Preconceito e intolerância em Caçadas de Pedrinho

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Este texto inscreve-se na polêmica recente relativa à presença – ou não – de estereótipos raciais na obra infantil de Monteiro Lobato, particularmente em Caçadas de Pedrinho. Algumas passagens do parecer 15/2010 do Conselho Nacional de Educação (CNE) balizam a questão que aqui se pretende discutir.

A obra Caçadas de Pedrinho só deve ser utilizada no contexto da educação escolar quando o professor tiver a compreensão dos processos históricos que geram o racismo no Brasil. Isto não quer dizer que o fascínio de ouvir e contar histórias devam [sic] ser esquecidos; deve, na verdade, ser estimulado, mas há que se pensar em histórias que valorizem os diversos segmentos populacionais que formam a sociedade brasileira, dentre eles, o negro. (p. 2)

(…) a crítica, realizada pelo requerente, foca de maneira mais específica a personagem feminina e negra tia Anastácia (sic) e as referências aos personagens animais tais como urubu, macaco e feras africanas. Estes fazem menção revestida de estereotipia ao negro e ao universo africano, que se repete em vários trechos do livro analisado. (p. 2)

[o requerente] (…) cita o cuidado da editora ao destacar na capa da publicação a adoção da nova ortografia da língua portuguesa, bem como de esclarecimento em relação ao contexto em que a obra foi produzida e os atuais avanços políticos e sociais da preservação do meio ambiente constantes do texto de apresentação (…) todavia o mesmo cuidado (…) não é tomado em relação aos estereótipos raciais presentes na obra. (p. 2-3)

Entre as ações que o parecer recomenda que sejam desencadeadas inclui-se:

(…) exigir da editora responsável pela publicação a inserção no texto de apresentação de uma nota explicativa e de esclarecimentos ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos raciais na literatura. Esta providência deverá ser solicitada em relação ao livro Caçadas de Pedrinho e deverá ser extensiva a todas as obras literárias que se encontrem em situação semelhante. (p. 5)

pedrinho

A questão é de relevância extrema no Brasil atual.

Começo pela clássica noção de sistema literário apresentada por Antonio Candido em A formação da literatura brasileira, tomando-a como base de uma teoria literária que concebe a literatura como o conjunto de obras que, percorrendo um dado circuito entre autores e públicos, tem neste percurso atribuída/chancelada sua – digamos – literariedade. Esta noção de sistema literário costuma ser apresentada como um triângulo no qual os vértices representam, respectivamente, obras, autores e públicos:

(…) literatura propriamente dita, considerada aqui um sistema de obras ligadas por denominadores comuns, que permitem reconhecer as notas dominantes duma fase. Estes denominadores são, além das características internas (língua, temas imagens), certos elementos de natureza social e psíquica, embora literariamente organizados, que se manifestam historicamente e fazem da literatura aspecto orgânico da civilização. Entre eles se distinguem: a existência de um conjunto de produtores literários, mais ou menos conscientes de seu papel; um conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de público, sem os quais a obra não vive; um mecanismo transmissor, (de modo geral uma linguagem, traduzida em estilos), que liga uns a outros. O conjunto dos três elementos dá lugar a um tipo de comunicação inter-humana, a literatura, que aparece sob este ângulo, como sistema simbólico, por meio do qual as veleidades mais profundas do indivíduo se transformam em elementos de contato entre os homens, e de interpretação de diferentes aspectos da realidade. (p. 25)

Tradicionalmente, os estudos literários parecem privilegiar as categorias-vértice. Com efeito, vertentes de extração formalista e retórica privilegiam a obra, vertentes de cunho psicanalista ou biográfico privilegiam o autor e vertentes contemporâneas inspiradas na Estética da recepção privilegiam leitores. Pesquisas mais recentes sobre a História da Leitura (área ampla que recobre a História do livro e de livros, do leitor e de leitores, de autores e de editores) apontam para a importância das mediações entre autores e obras, entre obras e públicos e entre autores e público. E nessas mediações se inscrevem os paratextos, tudo aquilo que compõe marginalmente um livro, de sua capa a suas notas de rodapé, seu prefácio e suas orelhas

Estudos da História da Leitura convivem com pesquisas que apontam para o decréscimo e a deterioração da capacidade de leitura de faixas largas da população mundial. Simultaneamente a esse diagnóstico sombrio, e talvez articulado com ele, multiplicam-se investimentos – também em âmbito mundial – na difusão da leitura. No discurso que a promove, a leitura – particularmente a leitura literária – é apresentada como uma prática altamente positiva e mesmo essencial para a construção de um mundo melhor, para a formação de cidadãos independentes, críticos, solidários, generosos.

Simultaneamente à contemporânea construção e difusão da imagem da leitura como prática social desejável e positiva, estudos voltados para a leitura – oriundos de áreas de conhecimento tão distintos como a Teoria Literária, a Linguística, a Pedagogia e a Neurologia – vêm apontando a figura do leitor como um ser ativo que, em face de um texto escrito, negocia constantemente – com o autor e consigo mesmo – os sentidos que vai atribuir ao que está lendo. É o que, em termos metafóricos se expõe, quando se diz que o leitor é sujeito de sua leitura. É essa concepção de leitura como construção e não como decifração de significados que, desbancando antigas pedagogias de alfabetização e de leitura, fundamenta modernas metodologias para seu aprendizado e aprimoramento.

No entanto, a fidelidade à hipótese da liberdade do leitor na construção de sentidos para o que lê, bem como o direito ao exercício pleno dessa liberdade é posto à prova através da cada vez mais disseminadas e recomendadas práticas de incluir paratextos em textos literários.

Assim, paratextos são espaços discursivos nos quais a mediação entre o leitor e a obra – retomando a formulação de Antonio Candido – se torna mais evidente: mediação compulsória, ostensiva. Apresentações, advertências, rodapés, notas de margem e de fim e similares são espaços voltados para apoio, monitoramento e gerenciamento da leitura. Particularmente, rodapés em obras literárias são paratextos convocados quando quer que se suspeite que o leitor não dispõe de conhecimento e/ou informações necessárias para exercer seu direito de construção de significados ou então quando se teme que ele exacerbe essa liberdade e não construa o significado adequado, canônico e, no limite, correto para o que lê.

Nesse espírito, paratextos ganham um significado muito especial quando presentes em livros para crianças e jovens, pois impedem que nos desfaçamos rapidamente da ideia de leituras e interpretações corretas e incorretas. A ideia de que qualquer leitura é válida corre hoje paralela à noção de que o leitor é sujeito de sua própria leitura. Mas a necessidade de paratextos leva-nos a supor, ao menos por hipótese, que não seja exatamente assim, que haja, sim, interpretações incorretas para um texto.

A questão é muito delicada, mas nem por isso devemos evitá-la. Ao contrário, devemos encará-la. Seria possível defender uma leitura da Pasárgada bandeiriana: “Vou me embora pra Pasárgada / Lá sou amigo do rei / Lá tenho a mulher que eu quero / na cama que escolherei”, como oposição ao sistema político republicado e propaganda monarquista?

Creio que não.

E por que não?

Porque leituras ocorrem em situações socialmente marcadas. Ou seja, o contexto da leitura contribui para a construção de seu significado. A leitura se perfaz sobre suportes materiais que antecipam certas expectativas de significados e afastam outras, e os próprios textos – nas leituras que deles vem sendo feitas- têm uma história que baliza seus sentidos. E, sobretudo, porque diferentes leitores ocupando posições de maior ou menor força dentro do sistema literário imprimem maior ou menor credibilidade aos sentidos que atribuem aos textos que leem e sobre os quais se manifestam.

Ou seja, a significação de um texto se constrói no interior de um sistema literário, à sombra da tríade autor-obra-público. Significados de textos são coletivamente construídos, desconstruídos, re-construídos.

É no inconsútil tecido que articula os vários pontos de um sistema literário que se constroem, no interior desse sistema, as comunidades interpretativas (Fish, S.) e que se delimita o campo literário (Bourdieu, P.), que se manifestam e trabalham suas instâncias e seus agentes. Tais agentes e tais instâncias são responsáveis pelas mediações que – ao articularem de certas maneiras e não de outras – os vértices do triângulo leitores-obras-autores – definem não apenas certos textos como literários e outros como não literários, mas certos textos literários como melhores e outros como piores e certas leituras como corretas e outras como incorretas.

E poderia ser diferente?

Talvez não e daí os paratextos.

É para impedir certas interpretações e sugerir outras que paratextos existem. Sobretudo em livros destinados a jovens, paratextos pretendem garantir que os leitores atribuam ao texto que leem os significados que leitores em posições de força no interior do sistema literário estabeleceram como adequados sendo, portanto, julgados corretos.

A urgência de garantir – à distância e por antecipação – certas interpretações para certas passagens dos livros opera num buraco negro – talvez o maior deles – dos estudos da linguagem. Sabe-se muito pouco como efetivamente funciona a leitura. Sabe-se muito pouco dos efeitos que tem o lido na cabeça e na vida de quem lê.

Pressupõe-se, por exemplo, que leitores – sobretudo os iniciantes – tenderão a imitar procedimentos, valores e atitudes presentes no que leem. Daí a norma expedida por órgãos centrais da educação (ou a eles atribuída) de que não devem ser distribuídas aos alunos obras que manifestem ou incentivem procedimentos, valores e atitudes preconceituosas e racistas. Daí, por exemplo, que em livros didáticos contemporâneos, a cantiga Atirei um pau no gato-to / Mas o gato-to / Não morreu – reu- reu seja re-escrita de diferentes e sempre horrorosas maneiras.

Na base desta re-escritura, parece estar a crença de que, lendo e cantando a canção na versão original, os pequenos leitores sentir-se-ão liberados para matar bichanos a pauladas. No mesmo sentido, alguns contos de fadas apagam a figura da madrasta, para que leitores e ouvintes do conto não interpretem essa antologicamente malvada personagem de papel e tinta com a madrasta de carne e osso com que convivem. E ainda, num assomo de bizarrice, algumas versões de Chapeuzinho vermelho não matam o lobo mau, mas o remetem para uma reserva ecológica…

Esse lobo que escapa dos caçadores é a ponte para chegarmos às Caçadas de Pedrinho, em cujo enredo a criançada efetivamente mata uma onça e a leva para o sítio, com a ideia de esfolá-la e usar sua pele para um tapete.

Na edição mais recente da obra – Editora Globo, 2008 – provavelmente à luz das interpretações que a legislação tem recebido, bem como das medidas através das quais o mundo editorial vem cumprindo recomendações do MEC, Caçadas de Pedrinho abre-se com uma nota tida como exemplar pelo Conselho Nacional de Educação:

(…) essa grande aventura da turma do Sítio do Picapau Amarelo acontece em um tempo em que os animais silvestres ainda não estavam protegidos pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA) nem a onça pintada era uma espécie ameaçada de extinção, como nos dias de hoje. (p. 9).

Ou seja, antes mesmo de começar a ler a grande aventura que o livro conta (e cujo suspense a nota dilui) os leitores encontram um paratexto que (exemplificando a hipótese destas mal traçadas) lhes direciona a leitura, apontando os malefícios da caça. E por que é necessária essa nota? Creio que porque se acredita que os leitores do livro se tornarão, pela leitura dele, caçadores de onça e, portanto predadores da natureza e destruidores do meio ambiente.

E será que é assim mesmo? Será que leitores de histórias de caçadas tomam sempre o partido dos caçadores? Ampliando a questão: como ficar sabendo que partido leitores tomam os leitores quando leem histórias?

O ponto torna-se relevante: a nota que sinaliza o sentido que os leitores devem atribuir à caçada da onça é tomada pelo parecer no qual o CNE discute acusações de racismo na obra lobatiana como exemplar e como modelo de uma eventual nota que anule ou amenize o conteúdo racista que algumas leituras atribuem ao livro a partir da forma como nele é tratada Tia Nastácia.

E como é que nele é tratada Tia Nastácia?

Numa primeira leitura, ela e Dona Benta irmanam-se na desqualificação que sofrem por serem adultas. Em algumas passagens (e ao longo de toda obra), a voz de Pedrinho não hesita em desrespeitar adultos e idosos:

Gente grande!… Vovó e Tia Nastácia são gente grande e no entanto correm até de barata (p.16); Não diga nada a vovó nem a Tia Nastácia, pois são capazes de morrer de medo (p. 26). (…) Gente grande estraga tudo. Eu não aturo gente grande. (p. 51)

Como em toda a obra infantil lobatiana – mais de duas dezenas de livros – produzida e incessantemente reescrita entre anos 20 e 40 do século passado – Tia Nastácia é referida como negra de estimação, quituteira de mão cheia, objeto do afeto incondicional das crianças, vítima frequente de más-criações de Emília. Tia Nastácia é sempre parceira de Dona Benta quando a maturidade adulta é exigida pelas situações narradas, como se vê no caso exemplar de A reforma da natureza:

O Rei Carol, depois de cochichar com o general de Gaulle, prosseguiu no seu discurso.

— Só conheço – disse ele -duas criaturas em condições de representar a humanidade, porque são as mais humanas do mundo e também são grandes estadistas. A pequena república que elas governam sempre nadou na maior felicidade.

Mussolini, enciumado, levantou o queixo.

— Quem são estas maravilhas?

— Dona Benta e Tia Nastácia – respondeu o Rei Carol. – As duas respeitáveis matronas que governam o Sítio do Picapau Amarelo, lá na América do Sul. Proponho que a Conferência mande buscar as duas maravilhas para que nos ensinem o segredo de bem governar os povos.

É a propósito de um presumido racismo do livro Caçadas de Pedrinhoque se torna interessante uma nova indagação relativa a comportamentos de leitores. Lendo a história, os leitores desenvolvem preconceito contra os negros e tornam-se intolerantes? Sentem-se autorizados a saírem xingando negros e negras? Ou se indignam com as más-criações da boneca? E leitores negros? Na pele de Tia Nastácia, sentem-se ofendidos pela desbocada Emília?

Não se sabe.

Ao discutir efeitos da manifestação de preconceito na construção de valores e de atitudes de intolerância e violência, um grupo de pesquisa da Universidade de São Paulo levanta questões muito interessantes. Qual o efeito de certas construções linguísticas a) na agenda política, b) na autoestima e construção de identidade de grupos sociais e c) em valores assumidos e em ações praticadas pelos leitores?

Pois talvez seja exatamente isto o que se precisa estudar e discutir para que paratextos em livros voltados para o público jovem não se transformem em velado gerenciamento de leituras e imposição de significados, geralmente chapa branca.

Um depoimento e Muniz Sodré, de março deste ano de 2011, encaminha muito bem a questão:

(…) se me perguntassem qual a minha relação pessoal com a literatura infanto-juvenil de Lobato, eu teria de ser honesto e confessar que, ainda menino, no interior do Brasil, era fascinado por suas narrativas. Francamente, eu nunca havia percebido os laivos racistas, que não são tão numerosos assim em sua obra ficcional, mas estão lá para quem se dispuser a bem enxergar. Lobato dizia que a escrita é um “processo indireto de fazer eugenia” e de fato ele sabia como fazer. Isso significa que se deva banir a literatura de Lobato? Como se pode abominar o que também se ama ou se amou?

Aparentemente, racismo não fez parte do elenco de significados que Muniz Sodré construiu para os livros lobatianos que leu quando menino. Como desqualificar o depoimento de alguém que ainda menino, no interior do Brasil, muitos anos depois se declara fascinado por suas narrativas? Como desconsiderar a informação de que eu nunca havia percebido os laivos racistas? Mas, sobretudo, como conciliar as duas afirmações com a passagem que vem logo a seguir, em que a reminiscência do menino é submetida à razão do intelectual que assume que os laivos racistas (que) estão lá para quem se dispuser a bem enxergar.

O que é bem enxergar?

Qual a fundamentação para considerar a leitura do CNE de um livro de Lobato mais correta do que a que fazia um menino de calças curtas? Em que ano teria Muniz Sodré lido e se fascinado pelas histórias do sítio? Final dos anos 1940, primeira metade dos anos 1950? Creio que o menino Muniz Sodré leu o livro melhor do que os conselheiros e conselheiras.

O livro encaminha – de forma, a meu ver, completamente satisfatória – questões de ecologia e de intolerância racial. A tão elogiosa nota, que adverte os leitores de Caçadas contra os riscos de destruição da fauna, parece ignorar o episódio no qual os animais da floresta tomam a si a defesa do meio ambiente. Diz uma capivara, líder dos animais:

(…) esses meninos constituem um grande perigo para nós aqui. Vou reunir uma assembleia de todos os bichos para discutirmos o caso e tomarmos as medidas necessárias à nossa segurança (p. 21).

— Os meninos de Dona Benta mataram a onça da Toca Fria – começou a capivara. – Ora, se mataram a onça, que era a rainha da floresta, o mesmo farão, com a maior facilidade, a qualquer outro bicho menos forte do que a onça. Estamos, pois, com as nossas vidas ameaçadas de grande perigo e temos de tomar providências. Por isso quero convocar uma reunião de todos os animais. Vocês, que voam, sejam meus mensageiros. Voem sobre a mata e avisem a todos para que estejam aqui reunidos amanhã à noitinha, debaixo do Figueira Brava. (p. 22)

Não há mais terras habitáveis neste país. Os homens andam a destruir todas as matas, a queimá-las, a reduzi-las a pastagem para bois e vacas. No meu tempo de menina podíamos caminhar cem dias e cem noites sem ver o fim da floresta. Agora quem caminha dois dias para qualquer lado que seja dá com o fim da mata. Os homens estragaram este país. (p. 23)

Penso que a nota introdutória, com seu inevitável estilo pedagogizante, fica muito aquém da força formativa da voz da capivara. De lambuja, os bichos ainda dão uma noção de autonomia e de política, ao defenderem-se por si mesmos, numa assembleia na qual os expedientes de que vários deles lançam mão são uma lição extra de política, de tão aparentados que são a expedientes correntes na política humana, tanto a contemporânea de Monteiro Lobato, quanto a contemporânea dos leitores dessa edição de 2008.

A proposta apresentada pela CNPq para tornar o livro politicamente correto toma como modelo exatamente essa nota e propõe uma nota relativa ao tratamento dispensado à Tia Nastácia e aos elementos da cultura africana. Como redigir tal nota?

  1. Contextualizando o livro nos anos 30 do século passado e frisando a ocorrência de discursos e atitudes preconceituosos na época, apontando a presença de tais atitudes na história?
  2. Dizendo explicitamente que não se deve discriminar negros nem alimentar preconceitos contra eles?
  3. Incluindo rodapé em todas as passagens tidas por discriminatórias e apontando a injustiça da situação representada?

Se essa última for a hipótese aceita, imagino que se pode aproveitar a chance para também condenar o desrespeito pelos idosos manifestados pelas crianças, e apontar a agressividade de Pedrinho que ameaça bater em Emília e quebrar todos os seus brinquedos:

Basta! – gritou o menino. – Se continua a amolar-me com esta história, vou lá em seu cantinho e quebro todos os seus brinquedos – disse e absorveu-se de novo na leitura dos jornais. (p. 47)

Qualquer proposta de um paratexto que corrija a história passa por cima da frase final do livro, que se encerra com Tia Nastácia tomando o lugar de Dona Benta no carrinho puxado por Quindim exclamando: “Tenha paciência, (…) Agora chegou minha vez. Negro também é gente, Sinhá…”

Evidentemente, essa fala de Tia Nastácia não manifesta postura política equivalente a lutas, conquistas e estratégias contemporâneas assumidas por movimentos empenhados na construção da identidade negra. Mas a fala de Tia Nastácia é o que se tem, e o que talvez melhor combine com o modo de ser da personagem ao longo da obra lobatiana. É pela boca e pela atitude da cozinheira negra que a igualdade de direitos é reivindicada, como foi pela boca e pela atitude dos animais que os riscos de degradação ambiental foram tematizados no livro.

O que não é pouco, creio…

Creio, aliás, que é muito.

Mas, como já disse, não é a intenção destas mal traçadas desqualificar as recentes críticas a Lobato. Nada disso. A questão é mais ampla. Um e-mail recebido em 3 de março de 2011 é sugestivo de que a questão Lobato talvez seja, apenas, a ponta de um iceberg submerso e silencioso e que merece toda nossa atenção:

Depois, (…) gostaria que a senhora me desse um parecer sobre um fragmento de Memórias póstumas de Brás Cubas, sob a perspectiva de literatura na escola, entendo a escola institucionalizada como formadora. Eis aí o fragmento: “O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Este contraste faria suspeitar que a natureza é, às vezes, um imenso escárnio. Por que bonita se coxa? Por que coxa se bonita?”

Será que o papel da escola é mesmo livrar a barra do grande mestre da Literatura Brasileira, dizendo que ele estava apenas retratando a mentalidade da época ou, que ele foi medíocre neste aspecto????

A polêmica provocada – iniciada pela carta do professor Antonio Gomes da Costa Neto, seguida de análise e parecer do CNE – é bem-vinda e oportuna. Levanta uma questão crucial para os estudos literários relacionada aos binômios literatura/sociedade, literatura/educação, leitura/ética.

A questão maior agora talvez não seja discutir o caso Monteiro Lobato, porém tomá-lo como pretexto para uma oportuníssima discussão de natureza teórica importante para os estudos literários bem como para políticas culturais: o que faz a literatura na cabeça de quem a lê? Pergunta, é claro, teórica e cujo encaminhamento & resposta – como toda boa teoria – tem consequências relevantes para o dia a dia de todos nós.1Texto baseado em apresentação feita no Simpósio “Monteiro Lobato: texto e contexto” durante o XII Congresso Internacional da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC) em julho de 2011.


Imagem: Ilustração de Jean Gabriel Villin (1906 / 1979)


Nota

  • 1
    Texto baseado em apresentação feita no Simpósio “Monteiro Lobato: texto e contexto” durante o XII Congresso Internacional da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC) em julho de 2011.

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  • Marisa Lajolo

    Professora da Universidade Mackenzie e da Unicamp é autora de livros sobre leitura e literatura infantil. A obra que organizou em 2009 junto com João L. Ceccantini, Monteiro Lobato livro a livro (IMESP, EdUNESP), recebeu o prêmio Jabuti como Livro do Ano não ficção. Seu mais recente lançamento é uma biografia romanceada de Gonçalves Dias (O poeta do exílio, FTD). Preside o Prêmio Jabuti junto à CBL.

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