Trânsitos, aproximações e deslocamentos:

Post Author

Quais as conexões, aproximações e diferenças entre o que compreendemos ser um livro e um livro para criança? Ou entre um livro para criança e um livro de artista; ou então entre um livro de literatura e um livro de arte, ou até entre um livro-objeto ou um objeto-livro?

São denominações que territorializam campos distintos de atividades e funções, mesmo todos referentes a livros; e que, por vezes, transformem esses campos em âncoras legendadas, isolando experiências e conceitos. Porém, outras vezes, localizam especificidades e singularidades que podem, ou não, provocar encontros e intersecções entre si.

Todos os livros, em última instância, mixam palavras e imagens – sejam livros funcionais, sejam livros técnicos, científicos, sejam livros de arte, sejam livros de artista, sejam livros infanto-juvenis. O que os diferencia é como essas relações acontecem dentro do livro e, assim, encaminhando cada livro para funções e significados tão distintos.

Chapeuzinho vermelho
Chapeuzinho vermelho, de Warja Lavater.

Me interessa focar, neste pequeno texto, as possíveis e necessárias intersecções entre o livro infanto-juvenil e o livro de artista, para que possamos refletir e ampliar os conceitos do que significa, hoje, ser ilustrador de/para livros infanto-juvenis, dentro do panorama contemporâneo. Se ampliarmos esses campos de produção específicos, podemos vislumbrar qualidades e potências poéticas em comum entre livro infanto-juvenil e livro de artista, quando o livro infanto-juvenil aporta o ilustrador em sua dimensão autoral.

Estes pequenos deslizes do pensamento surgiram, de forma mais animada, após a mesa redonda “A ilustração nos livros infantis e juvenis”, organizada por Dolores Prades, dentro do Simpósio “Um panorama da literatura para crianças e jovens”, que aconteceu na Universidade do Livro, na qual tive a honra de participar junto com os artistas-ilustradores que tanto admiro, Odilon Moraes e Laura Teixeira. Naquele breve encontro pudemos trocar muitas ideias e experiências no que toca ao arco extenso de como acontece a ilustração nos livros infantis e juvenis, quais os sentidos e direções do que significa ser hoje um ilustrador, dentro da paisagem contemporânea. Afinal, o que é pensar um livro para criança, hoje?

Constatamos a recorrência, na produção recente de livros infanto-juvenis, em como o desenrolar da narrativa se apresenta totalmente conectada com a sintaxe e a estrutura do objeto livro em si, o que implica pensarmos nas relações entre a palavra e a imagem e como estas incorporam, ou de fato acontecem através da arquitetura física do livro, porém sem este deixar de ser códice, isto é, sem o livro abandonar sua aparência física de livro, cuja sequência é dada através de uma página atrás da outra.

E o que significam essas considerações dentro da produção recente de livros infantos-juvenis? Vejam que, neste texto, nem estou me referindo à “literatura infanto-juvenil”, pois aqui, o que está em primeiro plano é o objeto livro como o lugar, por excelência, onde as palavras e as imagem desembarcam e aportam suas poéticas, tanto literárias quanto visuais e como estas podem acontecer na concepção e produção de livros infanto-juvenis, com o intuito de potencializar a sensibilidade e inteligência das crianças e adolescentes na apreensão do livro como um corpo poético e metalinguístico.

Talvez agora seja o momento de delinearmos algumas possíveis e necessárias intersecções entre o universo das artes plásticas e o universo da ilustração, já que o próprio conceito de livro aqui se coloca em jogo, enquanto forma e função, enquanto potência poética.

Menino avó
Cena de rua, de Angela Lago, editora RHJ.

Constato, através de minhas próprias experiências como artista plástica, que, por vezes, transita no universo do livro infanto-juvenil, que as produções e preocupações recentes dos autores que se dedicam ao universo infanto-juvenil se aproximam muito das pesquisas na arte contemporânea, quando esta também contempla o livro como forma e espaço poético, e que denominamos como gênero artístico – o livro de artista.

Dito isto, iniciamos um percurso por um lugar com muitas e muitas camadas de reflexões que não cabem, aqui, serem desvendadas, porém cumprem o sentido de sinalizarmos algumas direções. Quais seriam, então, as aproximações, diferenças e intersecções entre livro de artista e livro infanto-juvenil? A compreensão do objeto livro na concepção e produção do livro infanto-juvenil, como forma poética, como o lugar que recebe palavras e imagens que, de alguma maneira, ressignificam o próprio suporte e se tornam, eles mesmos, o passaporte da narrativa, ressignificando e atualizando igualmente o papel do ilustrador, é um diferencial.

Neste momento do texto, torna-se fundamental voltarmos à etimologia da própria palavra “ilustração”, utilizada para designar uma atividade que, a meu ver, atualmente se expande para fora da função tradicional do que se compreende usualmente como ilustrador, se essa compreensão estiver resignada à função original que a palavra aponta… Consultando o dicionário encontro para a palavra “ilustração” os sinônimos: “ilustrar por meio de explicações; esclarecimento; comentário; adorno; elucidação de texto por meio de estampa, imagem que acompanha um texto”, entre outras tantas definições similares. Dentro de nossa herança neoclássica francesa, o ilustrador seria aquele que, através de imagens, explica, demonstra, torna compreensível, esclarece, traduz o texto, ou seja, a imagem está totalmente subordinada ao texto, ora legendando o texto, ora sendo legendada pelo texto, isto é, imagem sem autonomia, sem crise, sem pingue-pongue entre a palavra e a imagem, um traduzindo o outro literalmente, sem outros sentidos a não ser aquele que o texto designa, sem a chance de convidar tanto o leitor a ser co-autor quanto a leitura ser um fato aberto, um acontecimento!

Agua de pegar-laura teixeira
Livro Água de pegar, de Laura Teixeira, Jujuba Editora.

A compreensão do papel do ilustrador, visto sob este prisma, torna-se totalmente reduzida, principalmente quando nos colocamos diante da ideia do livro infanto-juvenil visto como objeto poético – quando o livro em si possui autonomia de linguagem, evocando histórias cuja narrativa é absolutamente estruturada e conectada à própria forma e sentido do livro em sua materialidade objetal. Se considerarmos que o livro infanto-juvenil também dispara essas possiblidades, livrando-se do livro funcional – aquele que “suporta” palavras e imagens desgarradas do significante –, a concepção de ilustrador também é totalmente revisitada e ressignificada, expandindo o papel do ilustrador como autor-transcriador, e não apenas como um mediador-tradutor. O livro se torna livre! Do “sujeito que esclarece e demonstra”, dentro do prisma iluminista, ao “sujeito-propositor”, dentro da ótica contemporânea, o ilustrador conquista uma dimensão autoral e criadora que se equivale ao autor de textos. Assim o livro infanto-juvenil acontece através de parcerias nunca antes experimentadas! E as parcerias são realizadas num circuito que vai do “autor de textos” ao “autor de imagens”, passando por uma equipe que inclui o designer e o prórpio editor que conjuga os olhares de maneira que o resultado final seja a expressão desses trânsitos. Cada vez mais menos dá para ignorar esses trânsitos como elementos constitutivos na produção de um livro.

O limite entre o “autor de imagens” e o designer também torna-se um limite cada vez mais tênue e sutil, pois a compreensão das relações entre imagem x texto, dentro de um livro, onde todos os elementos gráficos e materiais são propositores estruturantes da narrativa, da história que está sendo contada, seria impossível ignorar a maneira como o texto vai pousar no espaço do papel, pois o próprio texto torna-se imagem também. Torna-se cada vez mais difícil e delicada a separação e definição dos limites entre o designer e o ilustrador, entre o artista plástico e o artista visual. Talvez seja mais enriquecedor pensarmos nos trânsitos entre esses campos específicos e singulares do que nos determos em definições que territorializem de forma definitiva, essas conjugações.

Noite escura
Noite escura, de Bruno Munari, editora Cosac Naify.

Sara Lee
Livros de Susy Lee: Onda, Espelho e Sombra, editora Cosac Naify.

De todo modo é cada vez mais recorrente compreendermos o ilustrador como “autor de imagens”, aquele que divide autoria com o “autor de textos”, tornando-se pares indissociáveis. Impossível, hoje, pensarmos no livro infanto-juvenil, quando este se coloca como objeto poético, sem pensarmos no ilustrador como artista autoral!

Agradecimentos a Laura Teixeira.

Compartilhe

Post Author

Autor

  • Edith Derdyk

    Artista, educadora, ilustradora e escritora - tem realizado exposições coletivas e individuais desde 1981 no Brasil (ITO,MASP,MAM,MAC,Paço Imperial e outras instituições)e no exterior(México,EUA,Alemanha,Dinamarca,Colômbia,Espanha, França).Contemplada com prêmios, residências e bolsas, entre estes PROAC_Poesia; Prêmio Funarte Artes Visuais;Prêmio Revelação Fotografia Porto Seguros;Bolsa Vitae de Artes; APCA; The Rockefeller Foundation_Bellagio Center,Itália, acaba de receber o título de Doctora Honoris Causa pelo 17,Instituto de Estudios Criticos, México. Para conhecer a obra e os livros da artista: http://cargocollective.com/edithderdyk ; http://issuu.com/otticaart/docs/ottica_art_magazine__out-nov

Artigos Relacionados

As tecnologias nos contos de fadas

Ter um corpo, ter um sexo, ter os dois: o caso político de Todos nus [Tous à poil]!

A polêmica história de Eredegalda

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *