Fora os livros sexistas?

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Recentemente, a comissão de gênero de uma escola em Barcelona tentou melhorar sua biblioteca retirando os livros com traços sexistas do ensino infantil. Isto levantou uma polêmica na mídia e nas redes e recebemos muitas demandas de opinião sobre esta iniciativa. Oferecemos aqui uns breves pontos de reflexão sobre esta questão, que podem ajudar o debate:

  • Os contos populares não deveriam ser lidos de maneira literal e realista. Não apenas encontraríamos traços sexistas, mas também canibalismo, torturas, violações e todo tipo de despropósitos. Não foram feitos para crianças, têm origem incerta e formam parte da base da literatura de todos os povos. Os personagens são arquétipos (o herói, o agressor, o ajudante, a recompensa, etc.) e seus compartimentos foram se enchendo e se fixando ao longo dos tempos com princesas, dragões e lobos. Não se propõem nunca transmitir nenhuma moral explícita. Se existe, é que alguém a introduziu, como os Grimm, quando fazem que Chapeuzinho seja desobediente e por isso se encontra em uma boa enrascada. Mas, por outro lado, contém sim mensagens implícitas valiosas, tais como se alguém se esforça bastante conseguirá seu objetivo.
  • São bons demais para poder prescindir deles. Chapeuzinho Vermelho, por exemplo, é um esplêndido relato com a imagem em vermelho e preto, o suspense da vítima avançando até a casa onde o seu devorador a espera, o diálogo em tensão ascendente, a sedução tentadora ou a contraposição entre a inocência e a força bruta. Estão povoados de casinhas de chocolate, bosques petrificados, anéis mágicos e outros objetos que são imagens potentes que introduzem o prazer da literatura nas crianças.
  • Podemos brincar com eles de maneira criativa. Dar uma volta a seus traços detonantes ou introduzir o humor e a ironia. As versões atuais o fazem e muito bem. Isso leva as crianças a perceberem esses aspectos e participarem da brincadeira. Mas devem conhecer os originais para saber com quem se está jogando. Ponhamos as versões atuais junto as tradicionais.
  • Se banimos os livros sexistas de qualidade, a que idade poríamos uma fronteira para a censura? Porque é toda a literatura que está tingida pelos ares de seu tempo. Tanto os livros infantis e juvenis clássicos como as obras dos adultos. As crianças aprendem a receber à ficção com distanciamento em relação a esses valores ameaçadores. Tal como nós lemos a Shakespeare.
  • Não se pode escolher entre extremos: ou o consumo acrítico de livros sexistas, ou o retrato de uma sociedade desejada, mas inexistente. Nos livros infantis sempre há uma tensão entre como é o mundo e como deveria ser. Os bons livros a resolvem bem. A vigilância chamada de «politicamente correto» tem tido a virtude de assinalar os silêncios dos contos (sem protagonistas meninas, negros, ou com necessidades especiais, por exemplo) ou de introduzir o respeito por todos, mas não deveria ser um novo didatismo que esterilize a maneira como a literatura explora as emoções, atitudes ou comportamentos. Uma função da arte educativa para qualquer pessoa.
  • Podemos pensar que os contos têm um impacto direto sobre o comportamento, isto é, que se indicam um comportamento como bom ou mau, o leitor o adotará ou rechaçará. Mas muitas obras infantis, como Pinóquio, triunfaram pelo deleite do leitor com as travessuras do personagem, por mais que o narrador as condenasse. E os selvagens contos populares não transtornaram psicologicamente as crianças, nem conduziram ao aumento social do incesto ou do abandono infantil, por exemplo.
  • Os livros não são uma ilha. As crianças vivem imersas em muitos discursos ideológicos provenientes dos adultos, da publicidade, da televisão, dos brinquedos, etc. Muitas vezes são totalmente contraditórios uns com outros. Os pequenos formam sua própria constelação de valores a partir de todas estas vozes. Podemos censurar os livros e os deixar ver televisão?
  • O que interpretam as crianças (todos os leitores) é uma incógnita. Pode ser que o conto reafirme a ideologia do leitor (porque é igual a sua ou, ao contrário, porque provoca rejeição) ou pode ser que lhe permita questioná-la, ampliando seu olhar sobre outras posições. E também pode ser que nem perceba a mensagem.
  • O que aprendem as crianças? Que os contos falam do mundo e fornecem muitas informações sobre as pessoas e sobre os valores morais de suas ações. Que as mensagens podem ser explícitas ou que tem que estar atento para percebê-las. Que essas mensagens podem coincidir com as opiniões de seu entorno ou não, sobre tudo se os contos estão distantes no tempo ou das culturas. Nos oferece a oportunidade de um excelente exercício interpretativo.
  • Como podemos ajudá-los na escola? Fazendo debates ou atividades para ver quem defende um conto sobre um tema e a partir de que detalhes o sabemos; para distinguir que conto descreve, parodia ou denuncia um feito; o que acontece se trocamos o gênero ou a raça do personagem, etc. E talvez não seria de mais verificar se a biblioteca tem muitos livros didáticos que funcionam como um sermão, em lugar de fornecer as vantagens formativas da literatura.

Tradução Lurdinha Martins


Imagem: Ilustração de Geoffroy de Pennart, para Chapeuzinho redondo, Brinque-Book.


Referências

COLOMER, Teresa et al. Narrativas literarias en educación infantil y primaria. Madrid: Síntese, 2018

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  • Teresa Colomer

    É professora de Didática da língua e da Literatura na Universidade Autônoma de Barcelona. Coordenadora do Grupo de Pesquisa de Literatura Infantil e Juvenil e de Educação Literária (Gretel), da Universidade Autônoma de Barcelona, Colabora regularmente com revistas educativas e de literatura para crianças e jovens.

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Uma resposta

  1. Oferecer à criança desde a infância o contato com livros de acordo com a idade,vai possibilitar a ela um desenvolvimento intelectual e uma compreensão melhor do mundo.
    Se houver interesse da criança,pode-se conversar sobre algum assunto do livro,adaptando à realidade.
    Sou contra retirar textos de livros tradicionais por causa do politicamente correto.Os textos clássicos devem ser conservados na íntegra.Não se julga o passado com a medida do presente.

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