Madagascar vs. Miyazaki

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Há algum tempo, uma amiga me contou que levou a filha de 6 anos ao cinema e saiu de lá impressionada: como seria possível que no mesmo dia em que sua filha viu pela vigésima vez Princess Mononoke a menina tenha se divertido vendo Madagascar 3?1Originalmente publicado na Frizzifrizzi, uma revista online que todo dia traz a seus leitores uma boa dose de cultura pop, notícias sobre marcas e produtos interessantes, entrevistas, artistas promissores, gastronomia, resenhas de filmes e livros e os melhores musicais. Com mais de 2.500.000 páginas lidas por mês, Frizzifrizzi é um ponto de referência no panorama italiano em moda, arte e design, para os profissionais do setor ou para os simples apaixonados.

Aproveito esta pergunta para explicar uma coisa sobre as crianças que, em anos de convivência nas escolas, penso de ter compreendido; algo que escapa a muitos, não só aos pais, mas também e principalmente a professores e educadores. Se pudesse resumir em uma única frase o conceito, direi que as crianças têm fome de histórias. Parece uma coisa banal, mas não é, a julgar pela quantidade de pais que lamentam o fato de que os filhos passam o dia inteiro na frente da TV. Para vocês, por que o fazem?

Sempre defendi a TV. Mesmo recebendo olhares enviesados dos professores nos meus cursos de atualização, não me arrependo. Parei de ver TV há muito tempo, porque não a considero mais interessante, mas este é um problema meu. Me “nutri” de TV por muito tempo. A um certo ponto, não encontrei nada de “novo” e assim parei de assistir.

Que as crianças a assistam, porém, me parece mais que normal, por dois motivos: o primeiro é que ainda não viram muitas coisas e tudo lhes parece novo, o segundo é que as crianças são famintas por estímulos, novidades, histórias. São famintas de um modo desmisurado e voraz. Se vocês são o tipo de pais que lêem histórias aos filhos antes de dormir, sabem muito bem que as crianças pedem a mesma história por um número infinito de vezes.

Há alguns anos, eu dava sempre meus livros de presente a uma amiga que tinha uma filha de 4 anos. Nos víamos uma vez ao ano e quando chegava com os lançamentos, minha amiga os recolhia como um sedento no deserto agarraria uma garrafa d’água. “Finalmente, não aguento mais Bernard!”, acrescentava.

Bernard et moi é um dos meus primeríssimos livros, a história de um certo Conrad que mora em um apartamento com um elefante. Minha amiga o leu, coitada, centenas de vezes. Até duas vezes na mesma noite. A chegada das novidades geralmente distraía o apetite de Mareva, sua filha, por alguns dias ao menos, antes de voltar a pedir o seu “clássico” preferido.

ilus Davide Cali

Como as crianças lêem?

Em duas ocasiões Mareva me fez raciocinar sobre como as crianças lêem e vivem as histórias. A primeira: quando de manhã Bernard se prepara para sair, faz antes de tudo um pouco de ginástica, depois toma seu café da manhã com fatias de pão com manteiga e geleia (afinal é um elefante!), depois escova os dentes, controla a balança pra ver se não engordou (preocupa-se em manter-se em forma) e então desce correndo as escadas pra não perder o ônibus.

Eric Heliot ilustrou cada passagem desta sequência exceto… Bernard que sobe no ônibus, porque não cabia e também porque de vez em quando, nos livros infantis, deixa-se alguma coisa sem representar, para que os leitores possam imaginá-la.

Mareva, porém, não gostou nada disso. Era pequenina e daquele livro penso que amasse o fato de que, mesmo tendo sido desenhado de um modo meio bufão, é muito realista e detalhado. É detalhado em tudo, exceto naquele ponto. Não tinha o ônibus. E ela me chamou a atenção para isso.

Mas é principalmente a outra coisa que me deu o que pensar: a sua página preferida era aquela em que Bernard uma noite volta pra casa cansado do trabalho. Mareva com muita frequência pedia para voltar atrás para vê-la mais uma vez.

Por que? Não era uma passagem particularmente incisiva da história, e mesmo assim ela gostava de rever aquela página. O fato é que, através dos livros, mas também da TV ou de qualquer coisa que seja narrativa, as crianças reconhecem a vida e imaginam o que viverão. Imaginam até outras vidas impossíveis, populadas de magia e de sobrenatural. Na realidade até os adultos vivem a narrativa do mesmo modo, mas geralmente se esquecem disso.

Então, voltando àquela página, o que tinha de tão especial? Raciocinei um pouco e penso de ter encontrado a resposta: a imagem de seu pai que volta pra casa à noite. Mareva gostaria de reviver mais vezes aquela imagem paterna, mesmo se transferida a um elefante. O instante em que seu papai voltava pra casa porque, sendo um instante, durava pouco. Primeiro, a espera. Depois, ei-lo! Finalmente está em casa e está com você. O momento em que volta pra casa dura só um segundo.

Qual o poder das histórias? Quanta coisa pode existir dentro de uma única história, para uma criança? Conforto, medo, diversão. As crianças buscam isso continuamente e eis porque pedem para reler a mesma história várias vezes. Eis porque são capazes de rever um DVD 50 vezes.

E eis porque assistem TV: a TV está sempre ali, pronta e disponível, para contar-lhes histórias. Não importa se são bem escritas ou bem desenhadas, são histórias. Com o tempo, se afeiçoarão a histórias mais refinadas, a um certo ponto algumas lhes parecerão “já vistas”, mas para chegar a este ponto ocorre que tenham consumido muitas delas. Não se pode pensar que com 6 anos tenham já o espírito crítico de um adulto de 35.

Voltando, então, à pergunta: pode-se ver Miyazaki e Madagascar 3 na mesma tarde?

Por que não? São histórias diferentes, que tocam temas diferentes: uma o relacionamento entre o homem e a natureza em uma atmosfera mágica, a outra a aventura despretenciosa de um cast de animais divertidos. Uma é tragédia e reflexão, mistério e descoberta; a outra é cômica, uma sucessão de gags e de tombos divertidos. São duas histórias que, de algum modo, nutrem dois apetites diferentes: o do medo e do mistério, e o das risadas à queima-roupa, ao ponto de cair da poltrona.

Por que negar uma ou outra a uma criança que pede para vê-las? Evidentemente, na mesma tarde, ela tem vontade de ser assustada e divertida.

No fim das contas não fazem o mesmo os adultos? Lêem no mesmo período, às vezes no mesmo dia, um tratado, um romance, o jornal esportivo e uma revista de fofoca.

Porque têm vontade de aprofundar um assunto, de alienar-se com uma bela história, de compreender se o Corinthians conseguirá vencer o campeonato e de saber como estão as coisas entre George Clooney e a nova namorada. A mesma coisa fazem com o cinema: alternam a comédia com o drama, a história verdadeira com a saga do super-herói. Fazem isso também com o jornal, passando da crônica negra àquela mundana, da política à economia, da cultura ao esporte.

Sempre achei muito tristes as pessoas que se negam à divagação leve, pensando que o cinema é apenas engajado e que a leitura deva ser necessariamente “séria”.

O preconceito em relação à comicidade é muito enraizado na nossa sociedade, basta ver os prêmios concedidos ao cinema e à literatura. Um filme divertido já venceu alguma vez o Oscar? Um livro divertido já ganhou alguma vez o Nobel de Literatura?

Creio que, como muitas coisas, este preconceito comece na escola. Um fato que sempre me impressionou nos professores é o (nem tanto) velado desprezo em relação aos gibis e aos livros “divertidos”. Por alguma razão em sua visão de literatura o livro tem de ser sério, possivelmente educativo, no qual o elemento educativo deve ser marcado e evidente, do tipo livro “Cuore”. E deve ter tantas páginas, ser escrito em modo denso, denso… A cultura é só em formato bíblico.

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Mas por que uma criança deveria ler?

Se a intenção é aprender a ler, então qualquer coisa vai bem, até os gibis. Quando você é criança e está aprendendo a ler, lê até a caixinha do leite. Porque cada nova coisa que consegue ler é como uma conquista.

Se a intenção de ler è passar prazerosamente o tempo, por que não um livro divertido?

Se a intenção de ler é adquirir noções, somos seguros de que um livro cômico ou uma série em quadrinhos não ensinem nada?

Com os quadrinhos americanos aprendi inglês na terceira série do fundamental, quando ainda não constava nos programas. Mais tarde aprendi muito o inglês americano com as canções. Agora estou aperfeiçoando esta língua com os filmes e as séries de TV.

Muitas vezes pedia explicações sobre termos que não entendia nos textos das canções à minha professora do segundo grau e ela me olhava aborrecida, dizendo que aquilo não era inglês. Um dos motivos por que a Itália é um país falido é que gente assim ensina nas escolas, enquanto deveria estar cuidando de cabras no pasto.

Compreendo que as gírias losangelianas das bandas de heavy metal da época não fossem incluídas nos programas escolares, mas a escola não devia ensinar-nos? Não devia preparar-nos ao mundo do trabalho?

Pronto, se falamos de trabalho, aquelas gírias agora me servem mais que o “nocionismo” afetado da velha Inglaterra que a professora tentou nos enfiar guela abaixo por anos e anos. No mais, lendo gibis aprendi até o francês: se agora sou um autor “francês”, devo principalmente a Lapinot de Lewis Tronheim e a Monsieur Jean de Dupuy e Berberian.

O ponto é esse: cada vez que a gente se fecha às novidades e à variedade, arrisca de perder alguma coisa interessante. Nos mesmos anos de adolescência, eu lia Edgar Allan Poe e Issac Asimov. A professora de italiano não sabia nem menos que existissem.

Lembro de uma conversa em que me disse: “Está brincando comigo? Edgar AllaPoe? Mas que nome é esse? Foi você que inventou?”. E olha que era formada! Com a convicção talvez de que a literatura fosse apenas aquela italiana e que autores não incluídos na antologia escolar não merecessem atenção.

Terminei a escola há vinte anos, mas da convivência que tive depois, a trabalho, não a vejo mudada. Lembro de alguns anos atrás uma professora jovem, tipo trinta anos. Era contrária à TV e principalmente aos desenhos animados violentos. Por exemplo, Goldrake. Infelizmente não pude deixar de fazê-la notar que Goldrake eu o via ainda criança e que não passava na TV há mais de 20 anos.

A professora tinha entrado já naquele circuito mental, típico da escola italiana, no qual quando se repete o que dizem os mais velhos, tudo vai bem. Com certeza alguma professora mais velha detestava Goldrake e continuou a utilizá-lo como exemplo daquilo que, na sua opinião, era a má TV até duas décadas depois de ser transmitido. O que nos diz duas coisas: a velha professora tinha parado de ver os programas de TV para crianças na época de Goldrake, a jovem nem tinha começado. Ambas se permitiam de julgá-los.

Alguns anos atrás, tomado pelo fogo da saudade, revi alguns capítulos de Goldrake que em criança tinha-me literalmente fulminado e descobri que… era pessimamente animado e tinha diálogos horríveis! Não saberia dizer se eram os diálogos originais ou a adaptação. O fato é que quando a série saiu eu tinha 6 anos e para mim, mesmo com aqueles diálogos e aqueles desenhos, ficou a série de “robozões” mais bonita de sempre, mesmo depois de ter visto outras. Ainda hoje, escutar a musiquinha de abertura me leva de volta no tempo, às tardes em que corria pra casa depois da escola porque o desenho começava às 17h.

Esta é a confirmação do que penso: as crianças têm fome de histórias. Não sempre de histórias refinadas. Aliás, algumas vezes é uma fome tão frenética que lhes vai bem qualquer coisa.

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Os livros e outros alimentos

Depende de nós, adultos, nutri-las. Como pais ou professores temos todo o direito de tentar transmitir a elas os nossos valores e de vigiar o que assimilam. Mas, não deveríamos nunca esquecer a fome. Porque eu nas escolas e nas casas das crianças italianas vi sempre crianças “desnutridas”. Desnutridas sim, porque seus quartos deveriam transbordar livros e ao contrário não têm livros. Os livros, as histórias, deveriam estar em todo lugar da casa, até no banheiro. Mas raramente os encontro.

E na escola? Nas classes da escola primária na França encontro coleções de livros recentes e belíssimos. E um monte de gibis. E ainda livros de animais, revistas e jornais.

E principalmente liberdade, de pegar e largar, ler e trocar, terminar ou não terminar. Pennac escreveu as suas regras do leitor uns vinte anos atrás e os franceses parecem tê-las assimilado. Em uma escola de montanha, em uma cidadezinha nos Alpes franceses, há alguns anos encontrei inclusive, além da habitual bibliotequinha muito bem alimentada em cada classe, também uma biblioteca maior no andar térreo. Porque assim de manhã, as crianças, enquanto se reagrupavam para poder subir todas juntas, podiam ler.

Também na França pais e professores se lamentam que as crianças vêem TV demais e passam muito tempo com videogames. Chamam-na “la génération écran”, ou geração “tela”. Nem menos eles compreenderam que as crianças, diante da tela, de qualquer tipo seja, matam a fome. Pelo que observo, fazem o possível, e o fazem há dezenas de anos, para oferecer nutrição a elas. As crianças porém são um poço sem fundo, não lhes basta nunca. E assim depois de todos os livros e gibis que conseguem mastigar e engolir no intervalo da escola, vão pra casa e ligam a TV. Ou então colocam um DVD. E não fazem muita distinção entre Miyazaki e Madagascar 3. Aliás, talvez vejam primeiro um e depois o outro. As histórias de Miyazaki ensinam sem dúvida alguma, mas é necessário que as crianças aprendam de cada coisa que vêem?

Se sim, então as histórias da série Madagascar não ensinam nada? Quando ainda criança eu via Golrake na TV meus pais não gostavam. Achavam violento, feio e deseducativo, coisa que, aos 6 anos, eu negava firmemente. Se alguém me perguntasse hoje, eis o que eu responderia:

Goldrake era violento?
– Sim, era.

Existiam melhores desenhos animados naquela época?
– Sim, os de Guido Manuli, os de Bruno Bozzetto, para citar apenas dois. Mas não eram transmitidos à tarde.

Goldrake ensinava alguma coisa?
– Não, não ensinava nada. Mas eu aprendi do mesmo jeito: o nome das estrelas. O que nunca me serviu a nada, mas gostei assim mesmo de aprender. E lembro até hoje!

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Ilustrações de Marco Somá para o livro A rainha das rãs não pode molhar os pés.

Tradução Claudia Souza


Imagem: Ilustração de Marco Somà, A rainha das rãs não pode molhar os pés. [Imagens gentilmente cedidas pelo autor].


Nota

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    Originalmente publicado na Frizzifrizzi, uma revista online que todo dia traz a seus leitores uma boa dose de cultura pop, notícias sobre marcas e produtos interessantes, entrevistas, artistas promissores, gastronomia, resenhas de filmes e livros e os melhores musicais. Com mais de 2.500.000 páginas lidas por mês, Frizzifrizzi é um ponto de referência no panorama italiano em moda, arte e design, para os profissionais do setor ou para os simples apaixonados.

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  • Davide Calì

    Nasceu na Itália, é escritor e ilustrador. Já ilustrou capas de livros e desenhou storyboards para publicidade. Há dez anos publica livros para crianças. Arturo, recém lançado em Portugal (Bruaá) é seu quinquagésimo álbum. Desenvolve trabalhos na França, na Itália em, Portugal, na Áustria. Seus livros foram traduzidos para trinta países e venceram vários. Na França e na Bélgica diversas companhias adaptaram seus livros para o teatro infantil. No Brasil, tem cinco livros publicados, entre eles O inimigo e Um papai sob medida (Cosac Naify).

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