Forma e sonho

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Mais um exemplo de design na leitura – conceito desenvolvido nas colunas anteriores, onde o design do livro é pensado como mediador de leitura, os devaneios de Ismália, trazidos à luz pelos versos rigorosamente construídos por Alphonsus de Guimaraens no início do século passado, ganham nova vida, e nova leitura, a partir da arte e do design de Odilon Moraes, na edição publicada pela Cosac Naify em 2006.

Subvertendo conceitos pré-estabelecidos, Odilon propõe, com o intuito de valorizar a experiência literária do poema simbolista, uma ressignificação não apenas do texto, mas do próprio objeto-livro. Ao recusar o formato tradicional do códice e propor o formato sanfonado, o ilustrador e designer propicia que as mãos e os olhos do leitor repitam os movimentos da personagem, que ora olha para o céu e ora olha para o mar, em um ritmo alternado de leitura.

Ismalia capa e livro aberto

Nas palavras do próprio Odilon Moraes, no artigo “O projeto gráfico do livro infantil e juvenil”,

(…) a oscilação entre o ‘em cima’ e o ‘embaixo’, que se repete por todo o poema, é reforçada pelo manuseio do objeto. Sua narrativa se desenrola não no sentido horizontal de um passar de páginas em um livro tradicional, mas na vertical, como proposto pelo projeto (…) (Moraes, 2008, p. 58)

Ismalia miolo
Ismalia miolo
Ismalia miolo
Ismalia miolo

Dessa forma, folhear o livro passa a ser parte integrante da leitura da poesia, participando, de forma intrínseca, da sua construção de sentidos. Ismália nos faz lembrar que, provocados pelo conteúdo textual, outros formatos de livro se fazem possíveis e instigantes.

Da mesma forma que a lua no céu é espelhada no mar, sendo mas não sendo ao mesmo tempo, alternando-se a imagem com seu reflexo, ilustrações quadro a quadro acompanham os versos, em uma representação sensível e autoral, que espelha, de outra forma, em outra linguagem, as palavras do poeta. Com a proposta de um livro ilustrado, Odilon recolocou o poema, retirando-o da leitura convencional propiciada pelo jornal, onde foi inicialmente publicado, ou mesmo pelo livro tradicional, para leva-lo à leitura dinâmica de um suporte que agrada especialmente a crianças e jovens. Mas com certeza não só a crianças e jovens.

Desvendando os conceitos que permeiam as escolhas artísticas do livro, Isabel Lopes Coelho, coordenadora editorial do projeto, escreve o texto de apresentação da obra e nos mostra a dimensão simbólica da imagem:

Odilon refinou ainda mais a leitura em cores do poema: a construção de imagens quadro a quadro e as bordas brancas – que se alternam conforme o afastamento das cenas – são recursos cinematográficos, uma referência à modernidade. O tom das ilustrações, no entanto, de forma alguma permite aproximar a leitura da obra à rapidez contemporânea. As pinceladas em aquarela resgatam a melodia e delicadeza dos versos simbolistas.

O livro ilustrado é geralmente proposto ao leitor infantil, mas traz em si o potencial de tocar qualquer leitor sensível, capaz de entender que a imagem tem um papel muito além do adorno estético ou de reforço ao conteúdo escrito. Constituindo-se como linguagem, a ilustração articula-se com o texto para a construção de sentidos.

Ismália é exemplo de integração entre texto e imagem realizada de forma única por meio de um projeto gráfico cuidadoso. Desde a escolha do papel mais encorpado, passando pelo formato pequeno e pelos acabamentos da encadernação – com capa forrada em tecido e caixa tipo luva para proteção – ao cuidado com o ritmo empregado pela sequência de imagens, o livro foi pensado como objeto único e coeso em todos os seus aspectos.

O sonho de Ismália toma corpo no objeto-livro, no texto, nas ilustrações e no design. O leitor participa de seus devaneios na jornada propiciada pela experiência literária e mediada por todas as linguagens presentes no livro. É através da forma que se faz o contato primeiro com o texto, que se descortina a fantasia, e que se permite o voo do leitor em direção a muitas luas.

Referências Bibliográficas

Isabel Lopes Coelho. “Os reflexos de Ismália”. Em: Alphonsus de Guimaraens. Ismália. Ilustrações Odilon Moraes. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

Odilon Moraes. “O projeto gráfico do livro infantil e juvenil”. Em: Ieda de Oliveira (org.). O que é qualidade em ilustração no livro infantil e juvenil: com a palavra o ilustrador. São Paulo: DCL, 2008, pp. 49-59.

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  • Maíra Lacerda

    Designer e professora da Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense. Atua como formadora em diferentes projetos de formação de leitores realizados pelo Instituto Corresponsabilidade pela Educação, pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, pela Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro e pelo Instituto ECOFUTURO. Pesquisadora do Laboratório Linguagem, Interação e Construção de Sentidos (LINC Design), da PUC-Rio.

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