Seguindo migalhas na floresta

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Se um bocado de migalhas e algumas pegadas no terreno úmido da floresta não são suficientes como prova de um delito, já que o único cadáver é aquele, literário, maravilhoso, do fantástico, podemos igualmente afirmar que um mesmo fio liga os contos João e Maria, Irmãozinho e irmãzinha, O cordeirinho e o peixinho, recolhidos pelos irmãos Grimm no início do século XIX, o conto russo da mesma época Irmã Alionushka e irmão Ivanuschka, de Alexander Nicolaievitch Afanasyev, o conto napolitano Nennillo e Nennella publicado no Pentamerone de Basile em 1634, O Pequeno Polegar, de Charles Perrault, Finette Cendron de Madame D’Aulnoy, ambos publicados em 1697 e, talvez, mas com uma raiz ainda mais antiga e perdida na História, Babes in the wood, balada inglesa de autoria de Thomas Millington datada de 1595, na qual duas crianças abandonadas na floresta morrem de inanição.

Se algumas linhas-mestras do conto se mantêm invariáveis através dos séculos, como o abandono na floresta, a astucia do irmão mais frágil, o encontro com um adulto canibal, ou ainda, em outras vertentes, a transformação de um dos irmãos em animal (transformação da qual o conto conserva traços mesmo quando ausente como tema dominante: a volta para casa montados em um pato da segunda versão de Joãozinho e Maria, a passagem de Nennella dentro da barriga do peixe, Finette no cavalo mágico que corria “si légèrement, qu’il semblait que ce fût un oiseau”).

Os elementos mais arcaicos, cruéis e maravilhosos da narração foram sendo atenuados ou até eliminados na medida em que a infância passou a ser definida como categoria social e principal fruidora dos contos de fadas, processo iniciado no século XVIII com apogeu no século XIX (pense-se, por exemplo, na nomenclatura “madrasta” que aparece no lugar da palavra “mãe” na quarta versão de Joãozinho e Maria dos Grimm, de 1840).

Seria fascinante traçar uma história comparada entre os textos e as ilustrações para ver se o lento “estilicídio” do fantástico nas sucessivas versões literárias aconteceu simultaneamente às suas representações. O que é certo é que, no século XX, ilustrações e textos parecem coincidir na vontade de adocicar e racionalizar o conto.

Restam apenas alguns raros sinais de Nennillo e Nennella, Finette Cendron, Irmãozinho e Irmãzinha, O cordeirinho e o peixinho, contos que provavelmente continham demasiados elementos arcaicos e irracionais para a ideia de infância que prevalecia na Europa. Ao contrário, Joãozinho e Maria sobrevive e faz um imenso sucesso, com sua bruxa quase simpática e sua casinha de marzipan que parece saída de uma confeitaria.

Mas tentemos improvisar esse exercício de história comparada. O tema da cegueira parcial do ogro ou da bruxa, que descende do episódio homérico do ciclope cego que, tateando, busca Ulisses e seus companheiros, se transforma, em Perrault, numa procura mais racional das crianças escondidas debaixo da cama ou no escuro.

Esse desaparecimento da fisionomia monstruosa do ogro se reflete em todos os ilustradores de Perrault, para quem o ogro adquire uma fisionomia bem mais humana, de um homem gordo e beberrão. Mas se o conto suprime o horrível (restam alguns traços nas filhas do ogro), Gustave Doré, o primeiro grande ilustrador de Perrault no sentido moderno do termo, o reintroduzirá de outro modo.

Estamos em 1897, o romantismo levou de novo ao auge os contos de fadas, as descobertas recentes da gravura em madeira permitem à Doré traduzir o fantástico, o maravilhoso, graças a um jogo de claro-escuro e da delicadeza do traço. Na sua imagem do Pequeno Polegar, a floresta, lugar onde o irracional e a magia agem com um poder incomparável, é representada pela cor preta e as árvores – em branco – nada mais são do que o negativo dessa força obscura.

O Pequeno Polegar
O Pequeno Polegar, Charles Perrault. Ilustrações de Gustave Doré, fim do século XIX.

O Pequeno Polegar, separado do grupo, aparece em um facho de luz. A fileira diagonal que representa os irmãos chama a atenção para o último reflexo de luz antes da entrada definitiva na escuridão: o clarão do machado, antecipando o bárbaro infanticídio. É possível perceber uma engenhosa reviravolta da perspectiva das siluetas humanas, as mais distantes parecendo maiores. A continuidade do fio de pedrinhas ou migalhas que Polegar joga pelo chão resulta num impasse, que se transforma em um saco pesado demais: impossível, seguindo o frágil fio de migalhas, levar a família de volta para casa, frear o irreparável.

Madame d'Aulnoy
Finette Cendron, Madame d ‘Aulnoy.
Ilustrações de Pierre Gustave Eugene Staal, meados do século XIX,
clichê Biblioteca municipal de Lyon.

Se no conto de Perrault a ogra é “uma boa mulher”, em Madame d’Aulnoy ela é representada como “uma velha mulher horrenda (…), com um olho apenas no meio da testa, mas do tamanho maior de cinco ou seis, o nariz chato, a pele escura e a boca tão horrível que dava medo.

A representação da ogra de Pierre Gustave Eugene Sttal, publicada em meados do século XIX, traduz perfeitamente esta diferença de registro do conto de Madame d’Aulnoy em relação ao de Perrault. A cegueira homérica da ogra é mantida na imagem de Staal, mas ele renuncia à caricatura e cria um monstro ainda mais temível, eliminando-lhe os olhos. Escolhe para as três irmãs o mesmo vestido e o mesmo penteado (quando, no conto, Finette está vestida de outro jeito), dando ao expectador um efeito estroboscópico parecido ao usado pelo pintor Vittore Carpaccio na sua fuga de padres, em San Girolamo e il Leone nel Convento.

A vista de cima, junto à perda de referência dada pela queda para frente da ogra, coloca o expectador em uma posição de desequilíbio: ele está num plano “mais alto” que as meninas assustadas, porém em uma posição “mais em baixo” que a do castelo e da ogra. O leitor é capturado pela perspectiva estranha: seria ele também um adulto canibal ou é a criança que tem medo de ser devorada?

Prova da matriz mais arcaica da versão de Madame d’Aulnoy é também a presença do fio como um dos estratagemas para não se perder na floresta. A Fada Madrinha diz a Finette: “Tenez, vous n’avez qu’à prendre ce peloton, le fil n’en rompra jamais; vous attacherez le bout à la porte de votre maison, et vous le tiendrez à votre main”, exatamente como fez Teseu sob sugestão de Ariadne.

Depois de ter observado os profundos claros-escuros de Gustave Doré e a fisionomia monstruosa da bruxa de Eugene Staal, voltando um século atrás, podemos nos perguntar onde está o maravilhoso na ilustração de O Pequeno Polegar de Clouzier, o segundo ilustrador de Perrault em ordem cronológica, e o primeiro de que nos vem o nome.

O Pequeno Polegar/Clouzier
O pequeno Polegar, Charles Perrault. Ilustrações Antoine Clouzier, 1697.
Clichê Bibliothèque Nationale de France (BNF).

O traço da gravura é grosseiro, o gigante é um tranquilo senhor adormecido, a paisagem até agradável. Para encontrar o maravilhoso nesta cena, devemos nos colocar no ponto de vista de um leitor de 1697. De fato, como sugeriu a pesquisadora holandesa Daphne M. Hoogenboezem em seu excelente estudo “Magie de l’image? Altérité, merveilleux et définition générique dans les contes de fées de Charles Perrault”, Clouzier teria utilizado voluntariamente essa pobreza de traços e de imaginário para lembrar o efeito das ilustrações medievais, dando assim um ar de antiguidade à edição de Perrault. Naqueles anos, a Idade Média era sinônimo de castelos, príncipes e das maravilhas dos tempos passados.

Também Irmãozinho e Irmãzinha, dos Irmãos Grimm, parece ser uma versão mais antiga do mesmo tema de João e Maria. Um dos dois irmãos não só é aprisionado como um “frango” numa gaiola (nível metafórico) como também é, num passe de mágica, transformado em cervo pela bruxa madrasta, e depois perseguido pelos cães durante uma caçada. É difícil, observando os ilustradores desse conto menor (sejam eles Arthur Rackham ou Kay Nielsen, entre outros), não pensar nas inúmeras representações (o irmão é transformado porque bebe água enfeitiçada) das Metamorfoses de Ovídio, quando Antão, transformado em cervo por ter olhado Diana na fonte, é perseguido pelos cães e foge pela floresta.

Um dos mais fervorosos ilustradores dos contos de Grimm foi Carl Offterdinger, na segunda metade do século XIX.

Irmãzinha e Irmãozinho
Irmãozinho e irmazinha, Irmãos Grimm.
Ilustrações Carl Offterdinger, final do século XIX

Efeito teatral, no lugar de magia, na imagem final das ilustrações de Irmãozinho e Irmãzinha, Offterdinger “desmascara” o irracional dos contos de fadas, como os próprios Grimm, que, versão após versão, foram “polindo” seu misterioso fascínio. O encantamento bárbaro era apenas um travestimento, e as cores reasseguradoras das imagens d’Epinal parecem já nos familiarizar com o kitsch das coloridíssimas casinhas de marzipan do século XX.

O interesse dos estudos psicanalíticos e morfológicos pelos contos de fadas e do século XX não bastaram para trazer de volta o fantástico nas publicações destinadas às crianças. Será preciso esperar a virada do terceiro milênio e ilustradores como Lorenzo Mattotti, Susanne Janssen, Kveta Pacovska, para reencontrar o antigo, o terrível esplendor dos contos de fadas.

Confrontemos essas duas ilustrações tiradas da mesma cena: a captura de Joãozinho. A primeira, de Willi Plank, publicada na Alemanha por Lowes Verlag Ferdinand Carl, provavelmente em torno de 1954, é um exemplo do imaginário do século XX de João e Maria; a segunda, de Susanne Janssen, publicada na França pela Edições Être em 2007, é francamente inovadora.

João e Maria_Wiili Plank
João e Maria, ilustração de Willi Plank, c. 1954

A imagem de Willi Plank parece retratar um pic-nic numa bela tarde de agosto. As cores são suaves e luminosas, um gato gordo ronrona perto da bruxa, uma velhinha simpática e até bem vestida, de proporções humanas e com um par de óculos para míopes em cima do nariz (o único traço inquietante, a cor escura do rosto, em contraste com a das mãos, comum em muitas ilustrações da época). A representação de Maria é a de uma menina que saltita alegremente para ir colher flores. O conjunto da composição se desenvolve em linhas horizontais e verticais, o que transmite uma grande sensação de equilíbrio e de paz. A casinha da bruxa é coberta de biscoitos em forma de coração. Onde está a violência de um iminente ato canibal? Onde estão as forças obscuras do inconsciente que transformam a avidez oral no seu oposto?

João e Maria- Susanne Janssen
João e Maria, ilustração de Susanne Janssen, 2007

A imagem de Susanne Janssen, terrível, nos apresenta em primeiríssimo plano uma bruxa quase cega, em cuja boca largamente aberta, por um efeito de perspectiva, já está entrando Joãozinho. O vestido é de um vermelho intenso, que se destaca do monocromo da prisão. Maria tem a mesma cara de Joãozinho, como para reunir em uma só criança o duplo espelho dos seus nomes: Nennillo e Nennella, Hansel e Gretel, Alionushka e Ivanushka, símbolo de uma unidade perdida que precisa ser reencontrada. Ambos de olhos fechados, como sonâmbulos prisioneiros de um pesadelo, esperando a sua sorte. As linhas diagonais das grades podem ser lidas do centro do livro em direção ao exterior: como uma irradiação da terrível força destruidora da bruxa. Mas lidas do exterior para o interior, elas se transformam também em lanças que atravessam a bruxa, antecipação de sua morte próxima. É ela que está presa entre as grades, quase engolida pelo centro da dupla página, enquanto as crianças parecem mais livres para sair e entrar na cena. As posições do corpo e da boca lembram um monstro apenas apunhalado, paralisado pela consciência da sua morte (o ciclope que Ulisses cegou?).

Para fechar nossa pesquisa de investigadora diletante dos contos de fadas, olhemos para o norte da Europa, mais especificamente para a Inglaterra onde, em 1595, Thomas Millington publica a balada Babes in The Wood. É a história de duas crianças que ficam órfãs e são adotadas por um tio avarento, que para se livrar delas, ordena a dois bandidos de levá-las à floresta e assassiná-las. Um dos dois malfeitores deixa-se levar pela piedade, mata o comparsa e abandona as crianças na floresta, mas estas, incapazes de se alimentar, morrem de fome e de frio. Os pintarroxos cobrirão de folhas os seus cadáveres.

Dada a total ausência de qualquer elemento mágico, essa balada não pode ser definida como conto de fadas. Em comum com as diferentes variações de João e Maria existe apenas a dupla irmão-irmã e o abandono na floresta. Eco talvez de uma notícia real, ou daqueles ritos de abandono de que nos fala Vladimir Propp em seu estudo sobre as origens dos contos de fadas, essa balada teve um sucesso imenso na Inglaterra: impressões e re-impressões, filmes, desenhos animados e numerosas pantomimas. A interpretação mais bem sucedida é sem dúvida a de Randolph Caldecott, publicada por Frederick Warne & Co LTDA em Londres e Nova York, em 1879.

Irmãos na floresta

Babes in The Wood, Randolph Caldecott, Frederick Warne & Co Ltd, Londres e Nova York, c. 1879

Surgindo de uma floresta ilustrada com um realismo quase naturalista (um botânico poderia enumerar as espécies de plantas), as duas crianças, muito pequenas, correm e acabam morrendo sem que lhes seja dado o conforto de uma só fada. Só os pintarroxos têm piedade deles: pássaros que na tradição céltica simbolizam o ressurgir da primavera e são encarregados dos ritos de passagem à nova idade. Um único elemento mágico é colocado em cena por Caldecott: a floresta que, na última cena, é de um só golpe desprovida de suas belas folhas de carvalho, enquanto a continuidade espaço-narrativa deveria impor uma imagem idêntica à precedente. Compaixão da natureza pelas duas crianças ou revelação do verdadeiro segredo do conto das crianças na floresta? O da metamorfose do crescimento, daquela delicada passagem iniciática que, da idade infantil, leva à idade adulta? Passagem que requer, como atalho, a aceitação da morte.1Artigo originalmente publicado na Revista Hors Cadre[s], numero 9, de outubro de 2011

Para saber mais sobre os clássicos da literatura infantil, leia Contos de fadas: edição comentada & ilustrada (Zahar).

Tradução Claudia Souza

Nota

  • 1
    Artigo originalmente publicado na Revista Hors Cadre[s], numero 9, de outubro de 2011

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  • Anna Castagnoli

    Depois de fazer mestrado em filosofia e letras, encontrou no livro ilustrado um universo capaz de resumir todas as suas paixões: a arte, a literatura, a psicanálise da infância, a filosofia. Autora e ilustradora, faz quatro anos que se dedica ao estudo dos mecanismos do livro ilustrado no seu blog. Também colabora como crítica em diversas revistas internacionais. Nascida na França, de nacionalidade italiana, vive atualmente na Espanha. É ilustradora de vários livros e do Manuale dell Illustratore. É autora do blog http://www.lefiguredeilibri.com/.

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