Uma mesa de luz e um céu de estrelas

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Com O leão e a estrela em mãos, a primeira coisa que se lê na luva preta que envolve a capa é: “Esta sobrecapa pode virar um céu de estrelas!”. Furando o papel, conforme as instruções, o leitor desvenda, aos poucos, o prateado da capa laminada que empresta brilho aos pontinhos, criando a impressão de um céu estrelado. O mesmo céu que o leão da história vê, diariamente, refletido no lago. Para além da história que se conta, o livro trata também daquilo que se vê e do que se pensa ver, das representações de uma realidade feita de luz e sombra. Nada mais adequado, portanto, que ilustrações criadas sobre uma mesa de luz, a partir de desenhos e recortes sobrepostos, finalizadas com fotografia.

A autora e ilustradora brasileira Mariana Zanetti apresenta, nas páginas finais do livro, todo o processo percorrido para a criação das belíssimas imagens. Neste texto final ela revela também suas inspirações: os filmes silenciosos do início do século XX, em especial, os da animadora alemã Lotte Reiniger. Além disso, cita outras referências importantes para a composição do texto: o Mito da caverna, de Platão, e um poema de Maiakovski. É possível perceber as referências citadas pela autora já na leitura das páginas introdutórias. Na segunda capa, sob fundo preto, se lê “Companhia das Letrinhas apresenta”. Nas páginas seguintes, o título e a dedicatória aparecem contornados por uma margem iluminada que continua lembrando os recursos do cinema mudo, como se estivéssemos diante da primeira tela de um filme.

A dedicatória guarda outra surpresa. “Um livro dedicado ao Leo, à Estela e à Flora”, respectivamente, filho e sobrinhas da autora. Não por acaso, os nomes continuam inspirando: “Leo”- o leão; “Estela” – a estrela; “Flora”- a floresta. As relações afetivas que estão na origem do livro, aliadas a pesquisa que acompanha o trabalho da artista, conferem coerência estética a obra. Em entrevista ao Jornal Rascunho, Mariana, que atualmente vive em Berlim, fala um pouco sobre isso: “Quando comecei as experiências com a mesa de luz vi que estava no caminho certo, porque havia achado um conceito visual para o livro, já que a luz tinha um peso na história.” Forma e conteúdo estão indissociados, possibilitando leituras em diferentes níveis, como confirma a autora, ainda na mesma entrevista: “O que eu tento é respeitar a capacidade enorme de observação, imaginação, criação e aprendizagem da criança: não oferecendo um texto fechado, uma ilustração explicativa, um livro que só traz algumas informações e uma moral a ser ensinada. Não sei se tenho conseguido, mas busco fazer livros que dêem espaço para as crianças descobrirem coisas não apenas na primeira leitura, mas na segunda, na terceira, e espero que em cada vez que os abrirem.1“Um livro a ser completado”. Entrevista de Mariana Zanetti a Yasmin Taketani. Jornal Rascunho.

Dentre tantas leituras possíveis, uma é, sem dúvida, a relação entre texto e imagem, incluindo projeto gráfico. Vale ressaltar que o resultado da edição torna as páginas mais escuras do que se faz necessário e, embora não comprometa a visualização das imagens, de alguma forma deixa de valorizar a sutileza da luminosidade que as compõem.

Na capa, a imagem espelhada de um leão cabisbaixo é acompanhada pelo logo da editora, também espelhado. Fundo prata e impressão em preto indicam o jogo de sombra e luz que seguirá ao longo do livro. A primeira dupla de páginas é colorida, com predomínio de tons escuros. Vê-se apenas os olhos miúdos e amedrontados do leão. A partir daí, haverá sempre um par de páginas coloridas e ilustradas, seguido de um par em fundo preto, com bordas e texto iluminados em branco, sem ilustração. Uma alternância que distribui igualmente a importância do verbal e do não-verbal na construção de um significado para o que se lê/vê e também para o que não se diz/não se vê.

O leão protagonista é incomum: não vive em bando e mora numa caverna porque tem medo da claridade, e não do escuro. Medo da luz e não da sombra. As imagens ressaltam a beleza e a grandeza da floresta em contraste com a pequenez do leão, mesmo sendo leão.

É à noite que ele sai da caverna e se dirige ao lago, onde contempla as estrelas. Não as do céu, mas as que vê refletidas na água. Como são reflexo em superfície móvel, as estrelas desaparecem frequentemente aos olhos do leão, que se irrita com essa inconstância, própria dos seres de luz quando dançam em espelho d’água. As ilustrações narram esse momento passando de papel liso fotografado sobre a mesa de luz, a papel amassado, turvo como o ondular do lago. O leão segue sua rotina quase como um reflexo do próprio lago – mantém-se calmo, se as águas estão calmas. Mas as águas não permanecem tranquilas por muito tempo e a fragilidade dos espelhos logo se apresenta ao leão. Certo dia, ele vê uma estrela nova refletida no lago de sempre. As ilustrações mostram que a estrela nova é, “na verdade”, um ponto de luz refletido nas íris dos olhos do leão. Ele a expulsa, fazendo jus ao medo já anunciado da luz, ainda mais quando refletida em seus próprios olhos. Trata-se, no entanto, de uma estrela desobediente, que se embrenha pela floresta, espalhando claridade e tirando o leão da comodidade comum aos que vivem atrás das sombras. Neste ponto do livro o predomínio dos tons escuros é substituído por páginas ilustradas em fundo branco. A claridade quase explode e coincide com a narração do momento em que o leão solta o maior rugido de sua vida.

A harmonia entre texto verbal e não-verbal atinge o ápice justamente nas páginas que marcam o miolo do livro. Daí em diante, uma mudança se dá nestes três níveis – verbal, não-verbal e estrutural (suporte-livro). As páginas deixam de seguir aquela ordem de par ilustrado colorido, seguido de par em preto branco com texto. Surge um céu pontilhado de estrelas, para onde foge, chorando, a estrela assustada com o rugido do leão. Sua fuga é apresentada de forma mais abstrata do que as imagens anteriores, como rastro de luz que não se capta. Aos poucos é que vai adquirindo contorno, arrastando consigo os olhos do leão que até então não conheciam o alto.

O leão, então, descobre o céu “real” e se apaixona por ele. Sai, enfim, da caverna. Como no mito de Platão: “É preciso que ele se habitue, para que possa ver as coisas do alto. Primeiro, ele distinguirá mais facilmente as sombras, depois, as imagens dos homens e dos outros objetos refletidas na água, depois os próprios objetos. Em segundo lugar, durante a noite, ele poderá contemplar as constelações e o próprio céu, e voltar o olhar para a luz dos astros e da lua mais facilmente.”2“A Alegoria da caverna: A Republica”, 514a-517c tradução de Lucy Magalhães. In: MARCONDES, Danilo. Textos Básicos de Filosofia: dos Présocráticos a Wittgenstein. 2a ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.

Vendo, o leão reconhece a estrela que, de susto, “no meio de tantas estrelas novas, iluminou a noite.” No último par de páginas a forma adquire, enfim, contorno preciso: vê-se a lua branca, no céu de estrelas, clareando a floresta, agora mais colorida.

A lua tal como a vemos, embora brilhe na imensidão negra, é, “na realidade”, satélite sem luz própria, iluminado pelo sol. Neste aspecto, se assemelha ao leão, sem juba e altivez, que de repente tem seus olhos arrancados da escuridão e alçados ao infinito das paixões. Assemelha-se, ainda, a própria natureza das imagens fotografadas que compõem o livro: sombras iluminadas.

Notas

  • 1
    “Um livro a ser completado”. Entrevista de Mariana Zanetti a Yasmin Taketani. Jornal Rascunho.
  • 2
    “A Alegoria da caverna: A Republica”, 514a-517c tradução de Lucy Magalhães. In: MARCONDES, Danilo. Textos Básicos de Filosofia: dos Présocráticos a Wittgenstein. 2a ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.

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  • Cristiane Fernandes Tavares

    É graduada em Comunicação Social pela Faculdade Cásper Líbero e Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP. Publicou artigos sobre leitura e literatura em revistas acadêmicas como a Comunicação & Educação – USP/ECA e é autora de Quintais, Editora Salesiana, 2007. Realizou assessorias, cursos e oficinas pelo Centro de Estudos da Escola da Vila. Integrou e coordenou a equipe de formadores de professores da rede municipal de São Caetano do Sul. É colaboradora do Movimenta Projetos em Educação e da Comunidade Educativa CEDAC e coordena projetos na Associação Crescer Sempre, em parceria com escolas estaduais da comunidade de Paraisópolis. É resenhista no Caderno Literatura da revista Brasileiros.

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