Ficção e informação

Post Author

Nos debates sobre promoção de leitura, nos artigos especializados e em muitos congressos é visível uma tendência para o destaque, para não dizer único, da defesa da leitura literária como única via para a formação de leitores. A maioria das bibliografias elaboradas por instituições e bibliotecas dão prioridade à leitura de obras de ficção. Também na escola, o ensino da leitura tem como referência principal os livros de ficção, como se os livros informativos dependessem de outras matérias.1Artigo originalmente publicado na Revista CLIJ, nº 166.

A intenção deste artigo não é a de se contrapor a nenhuma das teorias que reforçam a ideia de que o leitor se forma, sobretudo, a partir do desenvolvimento da imaginação promovido pela experiência da leitura, mas tratar de ampliar esse conceito. Marc Soriano, a propósito da identificação do leitor com o que ele lê, disse: “Dou risada e me emociono com o que acontece com um personagem com quem não possuo nenhum vínculo e que sei perfeitamente que não existe”. Essa emoção é o que a pesquisadora Louise Rosenblatt, em seu excelente livro, La literatura como exploración, define como leitura estética, isto é, aquela que de alguma maneira nos comove. “Um propósito estético implica que o leitor preste mais atenção nos aspectos afetivos. A partir da mistura de sensações, sentimentos, imagens e idéias constitutivas da narrativa, do poema ou da peça de teatro” (La literatura como exploración, pg. 60).

A motivação do leitor

A essa leitura estética do âmbito da ficção, se opõe, tradicionalmente, uma leitura chamada – também por Rosenblatt – eferente, isto é: “/…/ nesse caso a nossa atenção se centra principalmente em selecionar e abstrair analiticamente a informação, as idéias ou as orientações para a ação que perdurará depois de concluída a leitura” (La literatura como exploración, p. 59). Essa dualidade nas formas de ler é o que faz com que os livros informativos sejam classificados unicamente como textos dos quais podem ser extraídas informações, enquanto que os literários promoveriam a oportunidade de se isolar do mundo real para sentir experiências estéticas e emocionais.

No entanto, as experiências leitoras, tal como estudadas “desde a descoberta” do leitor como um ator importante na construção de significados, não dependem unicamente da intenção do autor ao escrever determinada obra, mas principalmente da motivação com a qual o leitor a enfrenta. Rosenblatt denomina este intercambio de acordo, pois considera que o livro permanece sem significado até o momento que um leitor o atribui. Por isso, o leitor é uma entidade única e um mesmo livro despertará sensações e emoções diferentes nos leitores dependendo de suas circunstâncias pessoais, sociais etc. O leitor, além disso, não é um simples receptor da obra, ele pode ser considerado um co-criador, na medida em que intervém para atribuir significados naquilo que lê.

Betty Carter sugere que seja dado ao leitor a oportunidade de decidir a sua forma de ler, pois de fato é ele quem determina o tipo de leitura que ele realizará. Em um texto literário de Julio Verne, um leitor poderá se lembrar dos personagens principais e de algumas informações técnicas: terá feito uma leitura eferente, pois o que lhe interessava do texto eram informações precisas. Por outro lado, em um livro informativo sobre a viagem à lua, o mesmo leitor poderá indagar: o que será que o astronauta sentiu quando pisou na lua? Apelando assim as suas emoções para dar sentido ao texto. Curiosamente, em muitas das atividades escolares ou de promoção da leitura que se centram em textos de ficção são muitas as ocasiões em que se convida à leituras exclusivamente eferentes. Dito com o humor de Pennac: “Vamos, o que aconteceu com o príncipe, heim? Estou esperando!”. Em muitas outras oportunidades utilizam-se as próprias novelas apenas como apoio à conteúdos de outras matérias do conhecimento: pesquisar no mapa onde fica Roma, ou contar o numero de metáforas que aparecem.

Leitura prática, leitura estética

A leitura de textos informativos – ou expositivos, como os chamam alguns linguistas – implicam em dificuldades muito concretas, desde extrair a informação principal até saber mover-se em um formato textual que nem sempre esta ordenado da esquerda para a direita, como acontece nos livros de design mais elaborado ao alcance dos leitores faz já alguns anos. Os leitores precisam estar treinados, não apenas no que se refere a todo o aparato para textual dos livros e seu manuseio (índices, sumario, glossário, projeto gráfico, etc.), mas também e sobretudo, numa atitude crítica diante do texto. Não vale se deixar levar pela trama e se isolar do entorno: o leitor de livros informativos precisa se situar diante da obra de maneira crítica, identificar as intenções do autor comparando o que ele conta e investigando porque ele quer contar justamente isso, julgar o grau de veracidade, fazer prognósticos ou inferências…

No entanto, nas praticas de difusão da leitura se cuida menos dessas necessidades de formação, distanciando os leitores de uma experiência leitora cada vez mais inevitável. Seria naturalmente desejável que muitos futuros cidadãos incluíssem em suas práticas de ócio a leitura de obras de não-ficção, isto porque muitos artigos alertam sobre a distância cada vez maior do cidadão para com a ciência em sociedades que, por outro lado, vivem cada vez mais no ritmo das descobertas tecnológicas. Diante disso, não é tarefa também da formação de leitores abrir portas para esses textos, divulgar conhecimentos e fazer com que o encontro com a ciência seja algo mais próximo e real?

Afortunadamente, apesar das oscilações do mercado que fazem desaparecer de um só golpe coleções inteiras interessantes, na atualidade se produzem livros que são excelentes para criar pontes entre essas suas maneiras de ler, a estética e a eferente, auxiliando os leitores a indagar o que significa uma leitura pratica enquanto lhes oferecemos textos que lhes brindam leituras estéticas sugestivas.

O conto que o mundo nos narra

A ciência pode ser contada de muitas maneiras, desde a clássica concepção do livro científico com linguagem impessoal e mais descritivo, até a que utiliza a linguagem da historia em quadrinhos, como era comum de se ver em muitos livros dedicados à ecologia publicados no início da década de 90. Por outro lado, é necessária a intervenção de autênticos divulgadores capazes de “traduzir” em linguagem compreensível os inúmeros tecnicismos e o vocabulário especializado tão frequentes na divulgação científica. Nos livros informativos para crianças existem, há alguns anos, livros escritos por divulgadores que adotam uma linguagem mais simples e compreensível para o leitor. Um exemplo são algumas coleções, como a Joven arte da editora espanhola Lóguez, deliciosos tratados de arte que prendem a atenção desde as suas primeiras páginas. No livro de Thomas David sobre Mona Lisa, o primeiro capítulo começa como um thriller do roubo do quadro, em 1911, e o leitor é comunicado da importância de um fato como esse da seguinte maneira: “Quando o quadro mais famoso desaparece de repente, é tão terrível como se a ópera mais bela ou a pirâmide mais antiga fossem perdidas. Ou o maior dos oceanos ou a montanha mais alta”.

É possível argumentar que existem temas mais fáceis de expor sem tecnicismos, mas livros como o clássico e imprescindível Cómo funcionam las cosas, de David Macaulay, demonstram que a intenção do autor de levar aos leitores mais jovens conhecimentos científicos é uma tarefa possível, sempre e quando se combine na medida certa uma documentação rigorosa com qualidades de divulgador, o que nem sempre está ao alcance da imaginação e dos recursos de qualquer um.

Um outro exemplo de muito sucesso são as coleções publicadas pela editora espanhola Molino, Esa gran cultura, Esa horrible ciência ou Esa horrible historia, que pretendem desmistificar e aproximar temas utilizando passagens engraçadas e simplificando as informações sérias e por vezes incompreensíveis à perguntas concretas. São textos que buscam a cumplicidade do leitor e o instigam constantemente, ou fazem referências a sua vida, quando por exemplo explicam que “todos os que conheceram Van Gogh garantem que ele vivia e trabalhava no meio de uma grande e suja bagunça (algo muito parecido ao quarto de quase todos os meninos de 10 anos).”

Também existem coleções e livros cujos autores preferiram um formato narrativo para apresentar a informação que, em alguns casos, podem até ser enquadrados como ficção. São esses livros diante dos quais a gente se pergunta: afinal é um conto ou um livro informativo? Numa classificação das tipologias dos informativos sugerida por Luigi Paladin e Laura Passinetti, encontramos a denominação de “informativo de ficção” que se caracteriza pela combinação de um texto mais ou menos ficcional, isto é, pessoal, com uma estrutura interna ordenada e uma informação que, apesar do tom as vezes informal, não abre mão do rigor.

A estrutura narrativa tem sido usada tradicionalmente para temas considerados difíceis, isto é, aqueles cuja realidade produziria um choque na sensibilidade dos leitores, que ficariam bloqueados frente a evidencia de alguns temas, como por exemplo, a perseguição nazista (sobre o qual existem excelentes novelas bem documentadas que recriam ambientações e sentimentos difíceis de expressar de outra maneira, como as de Christine Nostlinger, Peter Hartling o Judith Kerr), os direitos humanos, ou um ataque nuclear (as novelas de Gudrun Pausewang ou as Historias em Quadrinhos de R. Briggs são bons exemplos).

No entanto, há excelentes exemplos de livros de estrutura narrativa (que contam histórias) que permitem se aproximar da ciência e do conhecimento. Às vezes parecem álbuns e costumam ser identificados com leituras literárias, desconsiderando seu valor de aproximar o leitor da cultura científica. É só lembrar do que ocorreu com os livros de Mitsumasa Anno quando foram publicados na Espanha. Muitos desses livros aproveitam o que o paleontólogo espanhol Juan Luis Arsuaga define como o “conto que nos narra o mundo em que vivemos”, e oferecem uma experiência estética tão apaixonante como ler uma novela enquanto nos dão a conhecer algum assunto. A maioria desses livros são destinados aos primeiros leitores e são muito adequados para começar a ensinar as diferentes formas de ler, para explicar que o conhecimento se encontra também nos livros e para ensinar a se aprofundar neles.

Uma atividade muito recomendável seria a incorporação desses livros na leitura e a posterior discussão coletiva, levando em consideração as questões cientificas que se quer explorar e o propósito de ampliar as experiências leitoras.

Uma autora que utiliza esse formato narrativo para explicar os mistérios da natureza humana é Babette Cole. Nos seus livros encontramos a explicação muito bem humorada da origem das crianças (Mamãe botou um ovo!, Ática), onde inverte com inteligência os papeis das explicações sexuais entre pais e filhos. Ou quando explica as mudanças hormonais (Cabelinhos nuns lugares engraçados!, Ática).

Existem temas que se prestam melhor para serem abordados de maneira narrativa, como por exemplo as ciências abstratas. O sucesso de livros como O diabo dos números, de Enzensberger (Companhia das Letras), onde, por meio de uma história, o leitor é convidado a decifrar algumas operações matemáticas, refletem ao mesmo tempo um buraco editorial nessas temáticas, como o interesse de uma boa parte da população (não apenas crianças) por assuntos que dizem respeito à vida cotidiana. Explicar a passagem do tempo é um desafio, principalmente para os primeiros leitores, cujas coordenadas cronológicas não estão ainda formadas. No livro El siglo mas nuevo del mundo, Teresa Duran cria Papai Tempo e Mamãe História, dois personagens que esperam a chagada de um novo século. Outro exemplo é o livro Las estaciones, de John Burningham, no qual as imagens são usadas como recurso narrativo para ilustrar a passagem do tempo junto com o complemento de um brevíssimo texto de estrutura circular.

Um exemplo de narrativa através das imagens é Zoom (Brinquebook), cuja engenhosa estrutura em forma de câmera se aproxima da imagem enquanto esta muda de cenário e nos mostra um repertório de culturas e sociedades que oferecem inúmeras possibilidades de indagação de outros cenários sociais. Outro livro de caráter mais cientifico, Diez semillas (Brosquil, 2003), que acompanha de maneira surpreendente a vida e a transformação de 10 sementes e sua relação com o entorno. A economia de recursos, o tom escolhido para contar e a estrutura circular e repetitiva transformam a leitura numa apaixonante indagação sobre a natureza e levanta questões, enquanto que a estrutura narrativa da história convida a uma leitura com uma emoção mais estética que eferente.

Livros “abertos”

Por que não incluir esses livros nas nossas práticas de promoção da leitura? Em muitos casos, o tema abordado é tão pouco comum que os transforma em obras especiais, como o livro La siesta, que alem de explicar a rotina muito particular e prezada por muitas crianças (e adultos!), escolhe uma fotografia artística, onde é recriado, de maneira muito especial, esse momento praticamente ausente nos livros para crianças. Neste livro ilustrado, a fotografia artística é um recurso muito original, pois é usado para despertar sensações por meio de cores artificiais. Somente na última cena é mostrada uma composição completa, apresentada até então por partes.

Um excelente livro para criar pontes entre a leitura estética e a eferente, é O mensageiro das estrelas: Galileu Galilei, de Peter Sis (Ática), no qual é contada a vida do cientista e são apresentadas de forma simultânea vários níveis de leitura, diferenciados por tipografias. Num deles é relatado, de forma simples e ficcional, a vida de Galileu, enquanto que, nas ilustrações inspiradas em imagens medievais, aparecem fragmentos de diários, cronologias, citações da época e referências que remetem a uma pesquisa cuidadosa. O uso de fontes primarias como os diários e a apresentação de documentos separados da ficção ajudam o leitor a transitar por dois tipos de leitura, uma estética e outra eferente, ao mesmo tempo que o conjunto fala tanto da fé em si mesmo como da importância do método cientifico.

Outro campo onde se usou o formato ficcional para a exposição de conteúdos é a arte, onde é possível observar uma grande profusão de obras que, com a desculpa de uma história, contam algo relacionado com os museus, os quadros ou seus criadores. Desde aquela coleção de Los artísticos casos de Fricando, onde se conta a história de um detetive que tenta resolver um caso relacionado com a arte contemporânea, até os textos como os publicados por Alain Serres em muitas de suas coleções, onde uma menina visita um museu e entra literalmente dentro dos quadros para investigar que histórias eles escondem.

Por último, gostaria de falar dos livros de Janell Cannon, que possuem o encanto de saber combinar uma história de ficção com dados científicos apoiados em dados rigorosos. Em Stelaluna, as peripécias de um morcego que cai por engano dentro de um ninho de pássaros e deve se aclimatar por um tempo a seus costumes, despertam nos leitores instigantes perguntas e os convida a indagar a vida destes animais estigmatizados com uma imagem assustadora na literatura e no cinema. O fato de que praticamente todos os morcegos se alimentam de frutas certamente aguçara a curiosidade dos pequenos e despertara um produtivo diálogo depois da leitura, além da história ficcional fisgá-los com sensibilidade e encanto. Em seu outro livro Verdi, é apresentada da mesma forma sugestiva a vida e os costumes de uma serpente.

Em ambos os casos o recurso ficcional é certamente intencional, pois consiste em desmistificar as lendas obscuras que pairam sobre esses animais e apresentá-los com simplicidade a um leitor que gosta de ficção.

Muitos desses livros cumprem uma tarefa essencial na formação dos leitores como no desenvolvimento de seu espírito cientifico: deixam muitas portas abertas, levantam questões que instigam as crianças e as convidam a discutir ou a pesquisar mais. São livros “abertos”, de acordo com a definição de Natalia Becerra e Cano e M. Elvira Charría, isto é, que ampliam a experiência leitora para além do texto e do livro, e oferecem às crianças a oportunidade de ser ativos em seus aprendizados. Como diria Desmond Morris em seu fascinante livro El mundo de los animales: “Se, quando você tiver lido estas páginas, sentires a necessidade de estudar um animal por iniciativa própria, sentirei-me muito satisfeito e estou certo que você nunca se arrependerá”.

Tradução Dolores Prades.

Referências Bibliográficas

Betty Carter, Lectura eferente. Importancia de los libros de información. Caracas (Venezuela): Banco del Libro, 1999.

Daniel Pennac, Como um romance. Rio de Janeiro: L&PM

Louise Rosenblatt, La literatura como exploración. México: Fondo de Cultura Econômica.

Desmond Morris, El mundo de los animales. Madri: Siruela, 1999.

Luigi Paladin e Laura Passinetti, “El arte de la divulgación. Viaje por los libros de divulgación para niños y jóvenes”. Em: Libros de México 54, 1999.

Marc Soriano, La literatura para niños y jovenes. Buenos Aires: Colihue, 1995.

Natalia Becerra de Cano e Maria Elvira Charría, Los niños investigadores y la obra documental. Bogotá CERLALC, 1993.

Nota

  • 1
    Artigo originalmente publicado na Revista CLIJ, nº 166.

Compartilhe

Post Author

Autor

  • Ana Garralón

    Ana Garralón trabalha com livros infantis desde finais dos anos 80. Colaborou como leitora crítica para muitas editoras, realizou oficinas sobre formação e incentivo à leitura e livros informativos em importantes instituições. Escreve regularmente na imprensa. Publicou Historia portátil de la literatura infantil, a antologia de poesia Si ves un monte de espumas e 150 libros infantiles para leer y releer (CEGAL, Club Kirico, 2012 e mais recentemente Ler e saber: os livros informativos para crianças (Pulo do Gato, 2015). É membro da Rece de Apoio Emília. É autora do blog http://anatarambana.blogspot.com.br/.

Artigos Relacionados

Livro ilustrado não ficcional

Carta aberta em defesa do livro, da leitura, da literatura e das bibliotecas

Passado e futuro do livro álbum

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *