As relações entre texto e imagem no livro infantil

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Gorila, publicado pela editora Pequena Zahar, é o terceiro livro de Anthony Browne lançado no Brasil. Ele conta a história da relação de Hanna com seu pai por meio da rotina da filha, uma menina de aproximadamente uns dez anos, solitária e apaixonada por gorilas, apesar de nunca ter visto um de verdade. Seu pai, um homem sério e também solitário, trabalha fora o dia todo e continua trabalhando ao chegar em casa.

Distante e ausente, o pai nunca tem tempo para a filha. Suas falas são curtas e repetitivas: “Agora não”; “Estou ocupado”; “Quem sabe amanhã?”; “ quem sabe no final de semana”. E quando chega o tão esperado dia pela garota, ele está cansado para fazer tudo o que adiou e prometeu.

Hanna se consola vendo televisão sozinha, brincando com seus brinquedos, mas com a esperança de que ao menos o seu pedido de aniversário se realize. Ela quer ir ao zoológico ver seu animal predileto, o gorila, de perto.

Assim como Hanna, o leitor não sabe se o pedido que ela fez ao pai será realizado, o que gera uma empatia entre o leitor e Hanna. Por meio das ilustrações, há uma discreta sugestão de que talvez todos possam se decepcionar, pois o pai aparece sempre distante e desatento aos cuidados da filha.

Na véspera de seu aniversário, ao deitar para dormir, Hanna encontra um presente na ponta da cama. É um pequeno gorila de brinquedo. Imediatamente, ele é jogado para o canto do quarto junto com os demais. Nessa noite, Hanna dorme chateada.

Porém, algo surpreendente acontece. O gorila pequeno e de brinquedo fica enorme e real, bem na beira da cama de Hanna. Ela se assusta, mas o sorriso do gorila a tranquiliza.

“— Não se assuste, diz o gorila, gostaria de saber se você quer ir ao zoológico comigo”.

E assim eles saem rumo ao zoológico.

Na porta de casa, Hanna veste seu casaco e o gorila, o casaco e o chapéu do pai da menina. Para surpresa dela, tudo coube certinho nele.

Juntos os dois vão ao zoológico e conhecem os gorilas, chimpanzés e orangotangos. Hanna não cabe de tanta felicidade. Logo após o passeio, seu próximo desejo é ir ao cinema. De lá saem famintos e seguem para um restaurante, onde há, claro, uma mesa cheia de doces, sorvetes, bolos e tortas. Dessa maneira, todos os desejos de Hanna são realizados.

No caminho de casa, antes de voltarem para o quarto de Hanna, ainda dançam ao ar livre. Ao perceber que esse encontro está prestes a terminar, ela começa a ficar triste. Então seu novo amigo diz que eles se encontrarão no dia seguinte e ela adormece. Ao despertar e perceber que seu novo brinquedo estava ao seu lado na cama, como o prometido, ela sorri. No dia seguinte, Hanna acorda e quer logo contar ao pai o que aconteceu naquela noite, mas, antes que ela comece a falar, seu pai a surpreende com a pergunta: “Vamos a zoológico?”. Ela responde: “sim”. E eles saem de mãos dadas.

Gorilas são figuras recorrentes nas obras de Anthony Browne, que é fascinado pelos desenhos e pelas expressões que eles proporcionam. Além disso, Anthony sempre conta nas suas entrevistas que os gorilas também são uma referência à figura paterna do autor. Os gorilas representam um homem forte, saudável, imponente, doce e sensível, como seu pai que faleceu quando ele ainda era jovem.

O Gorila seria mais um livro sobre pais ocupados e crianças solitárias se não fosse o a sofisticação visual de Anthony Browne. O autor trabalha com pinturas realistas e cheias de surpresas e significados, tecendo com precisão a narrativa real com a fantasia de Hanna, deixando um final aberto, para que cada criança possa imaginar e se surpreender.

Além disso, o aspecto visual destaca-se em outros momentos na narrativa. Por exemplo, ao descrever a paixão de Hanna pelos gorilas, o autor espalha imagens deles por todo canto da casa em lugares óbvios e inusitados, por exemplo: na capa do livro lido por Hanna; no quadro; na luminária do quarto; no quadro perto da porta da rua; como Monalisa em forma de gorila na parede da escada; na caixa de cereal do café da manhã e até mesmo na sombra de Hanna sentada no chão lendo.

O uso da cor também é um recurso expressivo e afetivo dentro da narrativa visual. A distância e frieza do pai são representadas por cores frias, o que contrasta com as cores quentes da roupa de Hanna, como um jogo dos opostos. Essa oposição também aparece, por exemplo, na cena do jantar de Hanna com o gorila, na qual predomina as cores quentes, ao contrário da cena do jantar do pai, com predomínio das cores frias. Há ainda contraste relacionado à coloração entre a primeira cena, na qual o pai de Hanna é frio com a menina, e a cena do convite dele para a visita ao zoológico. É como se as cores quentes e frias fossem guiadas pelas emoções da menina.

A ilustração agrega dados que não são narrados verbalmente, mas que são importantes para a atribuição do sentido. Na dupla de páginas que mostra Hanna solitária vendo TV, por exemplo, ela está num canto do quarto, no chão, com a luz apagada. Só a luz da TV ilumina a menina, todo o resto do quarto permanece escuro. Um dos lados escuros da parede é representado por desenhos sombrios de bichos ferozes no papel de parede, enquanto a parte iluminada é florida com borboletas. Ou seja, a linguagem visual enriquece a narrativa com informações discretas que podem passar desapercebidas em uma primeira leitura.

Nessa mesma cena do quarto, na parte escura da parede, destaca-se um mapa da África, lugar de origem de muitos gorilas. Outro exemplo é, quando Hanna deitada na sua cama, desapontada com seu novo presente, é descrita dando ênfase nas agrades, sugerindo uma jaula, uma prisão. Portanto, há uma unidade estética entre o que é narrado e o que é ilustrado; nada é gratuito.

As últimas imagens do livro também são impactantes. Na penúltima cena, a do convite do pai para a visita ao zoológico, as mãos peludas do pai e uma banana no bolso da calça são elementos que deixam uma brecha para o leitor entrar na fantasia de Hanna. E quem se atentou a esse jogo de detalhes, lembrará logo do começo do livro, no momento em que Hanna também tinha uma sombra de gorila. Além disso, a última cena dela saindo com o pai rumo ao passeio é praticamente a mesma cena daquela em que a menina sai com o Gorila na noite anterior. A pergunta que fica é: afinal, foi tudo um sonho? Ou tudo aquilo realmente aconteceu?

Essa coesão entre a narrativa verbal e visual guiam o leitor até a última página. O que está em evidencia é justamente essa oscilação entre a realidade e a fantasia de Hanna e o jogo com o próprio leitor. Afinal o que é real para um, pode ser fantasia aos olhos do outro, tornando assim Gorila um livro que não abre mão da sensibilidade e inteligência do leitor.1Texto originalmente publicado no curso de especialização Livros, Crianças e Jovens: Teoria, Mediação e Crítica, Instituto Vera Cruz.

Referências Bibliográficas

Passado e futuro do livro-álbum”, Dolores Prades

Ficção e informação: tendências nos livros informativos”, Ana Garralón

Anthony browne: el planeta de los simios de peluche”, Ana Garralón

Nota

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    Texto originalmente publicado no curso de especialização Livros, Crianças e Jovens: Teoria, Mediação e Crítica, Instituto Vera Cruz.

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  • Rita da Costa Aguiar

    Iniciou sua carreira na área de produção gráfica na Companhia das Letras, em 1997. Desde 2002, dirige seu próprio estúdio e trabalha como designer de livros autônoma para diversas editoras.Também atua desenhando e coordenando a comunicação visual de exposições em museus. Atualmente, além do estúdio, trabalha como editora de arte no departamento de literatura infantil da Edições SM e está finalizando sua especialização no Instituto Vera Cruz, no curso Livros, Crianças e Jovens: Teoria, Mediação e Crítica. www.ritamca.com.br

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