O papel do editor em questão

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Uma das facetas que caracteriza o trabalho do editor, talvez a que mais se sobressaia, hoje, é o trabalho silencioso, individual e focado em cima de um texto. Quando o editor exerce muitas de suas outras funções, pela necessidade de administrar o processo como um todo que envolve o fazer do livro, dificilmente lhe resta tempo para parar e pensar sobre o seu trabalho, sobre as suas escolhas. Se a isto acrescentarmos o ritmo cada vez mais alucinado da produção, seja pela pressão do mercado, da concorrência ou da própria necessidade de ampliar o catálogo, o tempo de distanciamento tão necessário a qualquer trabalho que envolva concepção, formatação… fica cada vez mais restrito e limitado.

Por outro lado, a implantação de uma racionalidade produtiva, na maior parte das vezes abstrata, distanciada da lógica e das necessidades editoriais, acaba transformando cada vez mais o editor em um controlador de fluxo, sujeito a perder de vez o verdadeiro foco de seu trabalho. Frente a todas essas mudanças – e não podemos esquecer ainda aquelas decorrentes do livro digital – que afetam e exigem uma reflexão sobre o papel do editor e suas responsabilidades, a necessidade de se pensar e problematizar esse papel se torna uma exigência.

Talvez isso explique o sucesso do curso “Editando livros para crianças e jovens”, coordenado por mim e promovido pelo PublishNews, Revista Emília e CBL, que terminou na semana passada. Foram sete encontros à noite, de quatro horas e meia de duração cada um, onde realmente a participação, persistência e interesse dos presentes foram para além da qualidade dos responsáveis por ministrar as aulas. Isabella Marcatti, Mayumi Okuyama e Ricardo Costa dividiram comigo as aulas, além de Samuel Leon, Miriam Gabbai, Adilson Miguel, Gabriela Romeo, Lucia Hiratsuka e Silvia Oberg, que participarem de duas mesas.

Sem dúvida, a necessidade de conhecer melhor o mercado, de entender melhor o ofício do editor e, particularmente, as singularidades que constituem a edição de livros para crianças e jovens, a partir de um ponto de vista não apenas “técnico”, é uma das razões desse sucesso. Outra seria a possibilidade de participar de um espaço aberto de discussão, reflexão e interlocução, tão restrito e escasso no dia-a-dia do trabalho editorial.

A perda de referências, a falta de divulgação de experiências exemplares no mundo da edição, o caráter excessivamente técnico dos cursos e a profissionalização recente da área são outros fatores que contribuem para a diluição cada vez maior do papel do editor em grande parte da indústria do livro contemporânea. Porém, quando o editor é posto frente à centralidade do seu papel no processo de edição, quando a sua responsabilidade volta à tona e o caráter cultural do mundo dos livros é restituído, muitas vezes a primeira resposta é uma certa reação de estranhamento e de não reconhecimento.

De toda a discussão que durante os dias de curso envolveu alguns dos aspectos centrais do trabalho do editor, o que mais chama a atenção é a ambiguidade que perpassa toda a discussão do mercado de livros para crianças e jovens hoje no Brasil. Se é um fato o crescimento desse segmento editorial, é um fato também a queixa dos editores frente aos reduzidos resultados das vendas no mercado privado e as dificuldades de comercialização do livro infantil e juvenil. Se as vendas governamentais são as maiores responsáveis pelo boom deste momento, fica evidente a insegurança que essa dependência promove.

Seja lá qual for a questão, o ponto de chegada sempre gira em torno do mesmo: a ausência de tradição leitora dos mediadores, sejam eles pais ou professores. Este é o ponto e somente sua “resolução”, que nunca será a curto prazo, é que poderá mudar a qualidade desse segmento de mercado. Em linhas gerais quais são as dificuldades decorrentes da ausência de cultura leitora para o mercado? A produção reconhecidamente de ponta não é a que mais vende, ao contrário; nas escolas, a ausência de referências e de critérios de seleção dos professores – que só podem ser construídos ao longo de uma história leitora – faz com que eles fiquem reféns das indicações de terceiros, muitas vezes pautadas em critérios exclusivamente comerciais. Ou, ainda, leva à aposta em uma leitura meramente instrumental que alimenta o investimento em uma literatura temática, de encomenda, na sua maior parte muito distante da literatura e de todo o potencial que ela implica.

A retroalimentação entre mercado e livros de “literatura”, nem sempre literários, não forma leitores, não aproxima as jovens gerações da leitura e alimenta essa ambiguidade acima referida. Mas não é só do mercado a responsabilidade pela ausência de critérios e de reflexão sobre essa produção. O vácuo aberto depois das décadas de 1970 e 1980, quando existia uma divulgação crítica mais ativa, como em colunas e espaços em jornais e em alguns cadernos literários de grande tiragem, continua em aberto.

A desvalorização do segmento infantojuvenil – sem dúvida um reflexo mais geral da desvalorização própria da contemporaneidade de uma certa cultura – se aprofunda na contramão do seu progressivo crescimento. Muitas vezes, essa ficha cai como um banho gelado nos editores que, no seu vaivém cotidiano, passam batido por estas questões. Mas esse banho serve também para despertar um alerta e umas quantas preocupações. Daí o interesse por um espaço onde discussão, interlocução e reflexão são prioridade.

Há uma visível demanda não apenas por um conhecimento sobre o mercado e seu funcionamento, mas por esse espaço aberto de reflexão que situa e ajuda a entender as transformações pelas quais o mundo editorial está passando. A figura do editor ampliou-se, ajustou-se às novas exigências do mercado e da “racionalidade produtiva”, estreitou-se em contraposição ao crescimento das estratégias de marketing, porém, seja lá qual for o perfil, é importante não perder de vista que é nele – no editor – que recai em primeira e última instância a responsabilidade pela qualidade do livro.

Restituir a centralidade do editor, valorizar o seu papel, tirá-lo da margem da edição, à qual, em muitos casos, se encontra relegado, é certamente garantia para uma edição mais comprometida com um projeto de cultura e de formação de leitores. Daí a importância dos espaços abertos para a reflexão e troca de experiências.


Imagem: Ilustração de André Letria.


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  • Dolores Prades

    Fundadora, diretora e publisher da Emília. Doutora em História Econômica pela USP e especialista em literatura infantil e juvenil pela Universidade Autônoma de Barcelona; diretora do Instituto Emília e do Laboratório Emília de Formação. Foi curadora e coordenadora dos seminários Conversas ao Pé da Página (2011 a 2015); coordenadora no Brasil da Cátedra Latinoamericana y Caribeña de Lectura y Escritura; professora convidada do Máster da Universidade Autônoma de Barcelona; curadora da FLUPP Parque (2014 e 2105). Membro do júri do Prêmio Hans Christian Andersen 2016, do Bologna Children Award 2016 e do Chen Bochui Children’s Literature Award, 2019. É consultora da Feira de Bolonha para a América Latina desde 2018 e atua na área de consultoria editorial e de temas sobre leitura e formação de leitores.

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