Indicadores e avaliações

Post Author

Muitos são os aspectos que vêm sendo abordados quando o assunto é leitura e formação de leitores. Desde o reconhecimento do direito de ler e escrever até as novas formas e suportes em que a letra se oferece atualmente, passando pela seminal formação de professores – e aqui incluo os bibliotecários, que se movimentam para recuperar a condição de referência como profissional da leitura -, considerados os principais mediadores de leitura no Brasil, são muitos os olhares e entendimentos na área. À medida que o tema ganha espaço e atenção nas políticas públicas, o que pode ser traduzido em investimentos financeiros, uma preocupação relativamente nova no campo da Cultura vem se apresentando em projetos e programas de promoção da leitura. Se a Educação já conta, há bastante tempo, com instrumentos internacionais consolidados para a avaliação da qualidade do ensino, só recentemente começamos a ganhar intimidade, no caso de ações que extrapolam os muros da escola, com termos como “indicadores”, “planejamento estratégico” e “impactos sociais”.

Numa lógica de organização e otimização – e essa palavra se insere nesse contexto – da máquina pública e dos seus recursos, impôs-se a necessidade de tudo sistematizar e avaliar, o que traz grandes benefícios para a administração e a gestão pública e, consequentemente, para a população. No entanto, quando é de formação de leitores que tratamos, o que, é importante ressaltar, em muito difere da formação de sujeitos funcionalmente alfabetizados, as tentativas de formulação de indicadores e a avaliação dos impactos sociais dos projetos de estímulo à leitura e bibliotecas esbarram em problemas conceituais muito significativos.

Em documento sobre os cursos de formação para professores e mediadores de leitura realizados ao longo do tempo pelo PROLER, Nilma Lacerda professa uma idéia de leitor que extrapola em muito as habilidades de ler e escrever satisfatoriamente um texto. Para ela,

“o livre-arbítrio – que tornas os seres humanos responsáveis por seus atos – encontra sustento devido na informação e no arcabouço reflexivo que caracterizam a condição de leitor. Ler não é tão-somente uma ação pragmática, porém um exercício da razão e do devaneio – duas faces que compõem a mente humana, como cara e coroa fazem o todo de uma moeda. (…) leitores costumam ser formuladores de perguntas e capazes, como tal, de escrever sentenças diversas das que lhes foram ensinadas como as únicas possíveis, verdadeiras ou legítimas. O fato de ser leitor traz como única garantia a perspectiva da escrita como tarefa aberta, inacabada, que a humanidade confia a si própria, na possibilidade de exercer o melhor de sua condição”.

Tomando o conceito de leitor consignado por Nilma Lacerda, constatamos que tanto os modelos avaliativos quanto a proposição de indicadores que hoje nos servem de parâmetro e argumento na formulação de programas e projetos para a promoção da leitura são pouco significativos qualitativamente. Conseguimos aferir o número de usuários de uma biblioteca, a quantidade de livros emprestados e até mesmo com que freqüência determinadas pessoas fazem uso dos serviços bibliotecários, por exemplo. Mas como mensurar e avaliar a apreensão da leitura, na perspectiva defendida por Nilma Lacerda? Como fazer uma avaliação formal descolada do pragmatismo e da funcionalidade cotidiana? Como, através de indicadores verificáveis, mensurar o entendimento do sujeito e sua participação no mundo da escrita? Como avaliar o impacto social da capacidade de devanear e de se deslocar de questões de interesse imediato?

Pierre Bourdieu, num já clássico debate com Roger Chartier sobre a leitura como prática cultural, coloca em questão a legitimidade das respostas que são oferecidas às perguntas realizadas em pesquisas sobre leitura: mais que o que e sobre que lêem, é importante saber de que maneira as pessoas o fazem. Segundo Bourdieu, as respostas oferecidas para “o que você lê?” tem como norte uma questão interior que é “o que é que eu leio que mereça ser declarado?”. Assim, como considerar a suspeição do leitor, como encontrar indicadores que dêem conta do que o autor chama de “leituras diferenciais”? Como encaixar e quantificar leituras diversas, condições distintas para a apropriação da leitura? Como mensurar a necessidade construída pelo sujeito de leitura e escrita?

Luiz Percival Leme Britto também discute a questão. Para ele, os sistemas de avaliação, os atuais indicadores, tão em moda no pensamento pedagógico, colocam numa condição igual questões bastante distintas e reduzem tudo a números, a “elementos mensuráveis e comparáveis”. Segundo o autor, “trata-se de impor uma normalidade vertical, um modelo de percepção e de realização da vida em que o sucesso e o fracasso se relacionam com a produtividade”. E esses números, tabelas, resultados, que neutralizam diferenças, exercem um fascínio na opinião pública, que se encanta pela “realidade” assim traduzida.

Na mesma direção apontam as bibliotecárias francesa e colombiana Geneviève Patte e Silvia Castrillón. Patte demonstra sua preocupação com orientações tecnocráticas, que induzem as bibliotecas a privilegiarem atividades de consumo rápido, que possam ser estatisticamente mensuráveis e realizadas com mais rapidez e em maior quantidade, em detrimento de projetos mais longevos que, mais que os números, promovam as pessoas e sua imprevisibilidade, com tempo para o diálogo e para inquietações. Castrillón, por sua vez, ressalta a necessidade de que essas avaliações extrapolem indicadores que valorizem apenas as estatísticas governamentais e mercadológicas, como a relação de livros vendidos por habitante, por exemplo, e contribuam de fato para registrar mudanças significativas na educação e no acesso ao livro e à leitura.

Mas quais seriam esses indicadores? Esse é um desafio que se apresenta para gestores públicos, pesquisadores, professores, bibliotecários, editores e instituições que se dedicam ao tema.

Dados sobre empréstimos de livros numa biblioteca podem ser um bom indicativo da legitimação da leitura como prática social e cultural. Ainda, depoimentos de pessoas de classes sociais distintas sobre a importância dos livros e da leitura nos fazem acreditar que, pelo menos no discurso, ler, muito mais que escrever, é um ato valorizado pela população. Mas uma perspectiva política da leitura não é mensurável, pois não podemos contabilizar a compaixão, os medos, as angústias e os sonhos. Ainda não foram inventados indicadores para a intimidade e a liberdade, nas quais o leitor se constitui. Ainda não se criou uma fórmula ou uma equação que meça o desejo pelo conhecimento.

Esse texto não se apresenta como uma recusa aos sistemas de avaliação e monitoramento que nos ajudam a entender como nossas proposições se realizam na prática e também a experimentar novos caminhos. O que pretendemos é problematizar modelos que, com números, muitas vezes confortam nossas angústias e nos oferecem, em forma de percentuais a serem alcançados, soluções palpáveis ou definitivas negativas para os nossos problemas, ignorando os conflitos existentes em tudo o que diz respeito ao ser humano.

É evidente que todos temos no horizonte a democratização do acesso à leitura no país, para um número cada vez maior de pessoas. Mas temos que cuidar cotidianamente para que não nos tornemos, mesmo que inconscientemente, reféns de números. Não podemos ser ingênuos de acreditar que a leitura deva se constituir como uma necessidade da população, apontada por indicadores e metas, para que o poder público se dedique ao tema. Essa dívida social já é uma velha conhecida dos nossos governantes e é o que nos move. As bibliotecas precisam existir, independente dos “resultados” que elas apresentem, porque o acesso à leitura é um direito constitucional de todos os brasileiros. Os critérios para investimento na formação de leitores não podem ser econômicos, numa perversa relação de custo/benefício.

Isto posto, seguimos na batalha pelo direito de todos de ler e escrever, mesmo que somente uma “imensa minoria” se sinta convocada.

Referências Bibliográficas

Geneviève Patte, Deixem que leiam. Rio de Janeiro: Rocco, 2012.

Luiz Percival Leme Britto, Inquietudes e desacordos: a leitura além do óbvio. Campinas: Mercado de Letras, 2012.

Pierre Bordieu, “A leitura: uma prática cultural”. Em: Roger Chartier (org.). Práticas da leitura. 5ª ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2011.

Silvia Castrillón, O direito de ler e de escrever. São Paulo: Pulo do Gato, 2011.

Compartilhe

Post Author

Autor

  • Fabíola Farias

    É graduada em Letras, mestre e doutora em Ciência da Informação pela Universidade Federal de Minas Gerais, com estágio pós-doutoral em Educação pela Universidade Federal do Oeste do Pará. É leitora-votante da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil.

Artigos Relacionados

O papel do diretor escolar na formação de leitores

,

Um mergulho em algumas obras infantis – Parte 2

Espaços de experiências das crianças

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *