Uma biblioteca na primeira infância

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Vários são os fatores responsáveis pelo crescimento do segmento de mercado dedicado a livros para bebês: o reconhecimento cada vez mais significativo, em alguns setores da sociedade, da importância da leitura para o futuro desempenho escolar das crianças; as campanhas em torno da importância da leitura e de sua democratização, assim como do acesso ao livro, em processo há várias décadas, tanto por parte da sociedade civil como do Estado e a aposta e o investimento num dos segmentos de mercado de consumo em amplo crescimento – o da primeira infância.

Feitas essas considerações, é sempre bom lembrar, como diz Evélio Cabrejo-Parra, um dos maiores especialistas em leitura na primeira infância, que a importância desta prática não deve corresponder apenas à “angústia escolar” que podem sentir alguns pais preocupados, desde muito cedo, com o processo de alfabetização e com o desempenho escolar futuro dos filhos e filhas. A leitura na primeira infância é uma das necessidades básicas fundamentais que deve ser suprida, mesmo antes do nascimento, e corresponde a uma já comprovada competência deste ser em formação.

Isto nos coloca, de cara, em outro patamar, pois a leitura aqui deve ser entendida como alimento, como matéria-prima para as necessidades psíquicas que, como todas as demais necessidades básicas, devem ser cuidadas, sejam elas físicas ou emocionais. A importância da palavra, a importância da voz materna (que tem na leitura uma de suas formas de transmissão) desde o período de gestação e durante os primeiros meses de vida, desempenham um papel determinante na formação na primeira infância. A palavra é a porta de entrada para uma dada cultura, ela introduz a linguagem, ela educa para uma determinada musicalidade e para um ritmo específico que vai marcar e acompanhar por toda a vida essa criança.

É por isso que, em todas as culturas, há cantigas de ninar, contos populares, acalantos, contos da tradição oral que passam de geração para geração e conduzem, transmitem e preservam, como por um fio, uma dada cultura e suas tradições. São, sem dúvida, estes os mais antigos e poderosos relatos e “leituras” que reforçam e alimentam os laços de afeto e a estrutura psíquica e emocional dos pequenos seres em formação. Daí, a força e o legado da tradição oral e da importância de recuperar as velhas práticas, a sabedoria das cantigas e dos contos populares perdidos na estrutura familiar da contemporaneidade.

Nesse sentido, é fundamental não perder de vista, na hora de pensar em livros para a primeira infância, algumas questões: primeiro, a importância das narrativas; a voz, a palavra do adulto, na forma de conversa, de acarinhamento com o bebê, na forma de musicalidade, de brincadeira, de narração, da leitura compartilhada que permite novas e sofisticadas experiências com a linguagem (pensemos na poesia, nos trava-línguas….). E aqui, não há receita, no limite, como diz Evélio mais uma vez, pode ser lido tudo, pode ser dito tudo, pois o que vale é a sensibilidade e o repertório do adulto, dados pelo seu histórico e pelo laço e o contato que se estreita entre ele e o bebê, acima de tudo. Amor, cumplicidade e familiaridade são os sentimentos que alimentam, perpassam e se constroem nesta relação mediada pelas palavras.

Segundo, é o processo de familiarização da criança com o livro enquanto objeto. Mais uma vez, não há receita. Podem ser livros com ilustrações, com fotos, livros com texto nos quais, nas palavras de Yolanda Reyes, outra grande especialista no assunto, as letras, esses símbolos estranhos, que aos olhos de uma criança, devem parecer formiguinhas que, uma atrás outra, caminham e formam um encadeamento quase infinito. Pensando na complexidade ou simplicidade do tema, do que se narra e do que se lê, isso depende exclusivamente do adulto, de sua escolha como responsável pela mediação entre o leitor e o livro. Qualquer história pode ser contada e compartilhada. E aí entra o seu papel e sua capacidade de escolher, adaptar, explicar, contar, inventar. Quanto mais rica for a história leitora e o repertorio desse adulto, mais desembaraço, segurança e criatividade ele terá na escolha, transmissão e no contato mediado pela palavra com o bebê.

Terceiro, são os livros que começam a pipocar no mercado para bebês. Até certo ponto “novos” no nosso mercado, no que se refere à diversidade da oferta, mas uma velha tradição em muitos países. Normalmente são livros que exigem uma produção mais sofisticada, ou pelo papel cartão, ou pelas facas e recortes, ou pelas texturas, ou pelo produto do qual é feito etc. Tudo isto tem um custo e exige um parque gráfico que, para que muitos destes produtos sejam viáveis comercialmente, devem ser fabricados em países como a China e Singapura.

É todo um mundo constituído por uma grande variedade de produtos, desde os chamados livros-brinquedo, livros de plástico, livros de encaixes, livros com sons, pop-ups, com as bordas redondas mais simples etc. Os livros de imagens e a predisposição de compartilhamento que ele propicia entre o adulto e a criança. Todos carregados de estímulos para despertar os sentidos e a atenção dos bebês, para distraí-los, para apresentar diferentes mundos, sejam estes o das cores, dos animais, dos brinquedos. Este mercado se abre e se amplia de acordo com o interesse cada vez maior na primeira infância. E sem dúvida, pela inclusão deste segmento nas compras governamentais.

Evidentemente, o manuseio do objeto livro desde a primeira infância é um aprendizado e uma entrada para o mundo do livro. Afinal ler exige pré requisitos importantes como a educação do olhar (da leitura) até o virar das páginas em uma dada direção de acordo com uma dada cultura. Ampliar as ofertas de livros para montar uma “primeira biblioteca”, incorporar o objeto livro ao mundo cotidiano dos bebês e das crianças é, sem duvida, um passo muito importante para o processo de familiarização com o universo do livro e da leitura.

Mais uma vez, não há receitas. E nada como pais e família leitora para ser modelo, exemplo para possíveis leitores no futuro. O livro para bebês é um estímulo importante, mas não substitui a importância da voz do adulto, da palavra e da narrativa. Ou, nas palavras de Yolanda Reyes, referindo-se à leitura na primeira infância: “são a voz e o rosto humano, onde ele [o bebê] aprende a base verbal e não verbal da interação social sobre a qual se construirá paulatinamente uma infinidade de leituras. E o fato é que no fundo ler é se ver’ no outro e recorrer a estruturas visíveis para ‘lidar’ com o invisível.”1Yolanda Reyes, A casa imaginaria – Leitura e literatura na primeira infância. São Paulo: Global, 2010.


Imagem: Ilustração de Paloma Valdívia.


Nota

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    Yolanda Reyes, A casa imaginaria – Leitura e literatura na primeira infância. São Paulo: Global, 2010.

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  • Dolores Prades

    Fundadora, diretora e publisher da Emília. Doutora em História Econômica pela USP e especialista em literatura infantil e juvenil pela Universidade Autônoma de Barcelona; diretora do Instituto Emília e do Laboratório Emília de Formação. Foi curadora e coordenadora dos seminários Conversas ao Pé da Página (2011 a 2015); coordenadora no Brasil da Cátedra Latinoamericana y Caribeña de Lectura y Escritura; professora convidada do Máster da Universidade Autônoma de Barcelona; curadora da FLUPP Parque (2014 e 2105). Membro do júri do Prêmio Hans Christian Andersen 2016, do Bologna Children Award 2016 e do Chen Bochui Children’s Literature Award, 2019. É consultora da Feira de Bolonha para a América Latina desde 2018 e atua na área de consultoria editorial e de temas sobre leitura e formação de leitores.

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5 respostas

  1. Gostei muito das orientações de como pensar nos títulos e nas narrativas que iremos disponibilizar para nossas crianças, Nesse sentido, é fundamental pensar em livros para a primeira infância, na forma de conversa, na forma da leitura compartilhada que permite novas e sofisticadas experiências com a linguagem.

  2. Percebi que muito além ler ou proporcionar o contato com os livros, em primeiro lugar está a conexão, o vínculo entre o bebê e seus pais ou adultos resposáveis.

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