Ter um corpo, ter um sexo, ter os dois: o caso político de Todos nus [Tous à poil]!

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Talvez por ingenuidade ou um certo otimismo, ainda possível na época, este texto de 2014 tinha sido considerado muito datado pelos editores no momento de fazer o novo site da Emília. E não é que a realidade nos surpreende sempre? Nada mais atual do que a discussão da nudez e da infância, um dos temas que não saem da pauta conservadora. Anna Castagnoli retoma esta questão a partir de um evento ocorrido na França nesse mesmo ano de 2014. Um texto decisivo e atual que aqui recuperamos. As semelhanças, infelizmente, não são mera coincidência!
Os editores


Foto de Guido Castagnoli

O fato

Jean-François Copé, político francês, em busca do consenso do eleitorado de direita, no dia 9 de fevereiro de 2013, durante uma transmissão ao vivo (ver aqui), horrorizado diante de um livro ilustrado para crianças intitulado Todos nus! [Tous à poil!], exigiu que o mesmo fosse retirado das estantes das escolas. O livro fazia parte de uma lista de livros sugeridos às escolas primárias por uma associação que trabalha por uma educação pela paridade de gêneros. O pavio, já aceso pelo debate sobre o valor do programa ABCD de l’égalité (ABCD da igualdade), explodiu.


Claire Franek e Marc Daniau, Tous à poil! Edições Le Rouergue, França

O ABC da Igualdade é um programa experimental, sustentado pelo Governo Francês, que visa combater os estereótipos de gênero nas escolas; programa que, desde o início de 2013, vem sendo implementado em 600 classes piloto. De acordo com o texto do programa: “Transmitir os valores de igualdade e respeito entre meninas e meninos, homens e mulheres, é uma das missões essenciais da escola, base da possível realização de todos os alunos, garotas e rapazes”.


Tommy Hammarsten

O projeto foi atacado de um modo tão virulento e confuso que, durante dias, alguns pais não mandaram as crianças à escola, convencidos que o que se pretendia era propor uma “mudança de sexo” aos alunos (!). Na Itália, recentemente, aconteceram episódios similares:

Leggere senza stereotipi”, projeto promovido nas escolas da região de Veneza por Camilla Seibezzi, delegada dos Direitos Civis da prefeitura de Veneza – que propôs, às escolas infantis, uma lista de livros para promover o respeito à diversidade – foi ferozmente atacado pela UDC. Para se ter um resumo da situação, vale ler o artigo Sobre as 49 ditas histórias gay de Marnie Campagnaro. Ou então os folhetos do Instituto Beck para as creches e escolas infantis, promovidos pela UNAR, que na região Umbria levaram alguns pais a ameaçar de tirar os filhos da escola.

Os temas que estes processos põem em evidência são diferentes e complexos: vão da necessária educação pelo respeito por todos os seres humanos, independentemente de sua orientação política, religiosa, sexual (“ABCD” e “Leggere senza stereotipi” me parecem caminhar nesta direção), ao desejo de mostrar um corpo menos estereotipado (“Tous à poil!”), até à tentativa de educar pela aceitação de diversas orientações sexuais e às diferenças entre identidade biológica e identidade de gênero.


Claire Franek e Marc Daniau, Tous à poil! Edições Le Rouergue, França

Copé acusou Tous à poil! de promover uma deseducação sobre o respeito à autoridade e, inclusive, de instigar à pedofilia (?). Editado em 2011 pela editora Le Rouergue, o livro mostra muitas pessoas de sexo, idade e profissões diferentes (entre eles a professora, o policial, a baby-sister…) enquanto tiram suas roupas com alegria, mostrando sem inibição como é feito o corpo.

Os dois autores do livro explicaram a Le Figaro a intenção de seu projeto:

“Temos quatro filhos e nos questionamos sobre a questão do corpo. As crianças são circundadas de imagens de corpos mais ou menos nus: na publicidade, nos ônibus, nas capas das revistas. Estas imagens são geralmente maquiadas, retocadas, modificadas pela cirurgia estética ou pelo Photoshop. Quisemos então propor um olhar mais honesto sobre o corpo. Mostrando pessoas que fazem parte do ambiente e do imaginário das crianças. E, principalmente, o fizemos com humor”.

Na foto abaixo, os dois autores em uma fotografia provocativa dirigida a Copé.


Os autores de Tous à poil! Claire Franek e Marc Daniau Crediti, foto Rémy Artiges, Libération

Para defender o livro e a liberdade de expressão, a equipe da editoria do livro infantil da editora francesa se insurgiu contra Jean-François Copé (e junto com ele, contra o Ministro da Educação e vários outros ministros e políticos): publicando mensagens, manifestos e campanhas de diversos tipos. Como a da foto abaixo, onde 14 profissionais (editores e livreiros) despiram-se usando os livros ilustrados como folhas de parreira. Está no link, menos irônico, e é o cartaz dos autores e ilustradores: La litterature jeunesse attaquée.


14 profissionais da região francesa Nord-Pas-de-Calais, em uma campanha para apoiar a liberdade de expressão nos álbuns ilustrados

 

Muitíssimos ilustradores, em protesto, ilustraram novamente clássicos da literatura infantojuvenil totalmente nus. É possível acompanhar este e outros protestos a favor de Tous à poil! na página do Facebook dedicada ao livro.


Claude Ponti, Tous à poil!

Um outro grupo de pais ilustradores, em contrapartida, lançou um projeto paradoxal: todo o governo nu!

Esta era a provocação: os ministros e os políticos que acusam JF Copé de ter-se ridicularizado querendo censurar um livro para crianças têm mesmo certeza de que é possível tirar a roupa de todo mundo?

E se fossem eles que aparecessem nus em um livro, ainda achariam divertido? Então, parodiando o livro, estes pais ilustradores despiram os ministros. Em suma, temos a França inteira de calcinhas ou cuecas (ou sem nada).

A pergunta que estes pais ilustradores levantaram é: afinal, não existem mesmo limites? Pode-se mesmo brincar com qualquer coisa, instituições, valores, sob o pretexto de que um livro seja divertido e inocente?

Na ilustração abaixo, vemos a ministra francesa das Relações Públicas… despindo-se. (Na realidade, existe um erro de fundo nesta provocação: despir uma instituição – a professora, o policial – não é o mesmo que despir uma pessoa com nome e sobrenome).


Uma paródia do livro Tous à poil com uma ministra francesa

Não me interessa, aqui, discutir os contextos políticos dos processos, nem das teorias sobre gênero. Queria tentar dar um passo para trás e refletir por que justamente os livros infantis se encontram no centro desta e de outras batalhas. Para isso, penso que Tous à poil! seja uma escolha (talvez sem que Copé saiba) perfeita.

O sentido da nudez

O livro condenado por Copé é instigante para mim porque revela claramente que existem dois corpos: um público e um privado. O corpo público é um corpo vestido. Vestido de estereótipos, modas, estilos, comportamentos, regras, que prestam contas com uma dada sociedade em um dado momento histórico (além de com uma classe social, um grupo religioso etc.). O corpo privado, ao contrário, é um corpo despido, íntimo como o relacionamento que cada um estabelece com o próprio ego, sentido como peculiar, irrepetível, pessoal e diverso de todos os outros. Seria interessante traçar uma História da humanidade através do relacionamento que estes dois corpos têm mantido entre si. Em muitos países a distinção é muito sutil, como por exemplo no Japão.


Edgar Degas, Cretenses contra espartanos

A França é, por tradição, uma nação onde a separação entre corpo público e corpo privado é muito rígida. Todo um protocolo de regras e etiquetas sociais determina, mais rigidamente que em outros países, como é preciso se comportar em público. Na Espanha, como em outros países mediterrâneos, a separação é menos rígida. Para dar um exemplo, até pouco tempo atrás, na Catalunha, era legal sair nu pelas ruas de uma cidade. O senhor aqui embaixo, de cuecas e todo tatuado, era visto com frequência pelas ruas de Barcelona. No inverno usava meias.

Simbolicamente, um ser humano nu é um ser despido de tudo aquilo que de mais humano possuímos: isto é, a cultura. Nus estão os animais. Nus estão os anjos quando caem na terra porque Deus os mandou para ver um pouco o que significa ser homens (O que faz viver os homens, Tolstói). Nus estão os primitivos e a sua nudez, na perspectiva dos colonizadores, é sinal de barbárie e incivilidade. Nus estão os fiéis e os santos quando se liberam do inútil peso de uma dada cultura e tradição (vestes, ornamentos, joias, símbolos). Nus estavam, por excelência, Adão e Eva, antes que o fruto do conhecimento lhes trouxesse o sentimento de vergonha.


Colonizadores espanhóis na América


Giotto, São Francisco de Assis se despe diante do Papa

A nudez é também um símbolo de verdade. É a criança que grita “O rei está nu!” no belo conto de Andersen. Despir-se, significa, metaforicamente, reduzir-se à própria verdade última. Ser desmascarado. O corpo público e o privado coincidem quando se está dentro de uma representação artística. (Toda a arte é um grande, poderoso, objeto transacional winnicotiano, que se coloca a meio caminho entre a sociedade e o olhar de um dado indivíduo). Mas também na arte, a nudez é submetida (mas não em todas as culturas) a determinadas condições, ditadas pela Lei ou pelas tradições. A origem do mundo, de Coubert, causou escândalo por um close tão inusual.


Giorgione


Gustave Courbet, L’origine du monde, 1866

As crianças, nas representações artísticas, com frequência estão nuas, mesmo quando têm ao lado adultos vestidos. Assim estão também as garotas e as adolescentes da puberdade. A equação inocência-nudez é um tópos da História da Arte.


Caravaggio

É longuíssima a lista de símbolos e significados que a nudez vem adotando através dos tempos. Mas para resumir poderíamos dizer que nu, em sociedade, não se pode estar. Os dois corpos, público e privado, dificilmente estão juntos. Quando despir-se é permitido, é dentro de limites bem precisos (uma lei ou um uso que o permite em um lugar e um tempo dados: um ritual, um banheiro público, uma praia, uma publicidade, um quadro, o círculo restrito da família ou de um casal). Fora deste recinto, a nudez é sempre uma provocação.

Para retomar a imagem inicial dos dois corpos, é como se, fora das margens em que a nudez é legitimada, o corpo privado provocasse o público só com o fato de existir. O sujeito se coloca, só ele, com a sua forma precisa e irrepetível, diante do conjunto de normas que regulam e punem o corpo público, e sublinha o conflito (mais ou menos grande). Para tomar como exemplo o nosso Tous à poil!, o mágico nu não é tão provocativo como é a ministra nua. Porque o corpo público da ministra é muito público, portanto o conflito com o seu corpo privado é maior.

A nudez do corpo privado, com a sua forma irrepetível, basta sozinha para colocar em discussão um sistema. A revolução de 1968, nesse sentido, foi exemplar. Junto com as roupas se liberava dos hábitos de uma sociedade inteira.


Uma ativista do movimento Femenista

Não creio que o componente sensual ou sexual tenha muito a ver com a provocação do corpo nu (para não dizer que a unicidade do indivíduo é exatamente em função da sensualidade e portanto da sedução). As fotografias dos judeus nus nos campos nazistas não são obscenas porque aqueles corpos estão nus: sexuados, ou sensuais; mas porque naquela nudez podemos ler a unicidade e a fragilidade de uma pessoa singular, a sua irrepetibilidade na história. Não é um equívoco, não obstante a magreza dos corpos: cada uma daquelas pessoas não pode ser trocada por uma outra. Cada um daqueles corpos é o sinal de uma unidade absoluta. E é exatamente contra esta unicidade que se abate o peso esmagador dos totalitarismos.


Forte como um urso, de Katrin Stangl, Topipittori: um dos livros que a Udc gostaria de banir das escolas venezianas

Ora, as crianças são, pela sua nudez, a sua inexperiência, a sua juventude, o quanto mais provocativo se pode ser para o corpo público. Um recém-nascido possui a maior distância possível entre corpo privado e corpo público. O pouco que tem de seu, é só seu. Daquele momento em diante a sua peculiaridade se medirá, misturará, confrontará com o corpo público: um percurso necessário que dará forma à sua especificidade de pessoa e cidadão.


Journée de Roger, de M. Vanasek, 1925

Séculos atrás, quando todo um povo precisava ser educado aos novos ditames da classe burguesa, as crianças, seus modos, sua incivilidade, eram com frequência comparados ao povo, ou então, depois das expansões coloniais, aos selvagens (leia, a propósito, o brilhante: A criança estranha, o nascimento da imagem de infância no mundo burguês). Os Irmãos Grimm reescreveram seus conto cinco vezes, adaptando-os a cada vez à evolução lenta e radical que viu mudar, no arco de poucos decênios, o relacionamento entre adultos e crianças na Europa. A Infância não é algo a priori, nem dado: precisa ser inventada. Dito de outro modo, o corpo da criança, sendo o mais nu dos corpos, é também aquele que tem maior necessidade de ser vestido.


In the night of kitchen, Maurice Sendak

O menino nu de In the night kitchen, de Sendak, de 1970 (que fica nu no a livro todo) é uma criança que se rebela contra o destino cultural de tornar-se logo um bom burguês educado: reivindica uma nudez que é símbolo de imaginação, originalidade, irredutível especificidade. Mas não creiam que não seja, mesmo aquela infância livre e sem preconceitos, uma invenção adulta. Não tem saída. “As crianças”, no plural, não existem. Cada vez que você escutar falar de crianças no plural, estará escutando falar de corpo público. O corpo privado é sempre um, único, irredutível a um sistema de pensamento. É uma experiência que só pode ser conhecida na sua verdade pelo sujeito que a vive.


Cartaz contra a censura, em uma livraria americana

As sociedades e os sistemas de pensamento mudam, mais ou menos lentamente. A Infância, desde quando se constitui como categoria social, é o terreno mais fértil onde plantar novas ideias ou confirmar velhas teorias. Os álbuns ilustrados veiculam essas mudanças. Não são nunca inocentes. Isto não significa que devam ser censurados. A cultura é o único campo, além do da brincadeira, onde corpo privado e público podem encontrar-se, desentender-se, falar um com o outro, modelar-se respectivamente sem se machucar seriamente (em Jogo e Realidade, Donald Winnicott escreve que o objeto transicional, a brincadeira e a cultura realizam, em certo sentido, a mesma função). A falta (ou a interdição) deste exercício de confronto gera solidão e pobreza de pensamento no corpo privado, e modelos totalitários no corpo público. As duas coisas vão geralmente juntas.

Isto é o que penso. E sobre o tema de gêneros, que hoje desencadeia debates muito complexos, como aqueles sobre a identidade sexual, sobre a educação cívica nas escolas, sobre o matrimônio e a paternidade homossexual, penso que, além de modos e costumes de uma época, o elemento fundamental para se compreender uma sociedade é o modo como é respeitado, ouvido, e não tripudiado, o corpo privado.1Texto publicado originalmente no blog Le figuri dei libri, em 24 de fevereiro de 2014.


Do filme Tomboy

Tradução Claudia Souza

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  • Anna Castagnoli

    Depois de fazer mestrado em filosofia e letras, encontrou no livro ilustrado um universo capaz de resumir todas as suas paixões: a arte, a literatura, a psicanálise da infância, a filosofia. Autora e ilustradora, faz quatro anos que se dedica ao estudo dos mecanismos do livro ilustrado no seu blog. Também colabora como crítica em diversas revistas internacionais. Nascida na França, de nacionalidade italiana, vive atualmente na Espanha. É ilustradora de vários livros e do Manuale dell Illustratore. É autora do blog http://www.lefiguredeilibri.com/.

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