O entendimento secreto entre as imagens e o leitor

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(…) a Terra está repleta dos mais puros e infalsificáveis objetos da atenção infantil. E objetos dos mais específicos. … (as crianças) Sentem-se irresistivelmente atraídas pelos detritos que se originam da construção, do trabalho no jardim ou na marcenaria, da atividade do alfaiate ou onde quer que seja. (..) Neles, estão menos empenhadas em reproduzir as obras dos adultos do que em estabelecer uma relação nova e incoerente entre esses restos e materiais residuais. Com isso as crianças formam o seu próprio mundo de coisas, um pequeno mundo inserido no grande.
Walter Benjamin
1Benjamin, W. Livros Infantis velhos e esquecidos. IN: Reflexões sobre a criança, o brinquedo, a educação. Editora 34, 2002.

À primeira vista, a proposta do livro se assemelha a um jogo do tipo Onde está Wally? As autoras fazem o convite e sugerem que os leitores, munidos de uma lupa, saiam em busca de Picolina, a pulga viajante, que além de pular, já visitou uns tantos lugares, cujas lembranças guarda em um álbum revisitado em noites frias e solitárias. Picolina lembra de suas viagens. E então, a outra viagem, a do leitor, começa.2O título deste artigo, “O entendimento secreto entre as imagens e o leitor“, é uma expressão cunhada a partir de frase elaborada por Walter Benjamin, em seu texto: “Livros infantis velhos e esquecidos”, em: Reflexões sobre a criança, o brinquedo, a educação (São Paulo: Editora 34, 2002).

A busca pela pulga é um jogo menor, divertido, mas que funciona mais como um pretexto para os muitos deslocamentos – a tal viagem do leitor – pelas imagens absurdas, numa estética onírica e engraçada, bem-humorada e poética.

Os cenários apresentados ao leitor não trazem imagens típicas infantis, como talvez expresse o título, um tanto batido e infantilizado – mas só aparentemente – e esta característica talvez contenha o primeiro ruído ou deslocamento sugerido ao leitor. Estamos diante de que tipo de proposta?

A pulga Picolina não é personagem de um desenho como pode sugerir o nome: sua imagem é a de uma pulga real, quase invisível. No entanto, ela é imaginação: viajante de outros tempos, traz em seu álbum fotografias em preto e branco que nos mostram cenários inusitados com restos de cenas que em determinado momento de fato ocorreram, mas alterados, mexidos por intervenções que resvalam para a fantasia e a brincadeira, às vezes cafonas, cômicas, surreais.

A estratégia de construção (ou desconstrução) em que algo colorido é sobreposto, colado, em uma fotografia preto e branco explicitando as artificialidades da imagem não é algo propriamente novo. John Baldessari lança mão de um dispositivo semelhante em um momento em que o preto e branco gozava de forte prestígio, metade da década de 1960 em diante, ou aparecia ainda em quantidade muito maior do que as imagens coloridas que passam a ser mais frequentes a partir principalmente da década seguinte. O jogo de imagens do livro, no entanto, apresenta direções além dessa que, de qualquer maneira, perdeu o grau de efetividade diante da atual banalização das imagens construídas de maneira digital.

A busca pela pulga começa, logo de cara, a entregar outros encontros. Na capa do livro, o leitor vê crianças de uma tribo da Amazônia unidas e atentas – estariam dançando, abraçadas? – ao som de uma sanfona tocada por um homem branco. Borboletas de todas as cores e tamanhos fazem parte da imagem, e também um mico, brincando com as palhas do telhado da oca. Essa é a primeira camada, ou, digamos assim, a parte mais “superior” ou externa, da imagem, ou a mais “colada”, quase bidimensional. A pulga, se o leitor estiver atento, já foi encontrada no peito de uma das crianças da foto. No entanto, é provável que o leitor continue buscando alguma coisa – os resíduos, os restos, ou o absurdo, o estranho. Algo que ele não sabe muito bem o que é.

uma pulga

Entre as borboletas, uma delas, porque tem o rosto humano, nos faz pensar em Chuang-Tzu, o homem que “sonhou que era uma borboleta e não sabia, ao despertar, se era um homem que tinha sonhado ser uma borboleta ou uma borboleta que agora sonhava ser um homem”. Lembrando o poema3Do poema Las causas. de Jorge Luís Borges, as autoras fazem uma brincadeira. Nesse mundo de viagem-sonho da Pulga Picolina em que tudo parece fora de lugar e, ao mesmo tempo, dentro de um lugar da fantasia e da infância, está lá o ícone do sonho: esse homem deslocado e misturado – o que é o sonho, o que é a realidade?

Na sombra e observando as crianças está um velho índio deitado em sua rede. Ele quase não é. Poderia passar despercebido, mas apenas até ser visto. Depois, sua figura ganha força, assim como o camuflado saci ao pé de sua rede. Quase uma mancha, até ser visto e então, seu calção e carapuça vermelhos passam a chamar a atenção do leitor. Capturado ou desatento, ele segue em frente para outros cenários.

E então, começa acontecer uma coisa diferente. O livro já não é mais uma espécie de Onde está Wally – e talvez nunca tenha sido, mesmo – pois, a partir da primeira página e depois do encontro com as imagens de sonho da capa, o leitor não sabe se ainda procura a pulga ou se prefere o encontro surpresa com os inusitados. Cria-se, então, um outro desejo de olhar. Uma outra, digamos assim, experiência. Do encontro com lugares exóticos, com ruínas de uma história, pedaços de vida, memórias. Mulheres holandesas em roda, ao pé de um penhasco. Uma família de férias em Mar Del Plata, em 1967. Meninas-mulheres japonesas na beira de um rio (elas dançam? Elas brincam?), um apicultor em uma paisagem bucólica e uma imagem da NASA, no melhor estilo 2001, uma odisseia no espaço, mostram ao leitor a vastidão da experiência humana e o quanto essa se converteu em imagem, em algo aparentemente plano e um tanto arbitrário.

Em uma das imagens, criada a partir de uma foto que nos remete a algo caseiro e familiar (acervo das autoras), duas moças aparecerem montadas em cavalos. Suas roupas antigas, a imagem do Zepelin e um horizonte enevoado, do qual despontam a Torre Eifel, uma figura que nos lembra São Jorge, uma serra que até poderia ser a Mantiqueira ou qualquer outra região montanhosa em nosso país, compõem um quadro que parece de outros tempos, num espaço todo misturado que nos leva a outro lugar qualquer. Estamos quase mergulhados nesse outro tempo/espaço, numa experiência de maior profundidade, quando somos, de certa forma, trazidos à tona por imagens espalhafatosas e coloridas: um turbante vermelho na cabeça de uma das mulheres, um bigode a la Salvador Dalí na outra, pernas de pato em um dos cavalos, que flutuam em águas muito calmas, bichos coloridos, a figura da morte.

Esse jogo, do aparentemente profundo que o preto e branco pode trazer ao leitor, com o mais frívolo das imagens coloridas, engraçadas e por vezes corriqueiras, pode ser comparado na maneira como o livro apresenta isso a uma brincadeira com a linguagem que as crianças costumam adorar: a partir de algo sério, uma fala absurda, uma palavra inventada, fora de lugar, deslocada.

picolina

Nas memórias de Picolina, outros deslocamentos provocam aqueles que se interessam por sua viagem. Brincadeiras com o tempo – o tão contemporâneo espaguete em Mar Del Plata, o dinossauro entre as abelhas do apicultor. Brincadeiras com a própria brincadeira: os meninos-marionetes em um parque de Madri. São reais? São bonecos? Quem brinca com eles? Eles mesmos? O leitor. No canto da foto uma manivela dá o poder para o leitor: ele, de certa forma, move os meninos, move a imagem, com o seu desejo de olhar. E ver.

picolina

Ao longo do livro algo curioso pode acontecer com o leitor. Ele passa a ser como a pulga que procura. Encontrá-la pode ser encontrar a si mesmo como observador da cena. Este é o jogo. Não encontrar picolina apenas, como a um prêmio; mas achar a si mesmo, nesta experiência de olhar uma e outra vez, as diversas camadas de uma mesma imagem.

As imagens também convocam a memória do leitor. Na foto de uma cachoeira australiana, quatro bichos, um em cima do outro, equilibram-se em cima de uma pedra. Jumento, cachorro, gato e galinha evocam os músicos de Bremen e o nosso Saltimbancos. Cavalos alados e uma desconjuntada figura da morte, com direito a capa roxa e caveira estão em pedaços dos cenários de viagem da Picolina, criando uma conversa do desconhecido com aquilo que a criança provavelmente já sabe.

Laura Erber, uma das autoras e leitora de Bruno Munari na infância, desejava criar um livro que restituísse a sua experiência com as obras do autor. Para ela, “Munari trabalhava muito com o desenvolvimento da percepção visual e mostrava que livros eram basicamente aventuras com cores, formas e figuras”.

O próprio Munari escreveu um dia a Katsumi Komagata, sobre seus livros: “Como uma coisa se transforma em outra. Verossimilmente, todas as crianças do mundo, depois de brincar um pouco com um brinquedo, acabam por desmontá-lo, para ver como foi feito. Aí os adultos dizem que a criança ‘quebrou’ o brinquedo. Mas não é verdade: a criança o ‘abre’ para ver o que tem dentro, como fazem os adultos quando cortam uma laranja para comê-la. Na maior parte dos casos, não é possível construir alguma coisa com os pedaços do brinquedo quebrado. Às vezes é possível só com pedaços descombinados.”

Assim também é este livro. O leitor abre para ver o que acontece dentro de cada imagem. E quando o fecha, o leitor fica sabendo que das coisas podem ou não nascer coisas.4Das coisas nascem coisas é um título de livro do Bruno Munari. 

Notas

  • 1
    Benjamin, W. Livros Infantis velhos e esquecidos. IN: Reflexões sobre a criança, o brinquedo, a educação. Editora 34, 2002.
  • 2
    O título deste artigo, “O entendimento secreto entre as imagens e o leitor“, é uma expressão cunhada a partir de frase elaborada por Walter Benjamin, em seu texto: “Livros infantis velhos e esquecidos”, em: Reflexões sobre a criança, o brinquedo, a educação (São Paulo: Editora 34, 2002).
  • 3
    Do poema Las causas.
  • 4
    Das coisas nascem coisas é um título de livro do Bruno Munari. 

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  • Ana Carolina Carvalho

    psicóloga (USP) e mestre em Educação, Linguagem e Arte (Unicamp). Formadora de educadores pelo Instituto Avisa Lá e CE CEDAC. Assessora na área de leitura em redes públicas, escolas particulares e editoras. Membro da Equipe Destaques Emília e do Grupo de Trabalho de Novos projetos.

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