Leitura universal, interpretações singulares: relato de experiência de uma mãe com uma filha com deficiência

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Como é que se dá a leitura junto à criança com deficiência? O comprometimento cognitivo, visual, auditivo ou motor inviabiliza tal prática? Ou, ainda que viável, é menos importante? Como é possível atribuir intenção e significado à leitura quando o interlocutor nos desafia a outras narrativas? Essas e muitas outras questões me ocorreram quando brotou a intenção de ler com minha filha Alice, hoje com 3 anos.

Habituada com determinado modelo de leitura compartilhada, ou apegada a um ideal para essa prática entre mãe e filha, supunha que os principais desafios que encontraríamos para estar na companhia dos livros seriam as limitações físicas de minha pequena. Ela tem baixa visão e pouco controle dos movimentos do corpo, em razão da disfunção neuromotora. Não segura o livro, não fixa a cabeça, não sustenta o corpo, não se senta sozinha, não enxerga bem as letras, tampouco as imagens. E agora? Será que vamos ler?

Investi tempo e recursos nas adaptações necessárias. Livros com letras grandes e figuras em contraste, aliados a estímulos sonoros ou táteis. Cadeira que permitisse um posicionamento funcional, de modo que o livro ficasse à altura dos olhos de Alice, ao alcance de suas mãos, ainda que seus olhos pouco pudessem ler e suas mãos não conseguissem tocar. Experimentamos. Vira uma página e o jacaré projeta sua grande boca para fora, vira outra, e o leão se apresenta rugindo imponente, vira outra e a arara espalha suas asas até encostar no nariz de minha filha. Pelo canto dos olhos, ela direciona interesse e curiosidade. A boca faz bico de quem provou uma novidade.

Repetimos a experiência inúmeras vezes. Embora os ajustes estruturais propostos exibissem inequívoca pertinência, sentia nossa experiência pouco espontânea. Era tanta preocupação com a visão que faltava, a coordenação motora que não alcançava, que a leitura ficou, paradoxalmente, esvaziada de sentido.

Pouco a pouco, compreendi que a principal barreira para a realização plena do momento do ler não residia nas características de minha filha, mas no meu restrito repertório de iniciativas ou, por assim dizer, na minha apequenada interpretação das viabilidades. A leitura é muito mais do que enxergar as letras e as figuras, do que ser capaz de segurar o livro ou de virar suas páginas, ou ainda de compreender sua história. A leitura é matéria da conexão, da imaginação, da reinvenção. A leitura é o universo das inúmeras narrativas possíveis! E eu? E minha filha? E nós? Nós somos sujeitos dessa narrativa! A nós cabe definir de que maneira “essa história de ler” pode nos ser aprazível e mobilizadora de consciência e sentimentos.

Aposentei, então, a cadeira apropriada, mantive os livros com apelo visual. Começamos de novo. Dessa vez, sentamo-nos juntas, eu em uma poltrona macia e ampla, ela em meu colo, o livro em seu colo. Uma tríade de acolhimento à história que iniciaríamos dali em diante. Minhas mãos seguram as dela e juntas abrimos o livro. Observamos a mesma página sem pressa. Ela vai apreendendo as formas e cores, enquanto eu vou percebendo sua respiração se apressar, seu corpo sutilmente alternar o tônus, anunciando interesse. Imposto a voz e começo a leitura. Ela gira a cabeça sutilmente, desvia do livro. Antes que eu buscasse retomar a posição que colocava seus olhos de frente para as figuras, percebo que seu ouvido encostou em meu peito. Ela segue espiando o livro de lado, ao mesmo tempo em que ouve minha voz ecoando lá dentro do corpo, abafada e compassada às batidas do coração. Capricho nas interpretações e entonações, na tentativa de assegurar nossa diversão. Ela corresponde à investida, emitindo sons e sorrindo fartamente. Estaria entendendo o que leio? Visceral, sensorial e cognitiva, a compreensão se constrói de diversas maneiras, sobretudo sobre o valor de estarmos juntas, em comunhão de palavras e afeto. Estamos a escrever a nossa narrativa, amorosa e singular.

A leitura nos convida ao aconchego dos corpos, ao contato das mãos, à sintonia da respiração, à junção das vozes, à conexão sutil dos gestos. A leitura, e somente ela, cria contexto e cenário privilegiados a esse encontro. Concentra esforços, organiza atenções, equilibra interesses, prioriza o tempo. Seja qual for o enredo que o livro nos propõe, reside também ali a chance de interpretarmos a nós mesmas, a nossa relação mãe e filha, a partir da tomada de consciência de quem somos e, sobretudo, de quem podemos ser. Isso porque, a pretexto de conhecer uma história que se nos apresenta interessante e prazerosa, é preciso aprofundamos o vínculo que nos dá condição de ler e aprender mais e mais. Tanto mais histórias conhecemos, mais sabemos sobre nós mesmas.1Texto da coletânea As crianças e os livros reflexões sobre primeira infância, Fundação Municipal de Cultura de BH, no prelo, lançamento previsto para o segundo semestre de 2017.


Imagem: Fotografia de Gisele Ventura


Nota

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    Texto da coletânea As crianças e os livros reflexões sobre primeira infância, Fundação Municipal de Cultura de BH, no prelo, lançamento previsto para o segundo semestre de 2017.

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  • Mariana Rosa

    Mariana Rosa é jornalista, escritora e mãe da Alice. Trabalha com comunicação empresarial, é autora do livro "Diário da mãe da Alice", do blog de mesmo nome e voluntária em diversos projetos e programas voltados para a valorização da diversidade e o respeito às diferenças.

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Uma resposta

  1. Reconfortante seu texto, por saber que Alice tem a sorte de desfrutar da mãe que tem e, ao mesmo tempo, inquietante, por nos trazer a reflexão de que tantas crianças que não contam com este universo de dedicação…
    Obrigada.

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