Uma íntima confissão

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Querido leitor,

Certamente não será a primeira vez, e tampouco a última, que você se depara com uma reflexão sobre a literatura, o valor das palavras e a importância dos livros. Não pretendo com esta reflexão fazer um manifesto nem uma conclamação sobre o tema da leitura. Este texto está mais – pelo menos é com essa vocação que ele nasce – para uma confidência a um colega; uma confissão que, sinto, não posso compartilhar com quem não tenha ingressado nesse jardim secreto que é o gosto pela ficção literária, de cuja porta ninguém possui a chave que libera sua fechadura. E tem mais, diria até que nem sequer sabemos com certeza onde essa porta se encontra, já que não é a mesma, nem do mesmo tamanho para cada um que, em algum momento da vida, a atravessa, vindo por um desfiladeiro difícil de localizar, pois somente a ele pertence, um itinerário singular que o caracteriza e define como leitor, e desconhece a maneira exata por onde passou. Por isso, estimado amigo, as referências que encontrará aqui não pretendem ser universais. São, apenas, as minhas. Digo isso com humildade, mas com a convicção, dada pelo sentimento, de que é assim. E não cabe possível especulação de que pudesse ser de outra maneira. Mesmo as citações serão trazidas pela memória e não por seu cotejo fiel e rigoroso. Citações, pelo menos para mim, inevitáveis, pois sempre alguém, antes, expressou melhor uma ideia ou pensamento, o que, citando já Leonardo Da Vinci, dará a ideia de que o que me caracteriza não é a inteligência, mas a memória.

Provavelmente deveria dizer não somente “querido leitor”, mas também “querida leitora”. Conto com a indulgência de vocês, mulheres, com a esperança de que se sintam incluídas em minha confidência apesar de minha incorreção política.

Uma última consideração prévia: por favor, não interpretem as referências pessoais como narcisismo. Tampouco nascem de uma atitude complacente, nada mais distante. São apenas o relato íntimo e sincero de constatações pessoais, do previamente intuído no trajeto desse caminho, feito a tropeços que é o aprendizado do leitor que vamos sendo a cada momento, e que nunca termina de se realizar. São as provas subjetivas que mostram a cada um que o que pensa e o que sente, sobre o tema que nos ocupa, a leitura, para ele foi e é assim, de uma maneira determinada, pois foi em alguns textos concretos onde se “encontrou “, e não em outros, e são eles os que abonam seu olhar moral sobre a vida. Aqueles sinais que teve e que vão se confirmando, ou modificando, nas sucessivas leituras que lhe configuram como indivíduo ontológico, em primeira instância, e depois como individuo histórico.

Tenho para mim que para dar conta de ler a vida existem dois caminhos: o do contato com a natureza e o da alfabetização. Ambos não são antagônicos, pelo contrário; aliás, penso que são processos que se complementam e potencializam, como dois vetores, cujo resultado final será maior quanto menor o ângulo que os separa. Parece-me que é bastante improvável que os dois ocorram de forma simultânea nesta sociedade em que vivemos. Longe de mim propagar aqui o canto do bom selvagem, mas imagino que, se todos tivéssemos tido a oportunidade de nascer e crescer num meio em contato direto com os ciclos da natureza, nossa percepção e interpretação do mundo estaria mais ajustadas à realidade e à vida. Talvez o desenvolvimento técnico e científico não apenas tenha distanciado o homem da natureza, como inclusive tenha propiciado um mundo rural onde isso já não é mais possível. Hoje em dia, penso, precisamente pelo próprio conceito de progresso definido por esta sociedade, que até os anciãos têm que ver o telejornal ao invés de olhar para o céu, para saber se vai chover. Tal situação recentemente não ocorria: nossos avós podiam ser analfabetos, mas não eram ignorantes.

De todo modo, não é um processo do qual eu possa falar com experiência, não tive uma infância rural, fui uma criança urbana que aprendeu as primeiras letras e as quatro operações em uma escola municipal de Madri (Espanha), nos anos cinquenta. Talvez por isso, como tantos, para fugir da muralha cinza daqueles anos, ingressei ainda que tardiamente (uma vez que só foi com doze anos que tal experiência se produziu), pouco a pouco no território da ficção literária. Território no qual, desde então, tenho entrado com tanta frequência, que já cheguei a duvidar, em algum momento, de qual era o que dava sentido ao outro: se a ficção à realidade ou o contrário.

E aquele primeiro ingresso não foi por meio da literatura infantil, pois esse fenômeno editorial não existia na Espanha daquela época, mas pelas edições, muitas delas mutiladas, daqueles clássicos que durante tantos anos foram o melhor pórtico do edifício canônico da literatura. Estou me referindo evidentemente a Emilio Salgari, Robert Stevenson, Júlio Verne, Conan Doyle, entre outros. Anos mais tarde, já adulto e editor de livros para crianças e jovens, voltei a ter contato com estas obras e pude reconhecer que a maneira como as li antes é uma experiência que não pode ser repetida. Talvez agora meu paladar literário tenha se afinado a ponto de me permitir saborear um texto de maneira tão resoluta, tão eficaz. Mas também sei que o passar do tempo me exilou da paixão com a qual acompanhei aqueles personagens nas suas peripécias, tratando de antecipar, em muitas ocasiões, o desenlace das encruzilhadas nas que se viam envolvidos. Aquele olhar que então nascia, mais que do desejo, da necessidade de saber, agora não existe mais; foi substituída por outra mais razoável, mais distante e mais discriminadora; adulta e definitiva.

Não sei se hoje é possível falar de literatura juvenil, mas não tenho dúvida de que existe uma leitura juvenil: uma forma de ler que tem a ver com esse momento – a adolescência – em que a vida aparece com um relevo novo, como se a primeira manhã do mundo se inaugurasse para cada um de nós naquele instante. Uma manhã que contém toda classe de tormentas, ainda que o protagonista ainda não saiba, não possa nomeá-las quando se vir imerso nelas. Uma atitude de busca, análoga à da criança nos primeiros momentos do aparecimento de um jogo.

Pensei muitas vezes que a condição do artista não é outra coisa que a permanência, na maturidade, do olhar que preside a atitude espontânea da criança diante da vida: essa necessidade de compreensão das coisas, que o jogo catalisa, e a serviço do qual se dispõem todos os sentidos. E essa atitude, a meu ver, se parece – ou se parecia – à do adolescente na sua relação com a literatura. Um adolescente, no seu assombro, acompanha o jovem Vladimir em sua paixão, no Primeiro Amor, de Turguêniev, ou nas aventuras do atrevido e orgulhoso David Balfour, no Sequestrado, de Stevenson.

Ambos os comportamentos – o jogo e a leitura – nascem da necessidade imperiosa de explicar o mundo, e estão presididos pela mesma atitude lúdica, pois ambos são uma espécie de jogo. Um jogo de tateamento e esclarecimento daqueles vislumbres que, numa idade ou noutra, se tem sobre o que se desconhece em cada momento, mas que se intui e, principalmente, necessita imperiosamente conhecer. Ambos, a criança e o adolescente, cada um com as suas ferramentas, querem descobrir para além das aparências, para além do que parece evidente. De forma análoga, o criador indaga, tateia, parece que busca, ainda que não possa buscar o que não sabe o que é. Sabe, se muito, o que não é. Do mesmo modo que a criança e o adolescente, em suas específicas indagações, o criador põe em jogo seus recursos, seus conhecimentos, levanta hipóteses, arrisca nesse jogo em que vai a vida, pois é um jogo que nasce da necessidade interior, daquela necessidade da qual, dizia Kandinsky, procedia toda obra verdadeira.

Não sei se essa atitude continuará vigente nas crianças e nos adolescentes de hoje, acossados, desde que chegam ao mundo, por múltiplas telas, através das quais tantas vezes se emitem substâncias tóxicas frente aos que estão indefensos. Também desconheço qual será a dos criadores, ainda que, às vezes, diante das obras de alguns escritores, sinta que estou diante de livros “eficazes”, no sentido que André Gide atribuía ao adjetivo quando dizia – já disse acima que faço citação de memória: Existem duas classes de autores, os escritores eficazes, aqueles que escrevem o que querem; e os verdadeiros criadores, que escrevem o que podem.

É possível que essas ferramentas de análise já não sirvam para fazer a crônica da atualidade, e que os processos de aprendizado e criação sigam outros caminhos que se bifurcam e confundem num labirinto digital, cuja avenida mais transitada se chama Google.

Talvez também tenha ficado obsoleta a relação espontânea que a criança estabelecia com o jogo na sua primeira infância, assim como a necessidade do esclarecimento das urgências próprias da adolescência que inquietavam ao jovem, e que ambas tenham sido pervertidas em grande medida por tão degradada ficção audiovisual. Mas, em todo caso, quero acreditar, preciso acreditar que este mundo continua sendo um mundo de palavras – no principio foi o verbo –, que nos distanciam do mamífero superior que também somos. Essas palavras por meio das quais nos explicamos a nos mesmos e ao mundo, e por meio das quais é possível promover o distanciamento necessário do puramente instintivo e biológico.

Se é verdade que o pensamento se estrutura em termos da linguagem, será a matéria-prima que o constitui, as palavras, que nos permite especular sobre quem somos e como é este mundo onde nós vivemos. E nossa localização nele será definida pela afirmação de Wittgenstein: Os limites do meu mundo são os limites de minha linguagem.

Do mesmo modo, também a palavra será o veículo que nos permitirá aceder aos universos da ficção literária criados pelos grandes novelistas, dramaturgos ou poetas. Espaços que transitam como uma realidade paralela à vida, e onde, como comentava antes, de vez em quando, ingressamos, para voltar ao nosso mundo e, como diz Luis Mateo Díez: poder analisá-lo com mais fundamento. Por meio desse autor compreendi o sentido na relação entre literatura e vida: não é aquela a que dá sentido a esta, mas é graças à literatura, que vivemos com maior liberdade e consciência os dias que nos tocou viver.

Pois bem, tudo isto para lhe confessar, e me desculpe as digressões, querido leitor, que meu trânsito pelo território da literatura não foi nada original, mas sim profundamente apaixonante, e não porque todas as leituras tenham tido o mesmo peso, não. Tenho, sim, que confessar que, talvez por ser uma criança da cidade, tive que apreender a ler os livros para depois ler a vida, e ainda continuo nisso. Que foram algumas obras, das quais não saí incólume, as que me modificaram como indivíduo, e me fizeram pensar sobre a condição humana. E, acredito, me facilitaram o trânsito de súdito a cidadão, e não estou falando do reconhecimento ao direito às liberdades numa sociedade democrática, como a que hoje em dia desfrutamos, apesar de algumas vozes não se acostumarem a isso e clamem por uma ordem que só existe dentro de suas cabeças. Falo do sentido filosófico da palavra liberdade: esse abismo interior que existe dentro de cada um de nós e que quando olhamos para dentro dele, tanta vertigem produz.

Sinto sinceramente que nos livros encontrei as palavras, as peripécias, os personagens, os dilemas e as encruzilhadas frente às quais tive que me definir na mais difícil das instâncias: frente a mim mesmo.

E agora, aqui – e por prazer – frente a você, querido leitor.

Tradução Dolores Prades


Imagem: Ilustração de Charlotte Gastaut.


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  • Antonio Ventura

    Nasceu em Madri, foi professor do ensino público durante 19 anos, criador da coleção Sopa de livros, da Editora Anaya, em 1997, onde foi diretor de publicações. Atualmente, é editor da Jinete Azul. Foi fundador da revista Babar (1989) e da revista Bloc (2007) e dirigiu as publicações infantis da Oxford University Press da Espanha. Tem mais de trinta livros publicados para adultos, jovens e crianças. É membro da Rede de Apoio Emília.

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