Literatura infantil

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O gênero “literatura infantil” tem, a meu ver, existência duvidosa. Haverá música infantil? Pintura infantil? A partir de que ponto uma obra literária deixa de constituir alimento para o espírito da criança ou do jovem e se dirige ao espírito adulto? (…) Será a criança um ser à parte, estranho ao homem, e reclamando uma literatura também à parte? Ou será a literatura infantil algo de mutilado, de reduzido, de desvitalizado – porque coisa primária, fabricada na persuasão de que a imitação da infância é a própria infância?
Carlos Drummond de Andrade, Confissões de Minas

Fora dos grupos especializados ou interessados no assunto, a expressão literatura infantil parece simples e autoexplicativa. Mas sabemos bem o grau de complexidade que está por trás dessas duas palavras e o tanto de problemas que uma análise séria a respeito desse gênero nos coloca. De saída, poderia perguntar qual termo é mais importante na expressão, literatura ou infantil. Entendo que o substantivo literatura deveria ter peso maior, justamente por ser essencial. No entanto, o adjetivo infantil modifica esse substantivo de uma maneira muito significativa, definindo o gênero por seu público, o que implica uma série de questões.

Parece que, ao qualificar um texto como “infantil”, o que fazemos é afirmar que se trata de algo limitado ou restrito. Basta notar que, quando nos referimos à literatura em geral – em tese, voltada para os adultos –, usamos apenas a palavra literatura, sem qualquer adjetivação. Por trás disso está a ideia muito frequente de que um texto infantil deve ser simples, sem grandes dificuldades de entendimento, tendo-se em vista que o seu destinatário não teria maturidade e esclarecimento para a fruição de materiais mais complexos, com recursos de linguagem sofisticados. Segundo esse modo de pensar, os escritos para criança serão sempre secundários ou inferiores. Mas será isso um fato? Os livros infantis são mesmo menores, incapazes de conter textos verdadeiramente literários?

A designação literatura infantil em geral é usada para se referir a coisas muito diferentes. Qualquer livro para crianças costuma ser compreendido nesse gênero, o que ajuda a aumentar a confusão e o preconceito. Creio, porém, que é correto dizer que a grande maioria dos livros destinados ao público infantil não é, nem de longe, literatura. Existem os títulos com propósito educativo, os livros-brinquedo, os livros ilustrados – que até trazem narrativas, mas não necessariamente literárias –, enfim, são inúmeras as possibilidades. Vale frisar que aqui não há nenhum juízo de valor, nem a intenção de estabelecer uma escala de importância com a literatura no topo. Um livro de imagens, por exemplo, pode ser criativo, ter qualidades artísticas, só que nunca será literatura, por uma simples razão: esta pressupõe a linguagem escrita.

O leitor infantil

Muito já se afirmou que a literatura infantil – que realmente pode ser chamada de literatura – deve ser capaz de agradar tanto à criança como ao leitor adulto. Por isso, comparar os gêneros de acordo com seus públicos, buscando descobrir qual é “mais literatura”, é um caminho inadequado que não ajuda a avançar na reflexão. O importante é ter claro que a literatura para criança é apenas diferente, não inferior à adulta. Ganhamos mais se pensarmos no leitor infantil e no que ele tem de específico.

Sabemos que a criança se relaciona com o livro e com os textos literários de maneira muito diversa de um adulto – sobretudo de como um adulto se relaciona com um texto infantil. Afinal, sua grande singularidade é o fato de ser um leitor em desenvolvimento. Por causa disso, obviamente, sua visão do mundo, da sua vida e também do texto literário é muito particular. E no caso da literatura, além do repertório cultural ainda em formação ou da falta de conhecimentos sobre o mundo – ou, em outros termos, além da dificuldade que o conteúdo pode representar –, a forma e o estilo também apontam para o tipo muito especifico de leitura que a criança pode fazer de uma narrativa literária [Peter Hunt, p. 135]. Nesse sentido, é importante tentar compreender que espécie de relação é essa que o leitor infantil estabelece com o texto literário, como interage com ele e como se apropria dele.

Por sua natureza, o texto literário tem um forte caráter subjetivo. Como carrega múltiplas significações, o natural – e desejável – é que os leitores possam chegar a diferentes interpretações. Segundo Peter Hunt, existe “uma considerável diferença entre o que uma criança pode perceber sobre o que é o texto e o que um adulto conclui que o texto deve ser. […] Ler ‘com competência’ – ou seja, de um modo que atenue as diferenças entre um leitor e outro – não é meramente uma questão de aquisição de conhecimento, mas de adquirir esquemas” [Peter Hunt, p. 147]. Em outras palavras, o texto literário pressupõe um “acordo” tácito entre leitor e autor. O leitor experiente é capaz de formar expectativas em relação ao texto com base no conhecimento de certos códigos e dos procedimentos literários e narrativos empregados. A criança, por sua vez, ainda não tem pleno domínio das regras do “jogo literário”, e por isso produzirá significados muito próprios a partir da leitura – o que não quer dizer que ela tenha uma capacidade menor, apenas trata-se de outra abordagem. Por ainda não ter preconceitos ou esquemas cristalizados na mente, o leitor iniciante tende a ser mais aberto e flexível diante de um texto inventivo, além de ter a habilidade natural de explorar ludicamente a linguagem. Por não recorrer ao instrumental conceitual clássico do leitor experiente, a visão e a percepção que a criança tem de um texto literário podem ser muito mais livres e abrangentes. Ela pode muito bem ser capaz de usufruir de recursos estilísticos e estéticos sem precisar identificá-los. [Peter Hunt, p. 135-147].

O fato é que a obra literária não carrega um sentido fixo e determinado que precise ser desvendado. O texto adquire significação justamente no ato da leitura, no momento em que o leitor interage com ele e o interpreta, conforme sua capacidade, suas referências, sua experiência de vida e de leitura. Por isso os significados sempre apresentam uma alta carga de pessoalidade, o que permite a uma obra literária alcançar leitores de diferentes níveis de desenvolvimento. Naturalmente, quanto mais experiência de vida e de leitura a pessoa tiver, mais profundo poderá ser o grau de compreensão e fruição do texto.

Práticas ruins

Entretanto, grande parte da produção atual de livros para criança ainda se apoia na ideia de que essas obras precisam facilitar as coisas para o jovem leitor, recorrendo a linguagem simples, sentidos claros, exclusão de determinados temas ou abordagens etc. O texto deve imprimir uma direção clara e não trazer lacunas para o leitor preencher; não se espera que provoque qualquer tipo de reflexão nesse leitor – aliás, parece haver o pressuposto de que criança e pensamento são instâncias incompatíveis. Ora, com concepções muito equivocadas, esse tipo de produção nega tanto a essência da literatura, como a da própria infância.

Um dos principais motivos desse desvirtuamento da literatura infantil está no caráter utilitário que tanta gente acredita que os livros para criança devem apresentar. Há uma expectativa de que as obras sejam úteis e sempre ensinem alguma coisa ao leitor – questões morais, comportamentais, de segurança etc. Os recursos estilísticos, nesses casos, têm pouca importância; a ênfase é toda colocada na narrativa e na análise temática, o que resulta em processos de leitura bastante simplistas. Via de regra, os textos escritos nesse registro são didáticos e diretivos, de modo a conduzir a criança a um ponto de chegada seguro. O excesso de controle limita as possibilidades de interação e acaba restringindo a capacidade de pensar da criança. A relação entre autor-adulto e leitor-criança é levada ao cúmulo da desigualdade.

Nesse sentido, a prescrição de faixa etária nas capas dos livros é outra prática que deveria ser superada por não contribuir para aproximar a criança de um texto literário. Por trás desse procedimento redutor, mais uma vez está o pressuposto errôneo de uma infância homogeneizada e a desconsideração da criança como indivíduo.

Criança como indivíduo

Não julgo sensato conceber a criança como uma criatura frágil e inocente, sempre necessitada de controle e facilitações. É lamentável que ela ainda seja vista como ser incompleto, incapaz de compartilhar sua experiência de vida com os adultos. A ideia de que certos assuntos devem ser evitados por não pertencer ao universo infantil representa uma concepção de infância antiquada e abstrata. Num certo sentido, os livros para criança funcionam como uma preparação para a vida que ela terá pela frente. Se eles não fizerem menção às questões e dificuldades do mundo real, de alguma maneira estarão sendo desonestos com esse leitor. [Peter Hunt, p. 60-61].

As narrativas literárias deveriam ser valorizadas justamente por sua abertura à interpretação, por sua capacidade de mostrar ao jovem leitor aspectos da humanidade que o façam pensar. Ao apresentar personagens complexos, inspirados em seres humanos reais e não em estereótipos improváveis, a literatura estimula o pensamento e a percepção do mundo com todos os seus problemas e contradições. Para Leyla Perrone Moysés, “a obra literária é sempre uma leitura crítica do real, mesmo que essa crítica não esteja expressa, já que a simples postulação de uma outra realidade coloca o leitor numa posição virtualmente crítica com relação àquilo que ele acreditava ser o real” [in Inútil poesia, p. 351]. Os paradoxos e as ambiguidades fazem parte da vida de qualquer pessoa. Por que excluí-los do universo infantil? A criança pensa, tem sentimentos, desejos e frustrações. A seu modo, ela também quer se conhecer, encontrar seu lugar no mundo. E não é subestimando-a ou desprezando sua individualidade que seremos capazes de ajudá-la.1Texto originalmente apresentado no colóquio “Esses livros sem idade”, na Universidade Federal Fluminense, em outubro de 2012.


Imagem: Fernando Vilela.


Referências bibliográficas

Peter Hunt, Crítica, teoria e literatura infantil. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

Leila Perrone Moysés, “Considerações intempestivas sobre o ensino da literatura”. Em: Inútil poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

Ricardo Azevedo, “Formação de leitores e razões para a leitura”. Em: Renata Junqueira de Souza (org.). Caminhos para a formação do leitor. São Paulo: DCL, 2004.

Nota

  • 1
    Texto originalmente apresentado no colóquio “Esses livros sem idade”, na Universidade Federal Fluminense, em outubro de 2012.

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  • Adilson Miguel

    Formado em filosofia, trabalha na área editorial há vários anos. Foi editor e gerente editorial na Editora Scipione (Abril Educação) e de Edições SM. Organizou, entre outras, as coletâneas Traçados diversos: uma antologia de poesia contemporânea, Grafias urbanas: antologia de contos contemporâneos e Histórias de carnaval.

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