Literatura infantil no Brasil – ainda um desafio?

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Pensar nos desafios da literatura infantil e juvenil hoje no Brasil, remete diretamente ao mercado e ao que se converteu, nas últimas décadas, a indústria do livro em nosso pais. Vivemos hoje uma das piores crises que o mercado do livro brasileiro já passou.

De acordo com depoimentos de grandes empresários históricos da área, nunca vivemos uma situação tão difícil. Esta crise que e do setor como um todo, tem traços particulares no setor do livro para crianças e jovens.

O estrago do fim das compras governamentais mexeu com toda a lógica do mercado. A produção que , até muito recentemente, esteve voltada em grande parte para as compras institucionais e/ou o mercado escolar, por um lado, perdeu o seu grande filão de vendas. Por outro, foi abatida pela crise econômica, que fez cair as vendas escolares, agora bem mais enxutas.

Durante todo este tempo a grande maioria das editoras cresceu à margem do mercado privado (por exemplo das livrarias, das chamadas compras espontâneas). Sabemos que são poucas as livrarias especializadas em livros para crianças e jovens, inclusive nas grandes cidades. E praticamente inexistente o espaço para o livro infantil nas grandes cadeias de livrarias.

Assistimos o desmonte das grandes cadeias de livros. Na mesma velocidade da crise, temos a substituição dos livros infantis, por jogos, brinquedos e outros produtos similares. Vemos os poucos espaços existentes se transformarem em expositores dos produtos mais variados, cada vez mais distantes do livro em questão.

O sonho acabou. O forte aquecimento que caracterizou este mercado nas últimas décadas na verdade era fictício, uma bolha alimentada pelas graúdas compras do governo. E sem investimentos reais numa estrutura capaz de dar vasão a uma produção cada vez mais aquecida. Para o mercado privado as tiragens sempre foram mínimas o que contribuiu para levar o preço dos livros às alturas e reduzir o mercado consumidor espontâneo.

O resultado disto é complexo e perverso ao mesmo tempo. Vou dar um exemplo que pode ajudar a entender a dimensao desta crise. Ha menos de 4 anos atras, o Brasil era o pais do futuro, e com esta imagem se apresentou como pais homenageado em Frankfurt. Na Feira de Bolonha foi o ano dos brasileiros, muitas editoras ja conhecidas, mas também muitas novas, presentes, comprando muito.

O Brasil estava em alta e era o mercado onde todos queriam entrar e garantir o seu lugar. Em questão de poucos anos, isso ficou evidente em 2016, esse quadro mudou vertiginosamente. Praticamente nenhuma editora brasileira foi para Bolonha, editores históricos, pela primeira vez em mais de 20 anos, deixaram de ir a Bolonha. A noticia do fechamento da Cosac caiu como uma bomba e varias editoras, inclusive novas, que compraram livros e mais livros nos anos anteriores, fecham suas portas.

Quais os efeitos disto para o mercado externo? Como explicar esta reviravolta do mercado? Pois obviamente não se trata apenas do resultado de uma crise. Há um grande componente de falta de planejamento e de visão em tudo isto, uma enorme fragilidade do mercado e do setor editorial que foi seduzido pelas compras do governo. Perdendo de vista históricos e a própria natureza da indústria editorial como uma indústria de caráter cultural. Vale lembrar que Brasil nao foi pioneiro no grande volume das vendas governamentais, no México aconteceu exatamente o mesmo processo anos atrás.

Alem deste aspecto, temos a quantidade de livros produzida nos últimos anos e a impraticabilidade de se trabalhar, conhecer, divulgar tantos títulos. Os catálogos incharam para dar conta dos diferentes selos que até a editora media criou ao longo dos últimos anos para ter mais chances nas compras governamentais. O governo regeu o mercado. As novidades deram o tom. E a grande maioria das editoras dançaram nesse ritmo.

Em fim, estas pinceladas colocam o foco na grande fragilidade do mercado do livro para crianças e jovens no Brasil. O seu boom mais recente foi construído sob bases muito frágeis e fora de controle, uma mudança de governo bastou para por um ponto final nas compras governamentais. Foram poucas as editoras que procuraram alavancar seu catálogo em zonas mais seguras e em uma projeção de fato estratégica a longo prazo.

Isto resulta em um momento delicadíssimo, onde os desafios do mercado do livro para crianças e jovens estão à altura da crise pela qual estamos passando. São poucos os modelos de negócio existentes em condição de enfrentar com tranquilidade este momento. Praticamente todos os modelos foram postos em xeque. E para sobreviver neste quadro é fundamental reinventar-se, buscar soluções fora dos esquemas existentes.

Por exemplo, retomar o caráter cultural da empresa editorial que, no caso do livro infantil e juvenil, pressupõe uma genuína aposta na formação de leitores autônomos e permanentes, portanto, na formação de mediadores criticos. Trata se de todo um pacote, uma aposta única e a longo prazo no livro e na leitura.

Praticamente todas as editoras assumem esse discurso como seu, muitas até com grandes empreendimentos nessa direção – penso nos grandes grupos, nas Fundações que promovem a leitura -, porém raras são aquelas que efetivamente levam isso até as ultimas consequências e deixam impresso isso no seu catalogo e na forma de trabalhar.

Outro exemplo, produzir, MENOS, MUITO MENOS, este seria outro passo na direção de um novo modelo; dar tempo ao livro de ter a sua história, trabalhar cada título, difundir cada um com todo o cuidado necessário. A velha formula do menos e mais.

Nesta direção, uma das grandes polemicas deste mercado foi sempre a defesa inflexível das compras governamentais, como garantia de acesso ao livro em todos os cantos do pais. Se isto é verdade, também é verdade que poderia se garantir este acesso por outras vias, por exemplo, com programas de apoio ao desenvolvimento de livrarias em todo o território nacional.

A questão é que, depois de anos de volumosas compras, as bibliotecas da grande maioria das escolas publicas estão cheias de livros. Isto quer dizer que o problema não reside na falta de livros. E sim no que fazer com eles. Todos sabemos das histórias das caixas fechadas nas bibliotecas, ou dos professores que não sabem como trabalhar com os livros recebidos.

Pensar numa política que intercale compra de livros e formação de mediadores é algo impensável para a maioria dos editores no Brasil. E aqui reside uma das questões chaves: livros que formem leitores autônomos e permanentes, dependem sim de uma cultura leitora que se adquire em casa ou na escola. E que supõe a existência de mediadores leitores, críticos, capazes de promover a promoção do livro e da leitura e formação de futuros leitores.

Desatar estes nos é função de todos aqueles que se dizem comprometidos com o livro e a leitura, começando pelos editores responsáveis pelas escolhas que chegam no mercado.

Os desafios são inúmeros, a situação é muito complexa, mas os momentos de crise também sao momentos de redefinição de caminhos e estratégias. A crise nunca é uma via de mão única, ao contrário produz saltos e superações. Há exemplos muito positivos e inspiradores nessa direção nao so no plano internacional como no nacional. Cooperativas de pequenas editoras que estão circulando por SP em um ônibus livraria. Editoras minúsculas produzindo livros preciosos. Parcerias entre editoras e livrarias.

A situação anterior era insustentável, isso é um fato. A bolha explodiu. E olhando de fora e a médio prazo, estamos certamente frente a um novo panorama e um novo equilíbrio editorial. O que é muito bom e coloca enormes desafios a todos que compõem a cadeia do livro. Rever o papel de cada um, reforçar parcerias, discutir politicas, certamente e um bom caminho para se seguir.

Enfrentar estes desafios, por sua vez implica em redefinir para onde vai a literatura infantil e juvenil nacional. O que se quer deste mercado? Para onde vamos?

  • Vamos produzir livros para a chamada primeira infância? Vamos entrar seriamente no mercado de Dopples? Se produziu muito pouco, porque é um produto caro, com exigências particulares, e o governo não comprava.
  • Vamos continuar produzindo principalmente livro álbum? Por que?
  • Vamos dar espaço e recuperar os clássicos nacionais e estrangeiros, incluindo os mais contemporâneos, aqueles que marcaram época e que são insubstituíveis?
  • Vamos investir em livros informativos para todas as idades? E apostar na curiosidade do leitor?
  • Vamos continuar publicando “literatura juvenil” como instrumento de apoio para o ensino de outras matérias na escola?
  • Vamos continuar tratando os temas difíceis como meio de ensino da tolerância e do politicamente correto? Ou vamos tratar a literatura como literatura e a poesia como poesia?
  • Vamos arriscar em novos formatos, em narrativas originais de modo a abrir novos campos e evitar as formulas que até aqui já deram certo?
  • Vamos apostar nos leitores finais, ou vamos continuar editando para os mediadores nas escolas?
  • Vamos seguir os padrões das faixas etárias e dos temas transversais? Ou finalmente revisar e começar a educar os mediadores?
  • Vamos apostar no novo e dar espaço para a originalidade e criatividade?
  • Vamos produzir menos e selecionar mais?
  • Vamos nos comprometer com programas de formação de maneira efetiva?
  • Vamos reforçar as pequenas livrarias e novos canais de distribuição?
  • Vamos trabalhar para fazer do livro um produto acessível?

Estas são algumas das questões que precisam ser respondidas para saber para onde vai a literatura infantil nacional. O campo, sem duvida, é vasto, as possibilidades muitas, desde que se mude o modelo de negócio, a forma de pensar, as estratégias a médio e longo prazo.

A edição do livro infantil se transformou em um negócio, aliás um dos mais polpudos de todos. Não é a toa que grandes grupos internacionais aqui se instalaram e brigam pela sua fatia de mercado com armas impossíveis de serem pensadas pelas medias e pequenas editoras. Nessa briga de gente grande, o livro didático é personagem principal, mas ele se reveste de prestigio com os catálogos da chamada “literatura infantil”, um “saco de gatos” que precisa ser melhor conceituado.

O mercado do livro infantil está muito preso à escola. E uma das consequências mais perversas disso é que o destinatário final não costuma ser nem a criança nem o jovem, mas sim o mediador, o adulto. Aquele que escolhe o livro. Isto produz uma inversão total e faz da escola, à medida, que a criança cresce um espaço de negacao da leitura.

Hoje são inúmeros os exemplos de jovens que estão lendo e muito, que são críticos e formadores de opinião de seus pares nas redes sociais. Muitos inclusive cujo histórico na escola é de não leitor, para espanto de seus professores.

Falar em leitura na escola remete por sua vez a uma discussão do papel e do perfil da escola hoje. A escola tal como a conhecemos não está dando conta. As experiências mais exitosas são aquelas que não só dão liberdade de escolha aos leitores, mas que pressupõe uma escuta da parte dos professores, uma reflexão compartida das leituras, sem lugar para avaliação ou controle seja la qual for de caráter didático pedagógico.

Neste vasto e subjetivo campo em que nos movemos da leitura e dos leitores, não existem garantias. Não existe teste-drive, não existe prova dos 9. Nada garante que a criança leitora se transforme em um adulto leitor. Seguramente a criança que foi leitora será um adulto familiarizado com o livro e a leitura, com muito mais possibilidades de ser um leitor. Mas nada além disso.

Penso que nosso papel fundamental é o de dar acesso a leitura. Dar os instrumentos que a operacionalizam, cada vez mais na contramão do dia-a-dia contemporâneo. Garantir o contato com o livro, com a literatura, dar a possibilidade de que a leitura faça parte do cotidiano de todos. Ler não é uma atividade fácil e nem necessariamente prazerosa nos seus resultados.

Dai algumas perguntas chaves que deixo aqui para pensar, a final que leitor queremos formar? Que leitura queremos promover? Devemos responder a estas perguntas como mediadores que somos. Toda leitura é boa? Melhor ler do que não ler? Toda leitura fomenta uma visão critica?1Texto apresentado por ocasião do Seminário Janelas de Leitura, organizado em comemoração ao 5 ano da Freguesia do Livro em Curitiba, realizado nos dias 23 a 27 de março de 2017.

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  • Dolores Prades

    Fundadora, diretora e publisher da Emília. Doutora em História Econômica pela USP e especialista em literatura infantil e juvenil pela Universidade Autônoma de Barcelona; diretora do Instituto Emília e do Laboratório Emília de Formação. Foi curadora e coordenadora dos seminários Conversas ao Pé da Página (2011 a 2015); coordenadora no Brasil da Cátedra Latinoamericana y Caribeña de Lectura y Escritura; professora convidada do Máster da Universidade Autônoma de Barcelona; curadora da FLUPP Parque (2014 e 2105). Membro do júri do Prêmio Hans Christian Andersen 2016, do Bologna Children Award 2016 e do Chen Bochui Children’s Literature Award, 2019. É consultora da Feira de Bolonha para a América Latina desde 2018 e atua na área de consultoria editorial e de temas sobre leitura e formação de leitores.

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Uma resposta

  1. Olá Dolores! Muito bom o artigo, acrescenta muitas reflexões para pensarmos em relação ao trabalho com a leitura e com a literatura, trazendo uma questão para a qual nem sempre damos a devida atenção, que é a questão do mercado editorial.
    Sua colocação sobre as compras governamentais de livro são bem pertinentes, mas me preocupa muito pensar que não temos mais o PNBE, pois, apesar das dificuldades, agora que esse programa começava a ser reconhecido e valorizado pelas escolas, pelos professores, pelos alunos, ele deixa de existir e fico pensando como iremos garantir a igualdade de acesso aos livros nos quatros cantos desse país e, principalmente, naqueles cantos que estão tão a margem de qualquer garantia.
    É verdade que ainda tínhamos locais em que os livros ficavam encaixotados, guardados até que alguma ação formativa em relação a eles fosse desenvolvida, mas também é verdade que a chegada desses livros iniciou um movimento por parte de algumas escolas, uma minoria ainda é claro, de compra de livros para ampliação de seus acervos, mesmo que ainda de forma tímida.
    Hoje, começo a ouvir professores e alunos reclamando da não renovação dos acervos e da necessidade de mais livros e mesmo no caso das escolas que começam a priorizar as compras de livros, os recursos são muito pequenos para garantir a ampliação necessária. Um aluno que está no 5o ou no 6o ano já pode conhecer grande parte do que hoje está disponível em sua escola, se houve um trabalho em que se priorize a leitura.
    Suas reflexões estão voltadas ao papel das editoras e aos caminhos possíveis para uma autonomia e sobrevivência das mesmas, mas me faz pensar demais que se temos que garantir acesso ainda temos o desafio enorme de pensar em alternativas que consigam dar conta, minimamente, de diminuir tanta desigualdade.

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