Onde vivem os monstros

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No dia 8 de maio, quando o The New York Times informou sobre a morte de Maurice Sendak, “o artista de livros para crianças mais importante do século XX”, uma avalanche de mensagens em muitas línguas atravessou o mundo. Todos nos dávamos os pêsames e agradecíamos termos sido informados, como se fossemos uma grande família (o que é verdade). Sendak era como um pai ou irmão mais velho, e se foi em “seu barco particular… navegando através do dia e da noite, entrando e saindo pelas semanas… onde vivem os monstros”.

Maurice Sendak tinha 83 anos, fiquei surpresa quando li. Como podia ter 83 anos o eterno camarada dos meus leitores de “dois anos e medo”? Como poderia morrer esse menino terrível que domesticou tantas criaturas indômitas durante tantas horas de conto, mantendo-as acordadas, sem pestanejar?

Perdi as contas das vezes que li Onde vivem os monstros, até conhecer cada palavra, cada parte, cada ilustração, de memória. Descobri Sendak no século passado, quando arrumávamos a biblioteca da Fundação Rafael Pombo e a literatura infantil era novidade na Colômbia. Jamais esquecerei a sensação de ter encontrado algo que procurava na vida: algo que conectava no fundo da minha própria infância – não a do Disney, mas a outra: a infância sombria, incerta e terrível –, com o desejo de escrever para crianças.

Maurice Sendak

Sendak parecia nos dizer que a arte de usar as palavras pela primeira vez, como fazem as crianças, quando dizem o essencial, não era um trabalho sensível. Por ser artista, além das palavras, tinha as imagens. E nessa conversa entre texto e ilustração construiu um poema visual, que ele enquadrava no gênero dos livros-álbum. Onde vivem os monstros foi publicado em 1963 e as “cabeças pensantes” de pais, professores e bibliotecários norte-americanos mandaram cartas exigindo a retirada de circulação do livro. Como seria possível que o mau comportamento de Max com sua mãe pudesse ser premiado com uma viagem ao mundo dos monstros e que nele o transformassem em rei? As crianças, por sua vez, o receberam como um dos seus e, no ano seguinte, a Associação Americana de Bibliotecários outorgou a Sendak a Medalha Caldecott, condecoração máxima para livros ilustrados, ao que seguiu muito mais, incluindo o Prêmio Andersen.

Talvez seja a marca da beleza – ou o nascimento da arte – o que se vislumbra alcançar nos olhos das crianças, enquanto olham fixamente para os olhos amarelos dos monstros, para decifrar-se por dentro. Essa experiência poética de descobrir que habitamos duas margens, e que o lugar conhecido não está tão longe do outro – o imaginário – como cremos, e que é possível navegar em um barco “onde estão as coisas selvagens” (título original em inglês), e regressar à casa, no momento exato de jantar, é o que o transformou em um livro de formação para a psique infantil.

Max, o herói da história, foi visto como o primeiro Ulisses e Onde vivem os monstros, além de um livro de culto de artistas, ilustradores, leitores e autores, é considerado uma ruptura na literatura infantil. Sem dúvida, é um clássico contemporâneo que marcou a infância de várias gerações em todo o mundo, mas não é isso o que importa aos pequenos leitores. Com sua breve experiência de vida, e, apenas com o repertório de palavras indispensáveis eles parecem agradecer a Sendak, que pôs a honestidade estética na frente de qualquer critério domesticador ou moralista, para tratá-los como gente, e não como ursinhos de pelúcia. Ao fazer isso, não só reinventou a literatura infantil, como também, de certa forma reinventou os leitores. No fundo, é por isso que os livros são imprescindíveis: nos dão a possibilidade de nos lermos de outra forma; nos deixam hospedar outras versões de nós mesmos.1Texto publicado no Jornal El Tiempo, na coluna semanal de Yolanda Reyes, em 14/5/2012.

Homenagem Sendak
Kevin Stanton em homenagem a Sendak

Tradução Thais Albieri

Nota

  • 1
    Texto publicado no Jornal El Tiempo, na coluna semanal de Yolanda Reyes, em 14/5/2012.

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  • Yolanda Reyes

    Nasceu na Colômbia, é educadora, fundadora e diretora do Instituto Espantapájaros, em Bogotá – um projeto cultural de formação de leitores, dirigido não apenas as crianças, mas também a mediadores e adultos. Especialista em fomento à leitura, consultora, autora de artigos e livros sobre o tema da leitura, é autora de A casa imaginária: leitura e literatura na primeira infância (Global, 2010). É colunista do diário El Tiempo, de Bogotá e também se destaca pela sua obra literária para crianças e jovens. Dentre seus livros publicados no Brasil, destacamos É terminantemente proibido, A pior hora do dia, Saber perder e Terça-feira: 5ª aula (FTD) e Um conto que não é reconto (Mercuryo Jovem). Membro do Conselho Consultivo da Revista Emília.

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