Visões sobre os índios no Brasil

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O Brasil é grande e diverso, sua população indígena é pequena e dispersa, e ninguém nega seu papel na composição de nossa sociodiversidade. O ensino escolar, no entanto, vem tratando a temática indígena de forma reducionista. No lugar da diversidade, dois enfoques ainda parecem ser os únicos a orientar o professor. Um, que trata os índios como heróis e outro que os enquadra como vítimas. Em ambos está implícita a concepção de que são sobreviventes graças à íntima relação que têm com a natureza. No caso dos heróis, os índios sobrevivem porque são parte indissociável da natureza. Enquanto persistir “a floresta”, eles se autopreservarão, intuitivamente, como os animais. Na posição de vítimas, os índios desaparecem junto com as florestas. Parece anedota, mas o Estatuto do Índio, que rege a política indigenista brasileira desde 1967, continua referindo-se aos índios como “silvícolas” – ocupantes da selva – conceito incompatível com a Constituição de 1988, que os enxerga como sujeitos de direitos específicos.

A intenção aqui não é discutir direitos e política indígena, mas dar toques ao leitor da EMÍLIA para tentar recolocar essa visão em outros termos. Primeira coisa: o Brasil indígena está além da floresta. Se hoje a maior parte das etnias se localiza na Amazônia, é porque a última fronteira de colonização do país se dirige para lá e por razões históricas, quando vários grupos foram defensivamente se deslocando para as regiões menos ocupadas do país. Isso significa que etnias que viviam em regiões de Mata Atlântica passaram por processos de adaptação a outros biomas, o que implicou em complexas empreitas de observação, compreensão, intervenção e domesticação das paisagens, de modo a permitir padrões de segurança física, social e cultural. Mas houve aqueles que ficaram na Mata Atlântica que restou, na cidade que cresceu no lugar dela, nos canaviais que cobrem a terra roxa do Paraná, na periferia de vilarejos onde antes as araucárias reinavam soberanas, no sertão do agreste onde a cultura do gado pisoteou a caatinga, e assim por diante.

O censo de 2010 do IBGE indica a existência de 817.963 pessoas indígenas; desse total, 315.180 vivem em cidades e 502.783 em áreas rurais. Ou seja, são considerados índios no Brasil tanto os Pankararu instalados na favela Parque Real no Morumbi, um bairro nobre da cidade de São Paulo, quanto os Kamaiurá no Parque do Xingu (MT), fotografados nas festas do Kuarup com suas pinturas e ornamentos exuberantes. Da mesma forma, são considerados índios os Guarani Mbya vistos na beira das estradas litorâneas do Rio Grande do Sul ao Espírito Santo, vendendo artesanato, vestidos “miseravelmente”, cujas crianças não falam português e somente a língua materna. Os Yanomami, reconhecidos e noticiados como índios bravios que lutam contra a presença de garimpeiros em suas terras são tão índios quando os Xetá, que não somam 10 pessoas e estão espalhados por Santa Catarina, Paraná e São Paulo, na condição de assalariados, servidores públicos, empregados domésticos e bóias-frias. Ao contrário da dicotomia natureza versus cultura, que nos impusemos como modelo civilizatório, o mundo natural do qual os índios (e não índios) fazem parte é visto como uma teia de relações entre seres humanos e não-humanos, em equilibrada posição de agentes que atuam, reagem, intervêm no conjunto de elementos que compõem os universos subterrâneos, aquáticos, aéreos e, reparem, todos eles no plural. Água, floresta, areia, pedras, mamíferos, aves, homens, insetos, fungos são, portanto, dotados de energia vital que compõe o conjunto do universo que, por conter essas diferenças, não é pacífico e harmonioso. Para garantir o equilíbrio necessário à existência, esses seres vitais disputam espaços, manejam sementes, arquitetam alianças políticas. Cada um com seu cada qual, como diz o outro. (aliás, que seria esse outro?)

indios
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL

Viver esse princípio e inserir-se socialmente em um mundo no qual essa concepção permanece viva (e falar a língua indígena ajuda muito) é o que permite um indivíduo a ver-se índio, sentir-se índio, identificar-se índio. Daí a revelação: ao contrário de estarem fadados ao desaparecimento, o estado de direito conquistado pelo Brasil nos anos 1980 recolocou-os gradativamente no mapa. Estamos falando, hoje, de 237 etnias conhecidas, isto é, geograficamente localizadas, a maior parte delas com terras formalmente reservadas para o usufruto de seus ocupantes índios. A FUNAI (Fundação Nacional do Índio) estima haver no Brasil 28 povos isolados, isto é, que não mantém contato com a nossa sociedade e, ao que tudo indica, voluntariamente.

Se você quer ampliar suas informações sobre o assunto, acesse o site do Instituto Socioambiental. Recomendo também a bibliografia comentada pelo antropólogo Luís Donisete B. Grupioni, que lista títulos básicos e abrangentes sobre as populações indígenas no Brasil, que você pode acessar aqui.

Boa leitura!


Imagem: Ilustração de Fernando Vilela.


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  • Marina Kahn

    Cientista social que sempre trabalhou com temas indigenistas, Marina Kahn trabalhou na Funai e no Instituto Socioambiental. Atualmente, presta assessoria em interação a associações indígenas e instituições não indígenas. Morou no território dos Ticuna, no Alto Rio Solimões e no Parque do Xingu. É autora do ABC dos povos indígenas no Brasil.

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