O papel do editor na promoção da leitura

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Gostaria de compartilhar algumas reflexões que nos fazemos como editores, em torno de nosso papel como promotores de leitura, como ponto de partida de uma cadeia de mediação formada por pais, familiares, professores, editores, livreiros, bibliotecários, mediadores. Mas também, por todos os que elaboram as políticas públicas relacionadas à leitura e à educação, entre outros atores, que procuram fazer com que as crianças se interessem por livros, se apropriem deles e transformem a leitura em um ato prazeroso, enriquecedor, pleno e desafiante que os acompanhe ao longo de suas vidas.

Assim, começo ressaltando a responsabilidade que todos os integrantes desta cadeia têm ao selecionar os livros que as crianças leem – e, em particular – a dos editores. É uma responsabilidade enorme, pois as propostas editoriais constituirão as primeiras leituras das crianças e estas – como tudo o que se desenvolve na primeira infância – deixarão pegadas que traçarão a vida do adulto.

Como editora acredito que uma boa maneira de formar leitores, por mais óbvio que isso pareça, é publicando “bons livros”, pois todo programa de promoção de leitura gira em torno dos livros e, quanto mais enriquecedores, mais ferramentas para se trabalhar e melhores resultados poderão ser obtidos.

Mas… quais são os “bons livros”?, “como avaliá-los”?, “o que eles nos oferecem?”.

Não existe uma resposta única para estas questões, daí a diversidade de projetos editoriais e de catálogos.

Bons livros são aqueles que apelam ao imaginário das crianças, impressionam esteticamente (e aqui, me refiro tanto à linguagem quanto à imagem) e os colocam em contato com uma grande variedade de estilos, temas e culturas, que expandem seu conhecimento, sua curiosidade e seu pensamento crítico; aqueles livros que, por sua força literária levam as crianças a outros livros, a outras propostas, a outras dúvidas, a outras formas de ler o mundo. Os bons livros não são complacentes, mas exigem e demandam uma leitura atenta e reflexiva.

A seguir, apresentarei alguns critérios de seleção, com o objetivo de transmitir, a partir do meu ponto de vista editorial, o que considero valioso e pertinente para publicar e que combina com um projeto de promoção de leitura. Todo processo de seleção é influenciado por muitos valores subjetivos: o gosto pessoal, a predileção por determinados temas, nossa intuição e criatividade, a forma com que nos aproximamos de nossas recordações da infância, referência estéticas, sociais e culturais, entre muitos outros fatores que dividimos com qualquer adulto que seleciona um livro para uma criança.

Não obstante, na hora de escolher livros não só nos guiamos por esses valores, como também levamos em consideração critérios concretos e objetivos, marcados por uma determinada linha editorial. Considerando minha trajetória, penso em livros que tenham como finalidade a difusão do conhecimento, da literatura e da arte, e que se destaquem por sua qualidade literária e acadêmica, por seu conteúdo. Daí, uma seleção rigorosa avaliada a partir de diferentes ângulos que oriente a escolha entre as centenas de livros que costumam chegar numa editora.

O primeiro critério que vale referir é o literário. Parto de que se os livros para crianças são escritos ou ilustrados por adultos, então, suas propostas devem ser avaliadas com o mesmo rigor com o que avaliamos os livros dirigidos aos adultos. A literatura para crianças não é um gênero menor e, portanto, deve ser rigorosa em seus objetivos, em suas formas, na construção de suas personagens, de seus cenários. Como em todo bom livro, sem se importar com a idade a que se destina, deve haver uma reflexão por trás da construção da obra, um ponto de vista, uma intenção estética, um domínio das formas, da estrutura, da linguagem. A forma deve ser coerente com o conteúdo e o livro não pode ficar em um nível anedótico.

Um segundo critério é como se dá abordagem dos temas. Um bom livro deve interpelar o leitor. E com isso quero destacar um aspecto fundamental: os autores de livros para crianças devem se interessar genuinamente por tudo aquilo que começa a germinar nas crianças e saber dirigir-se a elas, sem subestimar sua capacidade de assombro, compreensão ou deleite estético e intelectual. Os jogos, os temores, o ciúmes, o amor, a diferença, o mar, a reprodução, os penteados, os amigos, a solidão, os insetos, a morte. O melhor dos mundos é aquele onde nenhum tema seja censurado em nome de preservar as crianças no estado de perpétua inocência, ou de distanciá-los dos males ou de protegê-los do desconhecido.

Um dos últimos livros que publiquei, por exemplo, O caderno dos pesadelos (Cidade do México: Fondo de Cultura Economica), trata de maneira literária os mais íntimos temores de muitas crianças, como também se representam graficamente – e com estilo inquietante – cenas cruas do imaginário onírico: crianças que desaparecem, pais que se tornam objetos cortantes, cabelos que afogam as personagens, etc. Ainda que esse exemplo não seja o de um livro voltado especificamente para leitores da primeira infância, tampouco nos livros para os menores, deve-se incorrer na censura do ponto de vista do adulto. As crianças possuem ferramentas para enfrentar a realidade que as rodeia, e por isso, devemos valorizar os livros que encontram desafios interessantes tanto para nós, como editores, como para os ilustradores com que trabalhamos, e, claro, para nossos leitores.

Não se deve isolar as crianças do mundo. Todo tema é necessário, inclusive indispensável, pois é este acesso à diversidade de conteúdos, de abordagens, de pontos de vista, que fará com que os leitores se reafirmem ou se confrontem e procurem outros livros em busca de novas premissas e dúvidas, de outros interesses. E aqui reafirma-se à união entre forma e conteúdo; repito: todo tema é necessário, inclusive indispensável, porém é preciso considerar a maneira como é abordado, o ponto de vista adotado, a maneira como é tratado e se provoca assombro. Os livros para crianças não devem servir para educar, para entreter, para ensinar valores, devem servir para acompanhar as crianças em seu crescimento. Com base neste critério, os livros com abordagens moralistas, didáticas, previsíveis, instrutivas, maniqueístas, paternalistas, simplistas ou estereotipadas, ou seja, regidas pelo olhar do adulto, devem ser descartados.

Um terceiro critério que deve ser levado em consideração na hora de selecionar livros é a experiência leitora das crianças. Muitas coleções se dividem em etapas leitoras: primeiros leitores, leitores em processo, leitores críticos. Esse critério se baseia nas enormes diferenças sociais e culturais que existem em muitos países em toda a América Latina. As crianças que não tiveram acesso aos livros porque, muitas vezes não sabem ler nem escrever, que não tiveram oportunidade de se aproximar deles por outro meio que não seja o didático, não têm a mesma competência leitora que aqueles que cresceram entre os livros e para quem a leitura é um processo natural. Por isso é muito importante que as crianças – todas elas – tenham livros a seu alcance desde os primeiros meses de vida.

Este critério não ignora as diferentes etapas de amadurecimento e crescimento das crianças, tampouco os aprisiona em idades: de zero a cinco, de seis a oito, e assim por diante. O leitor não aproveita um livro porque tem quatro anos, mas porque pode acompanhar a história com facilidade, porque ela responde a seus gostos, porque é capaz de compreender seus significados e apropriar-se deles, porque, através da leitura experimenta um prazer estético, sensorial, intelectual, e todos estes processos resultam em momentos diferentes para cada indivíduo.

Assim, para os que estão iniciando a leitura, selecionamos histórias curtas, com poucos personagens e uma estrutura muito simples. Os temas devem ser familiares e próximos, para que os leitores se identifiquem e expandam sua curiosidade. Na primeira infância, alguns temas relevantes se relacionam com a vida cotidiana dos pequenos: a comida, a hora do banho e de dormir, a relação com a família (os irmãos, os pais, os avós), os objetos de afeto, as brincadeiras, os jogos, os gostos por determinadas coisas, os sons, os animais, as partes do corpo, entre outros. A oralidade, o ritmo e as nuances na expressão também são muito importantes, pois muitas vezes, será um mediador quem lerá a história em voz alta. Rimas, canções, adivinhas, jogos de palavras, poemas, alterações que permitam à criança antecipar a história são indispensáveis nesta etapa.

A imagem é outro elemento que considero muito importante na hora de selecionar. Através das ilustrações, as crianças podem seguir a história. Mais ainda: através das imagens, as crianças são capazes de decifrar ideias complexas, emocionais, sensoriais e funcionais, pois têm uma capacidade visual muito mais aguda que a dos adultos. Além disso, desde que nascem, as crianças aprendem a ler o mundo que as cerca e decifram na leitura facial de sua mãe e de outras pessoas próximas, as emoções mais profundas.

Yolanda Reyes disse em seu O livro que canta que as mães são livros sem páginas, pois contam histórias nos corpos dos bebês: “histórias em suas pequenas mãos, formigas de palavras que traçam buracos em sua pele. Seu corpo é o lugar para os contos. O mundo inteiro, com seus montes e vales, seus caminhos e seus rios, o mar, o céu, tudo fica inscrito em você. A leitura desde cedo é um ato principalmente afetivo “chupar, olhar, tocar e ouvir são ações iniciais que tornam possível que se construa o vasto edifício da mente”. As ilustrações são, por fim, uma proposta de leitura e têm a função de enriquecer e complementar ou contar histórias.

Gostaria de focar o álbum ilustrado para os leitores da primeira infância. Faço esta ressalva porque as possibilidades que este gênero oferece são infinitas e inesgotáveis, além de compreender praticamente todas as etapas leitoras. Por ter características peculiares, os álbuns ilustrados são ideais para as crianças em fase de crescimento, pois são livros que se compartilham, que estreitam os vínculos afetivos entre crianças, livros e adultos, porque, ao compartilhar a leitura, brinca-se, trocam-se experiências íntimas e se cria um diálogo que dá segurança. Como bem explica Joelle Turin em seu livro Les livres qui font grandir les enfants (Paris: Didier Jeunesse): “os álbuns promovem uma triangulação entre leitor, livro e adulto totalmente original e nova em relação à leitura compartilhada”.

Nos álbuns ilustrados, as histórias não podem ser compreendidas sem as imagens. O que os autores nos contam através das palavras não se compreende por si só, é preciso um complemento visual para esclarecer todo seu sentido. Neles “o texto e a imagem desempenham papéis equivalentes e, sem dúvida, diferentes. Fazem-se cúmplices, colaboram ou se contradizem sem jamais se perderem de vista. Cada um tem sua própria identidade, sua autonomia, seu papel específico. O texto e a imagem constituem, por si, uma forma de expressão completa: o primeiro com sua função narrativa, descritiva, com suas regras lógicas, mas também com sua liberdade poética; a segunda, com seu impacto visual, suas qualidades sugestivas, a força de sua sensualidade”, nos diz Joelle Tourin, que acrescenta: “Ler um álbum é mais que uma simples forma de entretenimento: cada leitura significa uma experiência única e nova, uma oportunidade para submergir o leitor em suas próprias reflexões, seus afetos e sua sensibilidade”.

Agora, na hora de selecionar os álbuns é preciso considerar essa coerência entre forma e conteúdo, o que nos diz e como nos diz o texto e a imagem, a relação que se estabelece entre os dois, acrescido de um critério: o estético. “Os álbuns são os primeiros museus onde as crianças entram”, nos diz a autora tcheca Kveta Pacovska (em entrevista para a Emília), ao mencionar que entre suas páginas se encontra uma galeria de linhas, cores, texturas, histórias e um reflexo da realidade, permeado pela visão do ilustrador, do artista, que nos impacta visualmente.

Alguns aspectos que devem ser procurados nas ilustrações é que elas sejam enriquecedoras, eloquentes, sugestivas, originais, inquietantes, surpreendentes; que tenham uma coerência conceitual, um ponto de vista, uma harmonia na composição, um ritmo, um domínio da técnica (sem importar qual seja: tinta, gravação, aquarela, colagem, digital, mista) e do estilo (concreto, abstrato, realista etc.), pois com isso as crianças também terão acesso a uma diversidade artística e cultural, o que permitirá uma apreciação estética e a formação de um gosto pessoal.

Dado que as crianças na pequena infância começam a explorar o mundo através dos sentidos (olham, bebem, saboreiam, batem, se jogam, se sacodem, escutam), muitos livros são cartonados com pontas arredondadas para que não se machuquem e explorem o livro de forma interativa, porque tem um formato que podem manipular com facilidade. Isto não é limitante, pois também se podem fazer livros com muitos outros materiais, como plástico, para que as crianças possam levar seu livro quando for tomar banho, tecido e outros materiais que lhes permitam conhecer texturas e sons.

Existem muitos outros critérios que podem ser levados em consideração, mas expus os que me parecem mais relevantes. Há, como já dissemos, muitos editores no mercado que levam em consideração outros critérios: um perfil marcadamente didático: livros para ensinar cores, formas, texturas, números, sons; outros que dão prioridade aos livros com conteúdos mais comerciais (Walt Disney, Barbie, Barney etc.) que também formarão parte da biblioteca que as crianças tem em casa, pois partem da seleção pessoal da criança ou do mediador e, assim como há uma grande diversidade de leitores com diferentes personalidades, interesses e histórias de leitura que mobilizarão sua própria seleção.

O que acontece depois da seleção e da publicação dos livros?

A resposta natural é fazê-los chegar às crianças. Os canais de distribuição podem ser muitos, por um lado as livrarias. Há também o incentivo à ações de promoção da leitura, como oficinas para bebês, clubes de leitura, avós que contam histórias, lançamento de livros, sessão de autógrafos, obras teatrais, sessões de cinema, exposição de ilustração, etc. Todas essas atividades objetivam oferecer uma variada seleção de leituras através de formas prazerosas, lúdicas e inteligentes, que convidem as crianças a fazer sua própria seleção, exercer seu próprio critério na hora de escolher seus livros.

Outra forma de fazer as crianças chegar aos livros é através da participação dos livros escolares nas feiras nacionais e internacionais, onde os editores tem a oportunidade de levar ao conhecimento suas publicações e colocá-las ao alcance das crianças que falam outras línguas, em outros países, através da venda de direitos.

Com todas essas ações de seleção, edição, animação leitora de livros para crianças, fica a questão: que crianças atingimos?, quantas?, quais são as condições de adoção desses títulos? Não se pode deixar de refletir sobre isso, pois o que todo editor quer é que seus livros cheguem cada vez a mais crianças, aos menos favorecidos, aos que vivem em situações precárias e onde, no melhor dos casos, só se tem acesso aos livros através de mediadores e bibliotecas escolares e públicas.

Por isso, é necessário criar formas de colaboração entre pais, professores, livreiros, bibliotecários, mediadores, responsáveis pelas compras públicas e todos os atores que intervêm na cadeia da promoção da leitura, pois um trabalho em conjunto alcança maiores e melhores resultados do que quando se trabalha de maneira isolada com um único fim. É indispensável uma política de Estado inclusiva que favoreça todas as crianças a ter contato com livros desde a sua primeira infância e que possam ter acesso a eles com facilidade e liberdade ao longo de toda a sua vida, que elabore programas de formação e capacitação de mediadores, de políticas de seleção e construção de acervos, de atividades de promoção da leitura; que elabore e renove as políticas educativas destinadas às crianças e, ainda, que lhes proporcione melhores condições sociais, econômicas, alimentares e culturais, para que vivam uma infância digna e plena.

Talvez assim consigamos fazer com que as crianças se interessem pelos livros, se apropriem deles e façam da leitura um ato prazeroso, enriquecedor, pleno e desafiante, que os acompanhe ao longo de suas vidas.

Tradução Thais Albieri

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  • Eliana Pasarán

    Nasceu no México, é editora e tradutora. Desde 2005 trabalha no segmento de livros infantis e juvenis e até recentemente foi a responsável editorial desta área na editora Fondo de Cultura Economica.

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