Promoção da leitura: 6 ideias – I

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Há alguns anos, um dos temas de discussão mais interessantes e intensos era “promoção da leitura”. Sob essa denominação se justificava quase qualquer atividade e muitas vezes assistimos a discussões das mais extravagantes sobre teorias relacionadas ao incentivo à leitura. Desde aqueles tempos, gosto de colecionar testemunhos de gente relatando suas primeiras experiências leitoras, onde se observam as curiosas maneiras de iniciar-se e também a variedade, quantidade e as obsessões que marcaram o início da vida leitora. Muitos desses relatos são de escritores, mas também há os de cientistas e de leitores comuns. Animo-me a iniciar uma série de textos breves para mostrar que, às vezes, um pequeno gesto é suficiente para despertar uma paixão.1Originalmente publicado em anatarambana.blogspot.com, quarta-feira, 28 de novembro de 2012.

1. “Devorava todos os livros, folhetos e pequenas obras de qualquer espécie que caíam em minhas mãos. Sem discernir, sempre, com clareza, a diferença entre um manual de física recreativa onde se afirmava que um espelho, um cômodo limpo e claro e uma mente desocupada eram suficientes para descobrir a natureza da luz, e os mistérios, não menos impenetráveis de O escaravelho de ouro, que descobri ao acaso nas minhas leituras noturnas, em uma coleção de diminutos livros no qual a divulgação fantástica e os relatos de terror se alternavam em uma ordem e em um arranjo duvidoso, que parecia satisfazer meus confusos anseios infantis.”

Juan Pedro Quiñonero
Retrato del artista en el destierro
(Edicones Corts, 2003)

2. “Em uma ocasião, papai se ofereceu para pagar-me para ler: cinco dólares por livro. Me disse que pegasse um livro da estante do salão, que ia do piso ao teto. Encontrei O chamado selvagem, de Jack London. Gostava das cores da capa. Papai baixou o livro e me deu, dizendo.
– Este cara foi um grande escritor. Escolheu bem.
Sessenta dias mais tarde havia devorado cinco das novelas de London. Estava preso para sempre”.

Dan Fante
Fante, um legado de escritura, alcohol y supervivência

(Sajalín Editores, 2012)

3. “Seguindo seu conselho adquiri uma volumosa Geografia pitoresca ilustrada com lâminas e fotografias, que foi minha leitura favorita por dois ou três anos. Graças a ela, sabia de memória a extensão, população, capital, principais cidades, status jurídico e riquezas naturais de todos os países do mundo. (…)
No transcurso dos anos de colégio o conteúdo de minhas leituras tinha se modificado: a afeição pelos livrinhos da coleção Majurita foi seguida pela descoberta dos personagens de Elena Fortún – tio Rodrigo, Célia, Cuchifritín – para passar rapidamente para Emilio y los detectives e, principalmente, para a série ilustrada de Aventuras de Guilhermo, provavelmente uma das melhores do gênero. Meu interesse por Julio Verne e Salgari foi algo posterior: consequência direta de minha frequência aos cinemas do bairro em que se projetavam filmes de aventura e, ao final das contas, de escassa duração.”

Juan Goytisolo
Memorias

(Península 20012)

4. “Aos dois anos me ensinaram que qualquer cômodo de nossa casa, a qualquer hora do dia, podia ser ocupado para ler, e principalmente para fazê-lo em voz alta a quem quisesse escutar. Minha mãe lia para mim. Costumava ler pela manhã no dormitório grande, juntas as duas em uma cadeira de balanço que rangia ao compasso de nossos movimentos, como uma cigarra que acompanhava o desenvolvimento do relato. Lia para mim no refeitório durante as tardes de inverno, diante do fogão à lenha, e a história era terminada pelo relógio com seu cuco, e lia a noite quando me deitava. Creio que não lhe dei um único respiro. As vezes lia para mim até mesmo no cozinha, enquanto batia manteiga e o som do pilão soava no ritmo do conto, qualquer que escolhesse. Sonhava que ela lia para mim enquanto eu batia a manteiga; uma vez decidiu contentar-me, mas o conto terminou sem que eu tivesse podido coalhá-la. (…) Assustei e decepecionei-me ao saber que os livros de contos são escritos por pessoas e não maravilhas da natureza que brotam como a erva. Contudo, alheia a sua procedência, não me recordo um só momento em que não estivesse enamorada deles: dos próprios livros, das capas, da encadernação e do papel em que foram impressos, de seu cheiro e de seu peso…”.

Eudora Welty
La palabra heredada

(Impedimenta, 2012)

5. Quarta-feira, 12 de outubro. Folheamos os absurdos livros de leitura (para crianças que aprendem a ler) do peronismo. Digo que eu aprendi a ler com o Veo y leo. Borges acredita ter começado com El nene. BIOY: “Quando criança eu era muito snob e não lia os livros da Biblioteca Araluce porque eram obras famosas, adaptadas para crianças (lia livros para crianças, como Pinóquio; mas não admitia obras para adultos adaptadas para crianças)”. BORGES: Comigo se passava algo parecido. Uma vez lia com muito orgulho uma História da Grécia até que vi que na capa dizia Adaptada para crianças”.

Adolfo Bioy Casares
Borges

(Backlist, 2011)

6. “Devo acrescentar que na minha casa livros de recreio não eram consentidos. (…) Um dia, explorando meus domínios escorregadios telha acima me aproximei da janela de um sótão do vizinho confeiteiro e contemplei com deliciosa surpresa, ao lado de trastes velhos e de alguns canudos cobertos com doces e frutas secas, uma copiosa e variadíssima coleção de novelas, versos, histórias e relatos de viagem. Ali estavam, tentando minha ardente curiosidade, todas as obras que tinha ouvido nomear e celebrar e muitas outras admiráveis de cuja existência eu nem sequer suspeitava. (…) Diante de tão feliz acontecimento fiquei pleno de emoção durante alguns minutos. Passada a surpresa e decidido a aproveitar de minha boa sorte, pus-me a pensar como exploraria aquele inestimável tesouro, evitando as suspeitas do dono e as pegadas de meus passos pelo sótão. (…) Depois de muito refletir, decidi dar o primeiro golpe de manhã cedo, enquanto os inquilinos dormiam, e pegar de um em um os livros marcados com o código, repondo cada volume no mesmo lugar da prateleira. Quem será capaz de avaliar o que gozei com aquelas saborosíssimas leituras! Tão entusiasmado e alegre estava que me esquecia de todas as vulgares necessidades da vida material.”

Santiago Ramón y Cajal
Cuando yo era nino

(PUZ, 2007)

Tradução Paula Stella

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  • Ana Garralón

    Ana Garralón trabalha com livros infantis desde finais dos anos 80. Colaborou como leitora crítica para muitas editoras, realizou oficinas sobre formação e incentivo à leitura e livros informativos em importantes instituições. Escreve regularmente na imprensa. Publicou Historia portátil de la literatura infantil, a antologia de poesia Si ves un monte de espumas e 150 libros infantiles para leer y releer (CEGAL, Club Kirico, 2012 e mais recentemente Ler e saber: os livros informativos para crianças (Pulo do Gato, 2015). É membro da Rece de Apoio Emília. É autora do blog http://anatarambana.blogspot.com.br/.

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