Mágicos do invisível

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Inspirada na festa de Halloween, ao invés de colocar no parapeito da janela uma inóqua abóbora de plástico comprada no supermercado, proponho festejar esta fascinante data comemorativa de uma maneira um pouquinho mais terrificante: em companhia do maior especialista de literatura de terror do mundo: sua majestade Stephen King.

Por trás da cortina de autor hipercomercial, de megastore (Antonio Faeti sabe muito bem disso e lhe dedicou um belíssimo tratado, La casa sull’albero – [A Casa debaixo da árvore]), está um grande, grandíssimo, escritor. E também um culto, cultíssimo conhecedor da alma humana e da literatura, que se lança no abismo de seus meandros mais escondidos. Como mostra Danças Macabras – do qual possuo a primeira edição integral editada na Itália, Theoria de 1992, hoje existe no mercado catálogos ilimitados de livros de terror, filmes, quadrinhos, literatura, mas principalmente fina interpretação crítica da angústia, do medo, da romance noir, dos leitores que amam pesadelos e terror e da fascinação que o mundo das Sombras desde sempre exerce sobre crianças e jovens. Que não por acaso estão entre os protagonistas prediletos de algumas das suas histórias mais célebres. 1Texto publicado no blog da Edições Topipittori, em 31/10/2012.

Para isto selecionei alguns trechos2Stephen King. Dança macabra. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.. Apaguem a luz. E boa leitura.

Nesse sentido as crianças são o público perfeito para o terror. Isto é um paradoxo: as crianças, muito frágeis fisicamente, levantam com facilidade o peso do ceticismo. São os mágicos do invisível, um fenômeno perfeitamente compreensível quando – e se – se considera a pesrpectiva a partir da qual elas vêem as coisas. As crianças manipulam habilmente a logística de como Papai Noel entra em casa (desce pela chaminé porque fica pequeno, pequeno, e se não tem chaminé tem o buraquinho da correspondência, e se não tem o buraquinho da correspondência tem sempre o espaço debaixo da porta), o Coelho da Páscoa, Deus (um homão um pouco velho, longa barba branca), Jesus […], o diabo, Ronald McDonald, o Rei dos Hamburguers, o Ranger Solitário e outros mil.

A maioria dos pais acha que entende melhor essa abertura mental das crianças do que na realidade o faz, e assim muitos tentam evitar que as crianças vejam alguma coisa que cheire demais a horror e terror. […] Mas um dos estranhos efeitos que parece acontecer durante o esquecimento seletivo (que é parte integrante do crescimento) é o fato que praticamente tudo tem o potencial de amedrontar as crianças com menos de oito anos. Em certos momentos e em certos lugares as crianças tem literalmente medo da própria sombra. […]

Vistos sob este aspecto, até os filmes Disney são um campo minado de terror. Aqueles desenhos animados que serão, ao que tudo indica, programados e reprogramados até o fim do mundo, são com frequência os piores exemplos. Existem muitos adultos que, diante da pergunta qual é a coisa mais terrível já vista no cinema quando eram crianças, responderão: o momento em que a mãe de Bambi é morta pelo caçador, ou aquele no qual Bambi e seu pai escapam para fugir do incêndio.

Outras lembranças disneyanas comparáveis com o horror “sapomórfico” que habita a lagoa negra incluem as vassouras que marcham enlouquecidas em Fantasia […]; a noite no Monte Calvo no mesmo filme; as bruxas de Branca de Neve e da Bela Adormecida no bosque, uma com a maçã vermelha envenenada (que criança não aprende desde cedo o conceito de VENENO?), a outra com a roca mortal; até os 101 Dálmatas, relativamente inóquo, que apresenta a neta das bruxas Disney dos anos trinta e quarenta, a malvada Cruela Cruel, com a sua magra, pérfida face, sua voz potente (os adultos às vezes esquecem quanto medo as vozes fortes provocam nas crianças, até porque provêem dos gigantes de seu mundo, os adultos), e seu plano de matar todos os filhotinhos de dálmata (leia-se “crianças” se se é pequeno) e fazer casacos de pele deles.

E ainda são os pais, obviamente, os que continuam a aprovar o hábito da Disney de reprogramar estes filmes, enquanto sentem arrepios na pele ao recordar-se daquilo que os amedrontava quando crianças… porque o que faz um bom filme de terror […] é abdicar dos nossos apoios de adultos e deixar-se escorregar em direção à infância. E aí a nossa sombra pode se tornar mais uma vez um cão malvado, uma boca arreganhada, ou uma figura escura que nos chama.

A ironia de tudo isto é que as crianças conseguem lidar com o fantástico e o terror, nas suas próprias condições, muito melhor que os adultos. Vocês notarão que usei a cursiva para as palavras “nas suas próprias condições”. Um adulto aceita o cataclísmico terror de “Não abra aquela porta” (The Texas Chain Saw Massacre, Tobe Hooper, 1974 n. d. trad.) porque ele ou ela sabem que é só uma ficção, que quando a cena terminar os mortos se levantarão e lavarão o sangue falso. A criança não consegue fazer estas distinções e o filme é, em modo correto, proibido para elas. As crianças não precisam ver aquelas cenas. […]. Mas o ponto é: se se coloca uma criança de seis anos para ver uma projeção de “Não abra aquela porta” junto a um adulto que temporariamente possa ser incapaz de distinguir entre ficção e “coisas verdadeiras” (como diz Danny Torrance, a criança de Shining) […], digo que a criança terá pesadelos por uma semana. Já o adulto seria internado por um ano em uma sala, escrevendo pra casa com giz de cera.

Na vida de uma criança, uma certa dose de fantasy e de terror me parece uma coisa perfeitamente normal, até útil. Pela sua capacidade de imaginar, as crianças conseguem convencer-se e, pela sua posição única na vida, são capazes de utilizar certos sentimentos. Entendem até muito bem a sua posição. Inclusive numa sociedade relativamente organizada como a nossa, entendem que a sua sobrevivência é totalmente fora do seu próprio controle. As crianças são “dependentes” até a idade de oito anos em todos os sentidos da palavra. Dependentes do pai e da mãe (ou de um facsimile razoável) não apenas para comer, se vestir e morar; dependem deles para ter cuidado e não bater com o carro contra uma viga da ponte, para ser levadas ao ônibus escolar em tempo, para ser reacompanhadas a casa depois de ter estado nos escoteiros, para que lhes comprem remédios com tampas a prova de crianças; dependem dos adultos até para não levarem choque com a torradeira ou tentando brincar com o Salão de Beleza da Barbie na banheira de casa.

A noção pela sobrevivência dentro de nós mesmos nos convida a lutar contra esta necessária dependência. A criança toma consciência da sua essencial falta de controle, e suspeito que esta descoberta a incomode. É a mesma ansiedade do voo que experimentam muitos viajantes de avião. Não têm medo porque pensam que o avião não seja seguro; têm medo porque cederam o controle, e se alguma coisa der errado só podem ficar ali sentados, remexendo na revista da companhia aérea ou nos saquinhos pra vomitar. Ceder o controle é contrário à nossa noção de sobrevivência. […]

Esta ansiedade escondida, a hostilidade em relação aos pilotos de suas vidas pode ser uma explicação plausível ao fato de que os filmes Disney continuem saindo todo Natal, e por que os velhos contos de fadas continuarão para sempre. Um pai ou mãe que levanta as mãos aterrorizado(a) diante do pensamento de levar as crianças para ver Drácula […] com certeza não colocaria nenhuma objeção de ler para a meninada a história de Joãozinho e Maria antes de ir para a cama. Mas, considerem: o conto de Joãozinho e Maria começa com um abandono voluntário […] continua com um rapto […], com a escravidão, com uma detenção ilegal e no fim com um justificável homicídio e cremação.

Até os ansiosos viajantes de avião têm os seus contos de fadas, os filmes da interminável série Airport que, como Joãozinho e Maria e os desenhos animados da Disney, mostram todo sinal de continuar sendo reprogramados para sempre…

Tradução Claudia Souza

  • 1
    Texto publicado no blog da Edições Topipittori, em 31/10/2012.
  • 2
    Stephen King. Dança macabra. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.

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  • Giovanna Zoboli

    Nasceu em Milão, onde vive e trabalha. É editora desde 1994 e escritora de livros para crianças, mas não só. Tem livros publicados (também sob o pseudônimo de Giulia Goy) na Itália e em várias outras línguas, inclusive o português. Em 1997 abriu a editora Topipittori, especializada em livros ilustrados para crianças e jovens, junto com Paolo Canton. Dá aulas sobre o livro infantil na Academia de Belas Artes de Bolonha, no curso de especialização na Universidade de Macerata e na Academia Drosselmeier. Tem vários ensaios sobre os temas do livro ilustrado e o livro infantil, em publicações coletivas, blogs e revistas especializadas.

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