Tenho uma mensagem codificada para você

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Tenho uma mensagem codificada para você.

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Esta sou eu; esta é a mensagem; e este é você.

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Eu, mensagem, você.

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Mandei alguns sinais a você enquanto ninguém olhava, porque tenho uma mensagem codificada para você. E ali estamos – você e eu – sentados em um banco em… Tem que ser em uma estação ferroviária, há barulho, por isso falo com você na linguagem de sinais.

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E ainda assim não te mando ainda a mensagem. O caminho será longo e pode ser que acabe me escondendo dentro de uma mala, pulando de um avião em chamas, sobrevivendo a uma avalanche, escapando das garras dos lobos, ocultando me dentro de uma gruta e, dali, te mandando um sinal de rádio por frequência, porque tenho uma mensagem codificada para você.

Poderia também escrever um livro para mandar a mensagem codificada que tenho para você. Porque essa mensagem é sua, mas você só a encontrará caso resolva brincar comigo, escutar o que estou comunicando e INTERPRETAR sem preconceito, sem achar que você já sabe o que vou dizer.

Se resolvi dar a volta ao mundo, enfrentar meus inimigos e lutar com um polvo gigante, ou apenas escrever uma história e ilustrá-la ou deixar que a ilustrem; se, além disso, alguém pegou este material, o editou e imprimiu, é porque entre todos – autores e editor – tínhamos algo importante a dizer.

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Como quando quando Mac Barnett escreveu Sam e Leo cavam um buraco e Jon Klassen ilustrou esta história (Editorial Juventud, 2015). Falei com conhecidos e com alguns livreiros perguntando o que achavam da história: “É muito boa, pena que o final não seja bom”; “É uma história divertida, mas o final não se segura”.

“Puxa – respondia eu – adorei o livro, acho ele genial. E quanto ao final, sério que você não consegue ver mesmo para onde ele vai? Para mim está claro, rapidamente construí uma teoria, um complô, sim, porque claramente existe um complô…”

Frente a isto, me respondiam em seguida: “É que, na verdade, li o livro rápido, somente folheei, não pude lê-lo bem…”. Isso é normal, haja vista a quantidade de livros que um livreiro recebe e a tonelada de trabalho que pesa sob seus ombros. Mas o que fazer?

Algo semelhante deve acontecer a qualquer pessoa que entra em uma livraria: para onde dirigir o olhar quando se depara com a mesa de lançamentos?

Não é nenhuma novidade dizer que vivemos no mundo da pressa e que uma história tem que nos arrebatar desde o principio, temos que poder reduzi-la a uma frase que lhe dê um sentido claro e cristalino, imediato.

Muitas vezes, porém, as coisas importantes não se percebem de imediato, porque é necessário vivê-las, passar por um processo de digestão para que se transformem em um achado, em uma iluminação. Isso requer tempo. A interpretação requer tempo.

E interpretar é o que se deveria fazer diante de um livro-álbum. Ler o texto, observar as imagens e interpretá-las, relacionando-as com as palavras que acabamos de ler.

Então, o que acontece na segunda-feira em que Sam e Leo decidem cavar um buraco?

Para Leo está claro: os dois amigos só vão parar de cavar no momento em que encontrarem algo espetacular. Essa é sua missão. O que vai demorar. À medida que os dois transpiram para abrir caminho pelas entranhas da terra, os leitores vão se desesperando ao ver como chegam perto de espetaculares diamantes. O cachorro parece farejar tudo, mas os dois amigos, nem em mil anos, nem se acabasse toda a terra que há no mundo, acertariam os lugares para cavar.

Sorte do cachorro, que não se engana ao farejar um bom osso. E quando a terra literalmente acaba e os amigos despencam é hora de voltar para casa. É isso? Todo esse rebuliço para isso que, por mais surreal que seja, parece deixar no leitor uma sensação de insatisfação. Uma sensação inacabada.

Há crianças que leem a história e acham que algo não se encaixa: se Sam e Leo cavam até o centro da Terra, não deveriam encontrar fogo e magma?

Outras se indignam: e essa fantástica trama de diamantes? Ah… sempre aprendemos rápido a amar tudo o que brilha.

Outros, ao contrário, pensam que os meninos não fizeram nada além de chegar à casa do vizinho. E aqui temos uma questão. Por acaso, prestaram atenção nas cores das frutas, da flor, da coleira do gato no início? E no final? Por acaso, prestaram atenção em…?

Por mais sintética que seja a ilustração de Jon Klassen, há vários pontos sobre os quais se pode lançar o olhar.

Tenho uma teoria. De que cor é o chapéu de Sam? E o de Leo? Quem leva a mochila? Qual é a cor dos detalhes do lugar de chegada?

Tenho certeza: Leo tinha um plano. E estava bem arquitetado.

Sam e Leo cavam um buraco é um livro feito para nos desestabilizar e brincar com nossas expectativas básicas. É um livro à espera de leitores que, no lugar de se referir ao que já pensam saber, se deixam envolver pelo desenvolvimento da história.

Além disso, em que lugar nos colocam as imagens? Por acaso os diamantes brilham embaixo da terra ou se encontram em um estado mais bruto? Por que aceitamos que esses diamantes estejam ali ao invés de nos indignarmos que no centro da terra não haja magma?

Ainda assim, se estamos tão condicionados pela física e pelo real, como não percebemos que, quando Sam e Leo cavam ao redor desse diamante… a terra não teria que estar acima de suas cabeças. Será que a linguagem visual possui regras próprias?

Do que trata este livro então?

Gosto particularmente desta obra, porque, ao estilo de uma comédia de mal entendidos, provoca o riso e uma adesão imediata. Mas logo decepciona o leitor rígido ou pouco atento, porque o final impõe uma parada no caminho percorrido. Uma revisão das páginas recém lidas requer que lancemos mão de nossa rede de lançar hipóteses para então começarmos o trabalho real de interpretação.

Num bom livro, todos os elementos estão ali, à nossa disposição. Tanto tratando-se de uma obra em que seu suporte físico brinca de se esconder, como em Uma mensagem codificada, de Troshinsky, que, de tão fino poderia servir para equilibrar uma mesa com uma perna mais curta, mas o que vamos fazer se considerarmos que o livro é, em si, um disquete que pertence à arqueologia tecnológica?

Com o leitor, certamente poderíamos falar da evolução, do passo acelerado do tempo; mas o mais interessante é que, mesmo não conhecendo os disquetes nem o código ASCII, nem os videogames “antigos”, o jovem leitor empedernido poderá decifrar o que está acontecendo, como vimos, somente lendo e interpretando passo a passo a informação textual e visual que o livro nos proporciona (nesse caso, as duas estão muito entrelaçadas).

Ao buscar uma fórmula imediata (este livro serve para…), perde-se uma das delícias da desestabilização, essa sensação de não entender nada, até o momento em que todas as peças se juntam, como quando na investigação de um crime o detetive, no fim, vê como cada indício vai ganhando sentido e, no meio do caos, encontra o fio para puxar e achar o culpado.

um livro

Existem livros que são realmente para detetives, como O livro da sorte (escrito por Sergio Lairla e publicado pela A buen paso, 2014). Se você tenta resumi-lo em poucas palavras você estará perdido, pois o máximo que você vai conseguir é que esta história pareça incrivelmente complicada e pesada. É que existem coisas que não se deixam resumir. O livro da sorte é livro que que temos que investigar, tem que estar disposto a viajar com os olhos saltando do texto aos diminutos detalhes das imagens. E vice-versa.

Quando muito, pode-se dizer que este livro conta a história de Buenaventura e Malapata. Os dois são vizinhos e vão de férias para o mesmo lugar no mesmo fim de semana. Mas não se conhecem, não se encontram nunca e, no entanto, as atitudes de um influenciam na vida do outro. Que papel tem a sorte em suas vidas? Que papel o caráter de cada um deles determina sua própria sorte? Onde está a sorte na capa do livro?

Não se pode dizer muito mais. É necessário ler o livro.

A beleza única e surpreendente do livro-álbum reside no fato de que se você vê um objeto diante dos teus olhos, vira suas páginas, vê sua interrupção narrativa, você sabe que se trata de uma ficção. No entanto é exatamente no momento em que, como leitor, você vai preenchendo em sua mente os vazios que os autores deixaram nas páginas, que a obra ganha vida em sua imaginação e você a vive como o que ela é, algo real. Isto porque fala de pequenas questões espinhosas, curiosas, persistentes que, de alguma maneira, ficaram presas entre os dedos de seus autores que tiveram que fazer um livro para esclarecer se a si mesmos as ideias.

Ao fim e ao cabo, é isso o que fazemos quando nos propomos a escrever, ilustrar ficção.

A pluralidade de linguagens que entram em jogo em um livro-álbum consegue gerar uma experiência poliédrica de pensamento que o leitor, compativelmente com o mundo apresentado em suas páginas, pode dirigir mediante suas próprias experiências e preocupações. Por isso não há uma leitura que seja igual à outra.

Um livro-álbum não é uma fórmula. Muito menos matemática, nem mesmo quando se quer apresentar com um programa de computador em que se tenta reduzir ao mínimo o valor plástico da ilustração (renunciando à cor e delimitando-a com linhas que, se não soubéssemos que Pablo Amargo trabalha com computador, diríamos que foram traçadas com réguas, esquadros, compassos, transferidores).

Contudo, as imagens de Pablo Amargo possuem ressonância poética. São pura ressonância em si mesmas. Tal como faziam Sam e Leo, Pablo Amargo também, a partir das palavras do texto que se propõe ilustrar, cava um buraco, aprofunda a capa do sentido do que se está dizendo e elabora uma metáfora em cima da metáfora proposta pelo texto.

As linhas depuradas, as formas limpas de suas composições se tornam veículos de ressonâncias íntimas, pré-meditadas e extremamente complexas. E como são complexas!

Vejamos o que o narrador nos conta: “Em Ventoso, conheci uma menina muito linda, chamada Racha. Quando Racha era pequena, um vendaval arrancou a pupila de um olho e a colocou em outro. Se por um lado se parecia à Bela Adormecida, por outro, era duplamente desperta. E o vento que entrava por suas narinas dobradas transformava sua boca em um alento maravilhoso.

Na imagem a paisagem se converte em rosto; os balanços onde estão os dois personagens, em olhos onde as pupilas que se juntam são dois jovens que estão namorando.

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A força de coesão dos elementos em um livro-álbum consegue que, às vezes (e na melhor das hipóteses) o livro exista tão somente na união de suas partes. Em A buen passo, acabamos de publicar Ya. Nunca, um livro que nasceu quase como um experimento visual e para mim, como sua editora, acabou sendo uma “obra magna” acerca da vida. Cecilia Moreno, a ilustradora, começou a produzir evocativas imagens perfuradas. Para inspirar-se, às vezes se baseava em versos de Grassa Toro.

Fascinada pelas imagens de Cecilia, falei com ela e com Grassa Toro para propor a eles um livro que se estruturaria por pares de versos que compartilhariam parte da ilustração: ou seja, cada verso ocuparia uma dupla página, mas a página comum a dois versos teria um perfurado, que dialogaria com ambas frases.

Na verdade, a proposta parecia mais um jogo, um desafio compositivo.

A isso, Grassa Toro respondeu com a ideia de enviar duas listas: uma lista de coisas que já fiz e outra de coisas que nunca farei. No processo de elaboração das imagens, tomou protagonismo uma silhueta humana, provida de uma atitude inquisidora. Naturalmente, nela se destacam o olho e a orelha, mas sobretudo, está presente uma tensão investigativa no queixo que se estende para frente. Tudo está neste gesto.

O livro foi, pouco a pouco, transformando-se na busca vital dessa silhueta arquetípica. Sim, o ser humano curioso e investigador é mais interessante, porque, seja ele criança ou adulto, possui e mantém viva uma atitude de descobrimento do mundo e de suas mudanças.

Aqui temos um exemplo: Nunca fecharei novamente a noz / Já descobri onde termina a rua.

Frequentemente nas imagens do livro se alternam cenas duplas, que se apresentam ambas quase como cenas descritivas de uma situação, com pares em que uma cena dialoga com um símbolo sintético. Como no caso em que o mapa da cidade se resume a um imperdible (alfinete). Imperdível como o caminho de casa. Familiar como a luz acesa pela noite que entra pela janela.

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Somente depois de ver a capa do livro, é que o autor definiu o título: Ya. Nunca, parece fácil, mas originalmente, o livro se chamaria Cosas que. E a capa do livro foi então a casa da pessoa, dessa silhueta que espia essa selva emaranhada de sua alma e que a atravessa ao mesmo tempo que caminha pela vida. Foi ali que intervi como editora, suprimindo as guardas do livro. Poder-se-ia pensar que por uma questão de orçamento, mas não, foi por uma busca pela essencialidade assim como essenciais eram as frases, as imagens, a tensão poética da obra. De fato, nessa mesma direção foi o trabalho do próprio designer, que procurou uma letra quase severa, fina, serifada, em caixa alta.

Confesso que durante a elaboração do livro tive medo: conhecendo onde a ideia da obra tinha nascido, tinha pavor de que ficasse algo mecânico, bonito, belo, bem encaixado e redondo mas nada além disso.

Aqui será útil fazer um breve parênteses: o jogo, o humor e os dois juntos constituem uma ferramenta de conhecimento maravilhosa; o humor e o jogo te colocam no âmbito do imprevisto, da criatividade mais desaforada, da combinação surreal, sobretudo quando se joga com as palavras, seus sons, sua capacidade eloquente, assim como quando se joga com pedaços de imagens e, a partir de uma simples curva, se constrói uma cena complexa – mais sobre isso, veremos em breve quando falarmos do livro Agujero. Contudo, o jogo, a brincadeira, a piada não constituem uma obra literária em si mesmos, constituem ocorrências, histórias engraçadas que nos entretêm, mas terminam, se vão, desaparecem, se esfumam, uma vez que se fecha o livro. É importante pensar que o jogo criativo é genial para cada pessoa, criança ou adulto, mas que seu resultado não é arte, apesar de dar certo. A arte e o que teria que nos importar como leitores se escondem nesses pequenos pontos de ruptura, onde a ficção quase corre o risco de ceder e no entanto se repõe, porque precisamente ali se encontra uma ideia original. Original não é no sentido de frequência, mas uma ideia que nos faz compreender um pouco mais acerca de nós mesmos.

livro

Um ilustrador que literalmente digere o texto que está ilustrando e o integra no mundo de sua imaginação é Isidro Ferrer. Sobretudo se está ilustrando uma obra como O livro das perguntas, de Pablo Neruda; nas imagens acabam vivendo tanto as paixões, manias, obsessões do poeta das palavras, como as próprias do ilustrador, que, apoiando-se no imaginário do escritor, encontra ressonâncias nos temas que frequentemente sustentam seu próprio trabalho.

Nesse caso, passamos de uma ilustração vetorial uma que está feita de coisas, que leva as impressões digitais de seu autor, a marca deixada pelo trabalho de suas mãos. Tanto que a imagem se torna correlativo objetual.

Em nenhum momento, o ilustrador se propõe a responder as perguntas, mas leva a cabo uma viagem através da palavra de Neruda, de sua vida, de sua própria vida e desse mundo que habitamos.

As imagens de Isidro Ferrer normalmente possuem uma força empática formidável. Gosto de pensar que surgem da intuição mais pura de seu autor, por isso são tão vivas e cativantes. O que acontece é que a intuição de Isidro Ferrer é a de um devorador (ele mesmo se define como “ilustrador e designer por devoração”), em cuja mente se armazena uma enorme quantidade de coisas vistas, pessoas encontradas, lugares, conexões curiosas, de onde emana a força devastadora de sua obra (de fato algumas das ideias e das ilustrações deste autor nascem de seus cadernos de viagem).

Assim, ao abrir o livro, entramos no teatro através do qual Isidro Ferrer nos propõe nos relacionar com as perguntas de Neruda. E podemos seguir a sequência de passos do poeta, mas logo também podemos interpretar as imagens, uma a uma, ou alguma em particular, cada um seguindo também seus próprios referenciais.

Quantas coisas você pode dizer z partir de um mundo que é casa e que está feito de pão?

pao

E, mais uma vez, no lugar de buscar ou dar respostas, volto a me centrar nas perguntas. Perguntar. Perguntar não é fácil. Para fazer boas (e muitas) é necessário cultivar esse espírito um tanto contestador, que vê as diferenças naquilo que se apresenta como sensato e indiscutível (Se todos os rios são doces, de onde o mar tira o sal? – pergunta, entre outras coisas, Pablo Neruda).

Mas não quero assustar ninguém. Sou a primeira a gostar de uma história com começo, meio e fim. Como dizia antes, sou a primeira que gosta de rir com uma história, amo cair na gargalhada espontânea e imediata.

Por exemplo, estes dois livros Quero meu chapéu e Este chapéu não é meu, de Jon Klassen. Todos que o leram, certamente riram com eles. Assim como as crianças, quando veem os olhos do caranguejo delator no conto do peixinho que levou um chapéu que não era seu.

O que ocorre é que a risada que nos avassala na leitura destes dois livros não é, de maneira nenhuma, a risada provocada por uma piada. Estes dois livros, para além das referências ao humor negro do próprio autor, o que propõem é um procedimento com base em técnicas de argumentação e de pensamento fundamentais para alguém que quer aprender a estruturar o raciocínio.

De fato, o leitor não tem porque se dar conta disso, contudo, o substrato do livro, de alguma maneira, penetra e repousa em algum lugar de sua mente.

Por exemplo, no caso do chapéu: todos vivemos de maneira narrativa, damos sentido às coisas que nos acontecem e nos envolvem, ordenando-as narrativamente, criando conexões de causalidade, finalidade, tramas que antevemos como a única maneira de explicar os fatos.

Ai de nós! Como bem nos ensina o fatídico destino do peixinho, a realidade pode ser muito distante da reconstrução tão amável de nós mesmos.

Assim, lendo livros como estes, sem nos dar conta, podemos adentrar os tortuosos caminhos da filosofia, da construção do discurso, de nossas próprias debilidades e fortalezas estruturais… Essa curiosa e tão importante tendência que temos de nos proteger às vezes nos prega uma peça, levando-nos a distorcê-la.

O filósofo naturalista Bombastus Dulcimer acreditava no eterno progresso e na evolução da humanidade. Graças à aplicação de sua ciência conseguiu dar vida a plantas que se transformavam em objetos com utilidade real. Bombástica Naturalis é o compêndio em que o compilador Iban Barrenetxea apresenta a obra e os milagres deste filósofo.

Na verdade, conhecemos a impossibilidade física de suas realizações. Do absurdo de pretender voar como uma pera… Se pelo menos fosse uma abóbora vazia, ok, mas uma suculenta pera subir pelos ares? Pois, mais uma vez, o autor criou um universo visual com suas leis, um universo em que contam as formas e o nome das coisas, um universo em que uma pera pode amadurecer até tornar-se um balão.

No mundo disparatado de Bombastus, encontramos máquinas para voar, mas também soluções para os casos em que o balão murche. Bombastus é uma pessoa cuidadosa que pensou em todos os possíveis acidentes.

Pode-se falar do fato curioso de que o livro de Iban Barrenetxea possui literalmente muitas leituras diferentes: pode-se seguir as cenas do povoado, às vezes organizadas em um plano sequência, e descobrir a vida íntima dos habitantes do povoado; pode-se, também, seguir o voo do pássaro azul que nos propõe uma sequência silenciosa e metaficcional; e se pode ler os textos da enciclopédia, descobrindo neles pequenas histórias ou descrições paródicas.

Há, porém, algo mais que é que esses textos que parecem tão despreocupados e levemente humorísticos, encerram, aqui e ali, alguns princípios filosóficos. Vemos aparecer neles Heráclito (Boj laberinto) e a mutabilidade das coisas; os abismos de Nietzsche (Egeria periscópio); a instabilidade de desejos e de aspirações de Escada de macieira:


escada

“É bem sabido que a maçã mais deliciosa sempre cresce no galho mais alto da árvore. Considerando que a escada de maçã cresce e cresce sem parar, quase tratando subir seus próprios degraus, podemos afirmar que em seu galho mais alto está a maçã mais deliciosa do mundo. E que ao longo de tua leitura, a maçã mais deliciosa do mundo tornou-se ligeiramente mais deliciosa e ligeiramente mais inatingível”.


Esta Macieira Escada
nos coloca diante de um paradoxo, de uma impossibilidade; de um vazio permanente. Como o vazio que, um dia, descobre este senhor em sua casa.

agujer


É possível notar o salto de estilo visual, gráfico e narrativo de uma obra para outra, mas nisso reside outra das maravilhas dos livros-álbum que podemos encontrar: a variedade de estilos e modalidades expressivas e representativas. Quando uma criança ainda não tem um gosto formado, não tem preferências, tem que conhecer tudo, para saber o que existe dentro de toda essa variedade e encontrar também os universos artísticos em que podem se movem, como em sua casa.

Pois bem, o buraco na realidade sempre esteve ali, mas no dia em que o descobre, nosso protagonista leva um grande susto. E chama um laboratório científico para que o ajude. A ciência, como no caso de Bombastus, teria que nos proporcionar todas as soluções. Mas, podemos pedir à ciência o que pedimos?

O protagonista consegue capturar o buraco e com ele atravessa a cidade para levá-lo ao laboratório, claro. A partir deste momento, o livro desenvolve mais do que uma narrativa carregada de significado, uma série de jogos visuais em que o buraco que ocupa um lugar fixo na página tem que encontrar seu espaço na ilustração, que, em certo sentido, está construída ao seu redor.

O buraco volta a ser protagonista ativo da história no momento em que nos encontramos no laboratório. Submetem-no a provas de todo tipo sem conseguir descobrir absolutamente nada. De tal modo que o nosso senhor volta para casa.

O buraco segue ali, trancado em um frasco no laboratório, no céu ao entardecer. Na casa do próprio protagonista desta história.

Mas há uma mudança. É que o personagem segue com sua vida como se nada tivesse acontecido. Já não se assusta, já assumiu o fato de que o buraco está ali, sempre estará, é parte da vida.

O buraco: o que se perde, o que a morte leva e os que se vão, os mistérios sem explicação, as coisas que acontecem sem motivo; mas também a possibilidade, o desconhecido, o que está por vir e o que faremos com nós mesmos. Essa vitalidade imperfeita, inacabada (às vezes triste, muito triste, lógico) que faz da existência algo em permanente transformação. Algo maravilhoso em que sempre vale a pena estar para ver o que acontecerá.

O livro-álbum, através do trabalho interpretativo que convida o leitor, permite ativar todas as conexões presentes em uma história, assim como que o próprio leitor as crie, na medida em que ressoam em seu interior. Creio que à humanidade, desde sempre, se interessou pela arte e pela literatura, porque, nelas, as pessoas se encontram consigo e se conhecem e reconhecem como seres humanos, indivíduos e também parte de uma comunidade, tão pequena quanto uma família, um edifício, e tão grande como o mundo.

O livro-álbum como catalisador da curiosidade e das inquietudes de pesquisa e conhecimento. Contudo, para que isso seja possível, é fundamental que conte uma história, uma historia com sua própria necessidade de ser. Não uma pílula para solucionar problemas. Para isso, os livros não servem, a não ser que seja um manual de instruções. E um livro-álbum não é um manual de instruções.

Faz anos, a editora italiana Orecchio Acerbo criou um folheto, como se fosse uma bula, com indicações, contraindicações e posologia dos livros. Na Revista Educação e Biblioteca saiu uma bonita resenha de Chamario também organizada como se fosse uma prescrição médica. A metáfora é divertida e pode ser útil para ressuscitar um sorriso cúmplice, aproximando o leitor dos livros. Mas uma metáfora chega até um certo ponto, pode-se utilizá-la até que a correspondência com o referente se rompa.

Atualmente quando se recomenda um livro, você se encontra-se diante de uma fugaz prescrição para a alma, para ser feliz, para ser tolerante, para ser civilizado. Mas para ser feliz, é necessário conhecer a tristeza e tem que se viver os estados de ânimo de maneira completa; para ser tolerante, é necessário ser soberbo, sentir-se dono do espaço e do tempo e admitir a presença de outro, não queremos ser tolerantes, quem tem direito a ser?; não queremos ser civilizados e responder a uma série de regras de conduta ou às leis que nos indicam passo a passo o que devemos fazer em cada situação. Quero pensar que o que queremos é amar as outras pessoas, amar o que as faz diferentes de nós, amar sua aspiração a viver de maneira plena. Enquanto seres humanos, queremos estar bem e sermos responsáveis, é uma necessidade, dada pela nossa própria condição humana, nosso ter nascido aqui e agora com as outras pessoas que nasceram aqui e agora e têm nosso mesmo direito à felicidade. Então, sim, precisamos de dúvidas, paixão, capacidade de pensar e de tomar decisões autônomas, respeitando a humanidade que se encontra dentro de cada pessoa.

É por essa razão que amo ler e publicar álbuns para crianças. Acredito que seja o melhor que se pode fazer e o mais sério e importante.

Tradução Thaís Albieri

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  • Arianna Squilloni

    Arianna Squilloni vem da Itália, onde estudou filologia latina e grega. Desde 2002 vive em Barcelona, Espanha, onde em 2008 criou a editora A buen paso, especializada em livros infantis ilustrados. Colabora com revistas especializadas e participa regularmente de conferências e debates. Escreve principalmente para crianças (Em casa de meus avós, Ekare, 2011; Martin, grumete a capitan, Thule, 2013; Um mar de mundos, Thule, 2014). Mas também publicou um livro de poesia para adultos (Invierno de Abril, Edicions SD, 2013) e um ensaio (En el labirinto de la palavra, um guia de viagem, Pantalia, 2014).

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