam tomando o lugar do envolvimento, da criatividade, da ousadia e da procura pela qualidade, pelo diferente. E essa busca orienta, ao contrário, todo editor.

Nem de longe sou contra controle, prazos, planejamentos, pois sem o controle da produção não é possível entrar de forma competitiva no mercado. Do mesmo modo há algumas grandes empresas que sabem perfeitamente o valor e a importância de preservar e manter este editor e, não por acaso, são e continuam sendo as maiores. O x da questão não é o mercado e nem a existência dos instrumentos por ele criados, mas a inversão de competências (tão amplamente difundidas) e de foco que, no negócio do livro, comprometem o caráter cultural do empreendimento.

Pensemos neste editor que escuta, aposta, arrisca, se impõe contra o estabelecido. Ele imagina um livro a partir de uma ideia, estrutura o projeto, é parceiro dos seus autores e ilustradores, e tem em mente a criança e o jovem leitor contemporâneos. A história das editoras e dos editores é um tema pouco estudado; são poucos os depoimentos existentes que nos ajudariam a entender e esclarecer as razões das escolhas e das apostas constituintes da base da literatura para crianças e jovens vigente.

Mas vamos a alguns exemplos. Um dos maiores editores de literatura para crianças e jovens brasileiros tinha muito claro a importância da comercialização (e da distribuição) para a plena realização de sua obra: “Livro não é gênero de primeira necessidade […] é sobremesa: tem que ser posto embaixo do nariz do freguês, para provocar-lhe a gulodice”. Monteiro Lobato não só fundou como alçou a literatura para crianças e jovens brasileiros entre as melhores e se tornou exemplo de editor pioneiro de sucesso. Lobato foi um editor reconhecidamente “revolucionário” para sua época, pois além de abrir portas para novos escritores, dinamizou as práticas editoriais, trouxe qualidade ao livro, incorporou a cor, abriu mercado, inovou na divulgação, arriscou e, sem dúvida, foi um dos responsáveis por dar o pontapé inicial na indústria brasileira do livro.

E como Lobato, outros grandes nomes da edição marcaram profundamente os caminhos trilhados pela literatura infantil e juvenil de nosso tempo. Um dos exemplos mais emblemáticos é, sem dúvida, o de Ursula Nordstrom, que trabalhou como editora chefe por mais de 30 anos (1940 – 1973) na lendária Harper & Row e foi responsável pelas profundas mudanças na edição de literatura para crianças nos Estados Unidos, abrindo as portas para a modernidade. O seu lema era “publicar livros bons para crianças más” e seu objetivo era libertar a literatura infantil de todo convencionalismo e sentimentalismo barato que até então a caracterizava. Ela apostou e bancou seus autores. Publicou os primeiros livros com os chamados temas duros – tão em voga hoje em dia – como homossexualidade, racismo, separação.

Só alguém afinado com as mudanças do seu tempo, na vanguarda, sensível às transformações sociais e antevendo mudanças na estrutura familiar, e na própria infância, apostaria na inteligência das crianças e na capacidade das crianças para absorver conteúdos até então proibidos. Devemos muito a Ursula. Ela descobriu Maurice Sendak quando ele fazia vitrines na FAO Schwarz (onde Tom Hanks e Robert Loggia tocam piano em “Quero ser grande”). Como se fosse pouco, ela também publicou Tomi Hungerer, Quentin Blake, Arnold Lobel, Shel Silverstein e muitos outros.

Esses são, sem dúvida, dois dos grandes monstros da edição de livros infantis, exceções a quem devemos o que há de melhor na literatura infantil e juvenil que marcou as bases da produção contemporânea. Um no Brasil, outro nos Estados Unidos, sujeitos de épocas e histórias distintas, porém compartilhando do mesmo respeito pelo ponto de vista das crianças e pela sua inteligência como sujeitos de seu tempo. Figuras controversas, adversas a concessões, ambos apostaram na criatividade e na qualidade literária como meta do fazer editorial. Por caminhos distintos, ambos gozaram da liberdade necessária para implementar seu projeto editorial. Ambos mudaram o mercado do livro, ampliaram fronteiras.

Se essas experiências são únicas, elas também servem de inspiração e de exemplo para todos os editores. Em praticamente todos os países há editores emblemáticos de literatura para crianças e jovens e acompanhar sua trajetória é uma das melhores escolas deste ofício que pela sua complexidade não se resume a modelos ou técnicas.

Mas vamos deixar isto para uma próxima.


Imagem: Ilustração de Daniela Murgia.


Referências Bibliográficas

CECCANTINI, João Luis, “De raro poder fecundante”, in Monteiro Lobato Livro a Livro, LAJOLO, Marisa e CECCANTINI, João Luis, Editora UNESP e Imprensa Oficial, SP, 2008.

MARCUS, Leonard S., Dear Genius. The letters of Ursula Nordstrom. Organizado e editado por Leonard S. Marcus e ilustrado por Maurice Sendak. Harper Collins, 1998.

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  • Dolores Prades

    Fundadora, diretora e publisher da Emília. Doutora em História Econômica pela USP e especialista em literatura infantil e juvenil pela Universidade Autônoma de Barcelona; diretora do Instituto Emília e do Laboratório Emília de Formação. Foi curadora e coordenadora dos seminários Conversas ao Pé da Página (2011 a 2015); coordenadora no Brasil da Cátedra Latinoamericana y Caribeña de Lectura y Escritura; professora convidada do Máster da Universidade Autônoma de Barcelona; curadora da FLUPP Parque (2014 e 2105). Membro do júri do Prêmio Hans Christian Andersen 2016, do Bologna Children Award 2016 e do Chen Bochui Children’s Literature Award, 2019. É consultora da Feira de Bolonha para a América Latina desde 2018 e atua na área de consultoria editorial e de temas sobre leitura e formação de leitores.

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