Cavalgando até o vazio

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precisava desse resto de solidão para aprender sobre esse resto de companhia”
Valter Hugo Mãe

A imaginação vital da criança sempre flagra uma ausência,
um algo a ser apanhado nas coisas do mundo”
Gandhy Piorski

Crianças não conhecem a morte como finitude? É o que Piorski diz, mas é algo que me cutuca… Talvez só entendamos, durante a primeira infância, a morte como ressurgimento; algo que não nos atinge como, por exemplo, o herói que quase morre, as lutas de espada com proteções inabaláveis ou o inimigo que cai e ressurge das chamas.

Mas o silêncio e a ausência intrigante que vem com a morte – seja ela de alguém ou de algo – encontra, sim, espaço na infância. Me vem à tona minha própria memória, nostalgia, do dia em que percebi que as pessoas morrem. Estava na casa de minha avó e lembro de me esconder embaixo da mesa em seu quarto e chorar. Chorava muito e silenciosamente por todos os meus parentes que um dia morreriam. Pensei primeiro na bisavó, que apenas morreria em minha adolescência, depois em meus avós e em sequência meus pais.

Meu choro e minha dor eram secretos e vejo agora que o silêncio das lágrimas e o canto de reclusão que escolhi me traziam ainda mais próxima da morte. Morte como um mistério secreto e silencioso. Eu estava isolada no quarto, assim como os mortos se encontram. Eu estava a imaginar o inimaginável para uma criança, o imemorável, algo que diz respeito às nossas origens e que se encontra quase sempre ausente em nosso cotidiano. E somente no isolamento, no esquecimento, que este silêncio costuma emergir. É nesse espaço oco, vazio no nosso corpo, que a solidão encontra espaço para criar conexões entre as coisas – nos ligar à poesia, sejam elas poesias de vida ou de morte.

Isolamento, no entanto, é palavrão para nossa cultura atual que, com olhares sempre conectados, repugna e afasta de si a solidão. Nossos minutos de respiro na rotina acelerada, nossos momentos de se curvar sobre si mesmo são repelidos. Apenas curvamos os pescoços para acompanhar as postagens nas redes sociais na tela do celular, um corpo imerso na conectividade à distância; o isolamento de corpos vivos em detrimento de conexões entre mentes falantes. Somos até capazes de isolar a própria Morte, deixando-a bem escondida debaixo da mesa em um quarto, acompanhada apenas de todo o silêncio e escuridão que pudemos, até então, reunir e banir com fervor. Nem reconfortada pela luminosidade de um smartphone a morte pode ser. Foi jogada para baixo do tapete dividindo espaço com a fita VHS empoeirada.

Sara Maitland diz, em um ensaio, que até o silêncio entre um momento e outro da rádio foram banidos em certo momento da história. Banidos porque o público não suportava a angústia de estar solitário nem por uma fração de segundo. Me incluo também nesse movimento de inquietude. Mesmo diante das estimadas férias não sou capaz de relaxar. Procuro um lugar da minha janela de apartamento um lugar para pousar os olhos. Apenas encontrar uma árvore ou uma montanha longe no horizonte que possa dar conforto à minha visão. E não encontro! Os prédios e luzes piscantes de natal consomem toda a atenção.

Onde será que escondi a chave para aquele quartinho escuro onde a morte se ausenta junto da solidão? A criança que um dia fui deve tê-la escondido secretamente criando uma brincadeira com o esquecimento…

Mesmo presa a sete chaves, nossa curiosidade brincante para com a morte, com o silêncio e com a ausência está ali quieta também. Digo que está ali aprisionada, mas está doida para espiar nossos corpos e nossa rotina de adulto. Trabalhando com crianças percebo este movimento mais fluido, mesmo que ainda bastante afetado pelo poder cultural de negação do silêncio.

Um artigo da Emília, de autoria de Marcella Terrusi, encontra espaço para que esse silêncio nos atravesse ao ler um livro sem palavras que, com beleza, nos emudece. Mata as palavras e o que nos resta é o vazio poético:

O silent book é projetado para ser lido mais vezes, é um laboratório secreto de fabulações anteriores, exercício formador de cumplicidade entre a lacuna do mundo e o complemento do leitor, mostra às crianças que a literatura e a arte da leitura são experiências ativas de exploração do espaço entre o dito e o não dito, o visível e o invisível, talvez por isso os silent para crianças falem de fronteiras e transformações, distâncias e encontros, do muito pequeno e do muito grande, temas poéticos clássicos?

Vivi há pouco tempo a seguinte situação escolar: a história da Mula sem Cabeça fez sucesso em um grupo de crianças de dois anos que, apesar dos temores dos pais e, em consequência, da direção de escola, ficaram por meses a explorar, brincar e se silenciar com a tal da Mula. Ela está morta, aparece na escuridão da noite, é fogosa e estrondosa. Dá medo, mas será que podemos ouvir de novo a história? E de novo?

A besta se intimou com aquelas crianças, se pôs diante delas como um mistério e como uma ausência originária. A Mula, com sua escuridão de bicho decapitado, possui, ao mesmo tempo, todo o seu fogo ardente que nos entusiasma e nos dá poder. Traz para a realidade da criança uma morte distinta do brinquedo que quebra. Este é descartável e cai na lata de lixo para não ser mais visto. Mas na morte da Mula há também força de vida.

Trago outra vivência: Em uma turma de crianças de um ano, a pedra silenciosa que sepultou o peixe na terra durante um cortejo fúnebre também transformou o mistério amedrontador da ausência em um objeto presente. Ali estava o peixe inerte na mão da educadora. Os pequenos puderam olhar para o peixe vivo no aquário e para aquele que já não se movia e dar significado para aquela diferença. “Agora o peixe mora na pedra”. A pedra se torna íntima das crianças, assim como o peixe morto ou a personagem da Mula. O objeto corporifica aquilo que é ausência, que é silêncio, dando espaço para que a morte seja também memória e presença.

Explicarei a ideia. Tenho uma avó querida que morreu há alguns meses e nos processos de luto me vi junto de minha mãe mexendo em sua cômoda no quarto. Depois de jogar muitas coisas fora observei uma pequena foto colada na porta do móvel. Ela revelava em preto e branco um quarto de bebê com berço e uma boneca de vestido longo. O que é aquilo? E ela me disse “Era o quarto da sua avó quando criança. Olhe só essa mesmíssima cômoda aqui no canto da foto!”

A pintura era outra, mas com certeza, estava diante da mesma cômoda que abrigou minha avó neném num quarto do passado. E por olhar aquele objeto no tempo de agora, no quarto de agora – que nem mais dela era – percebi que os objetos têm memória. Guardam em si uma presença do ausente – a ausência do quarto de criança que já se foi, a ausência da minha avó que não pode mais abrir aquelas portas de madeira -, mas aquela foto posta ali com carinho resiste. Isto é, os objetos carregam em seu presente as memórias passadas e, também, a possibilidade de continuarem em nossas vidas no futuro, gerando mais presenças e ausências significativas. E é possível ir além do objeto como matéria, ampliando essa presença e memória para todas as coisas e entes. Mas, essa é a tarefa de uma próxima reflexão.

Tem algo de sagrado nesse vazio e parecemos perder muito vivendo sem ele.

Finalizo com uma pergunta que nos cabe bem: Onde será que a nossa relação íntima com a morte foi parar?

Cadê a Mula Sem Cabeça na qual podemos montar e cavalgar até o vazio?

Até encontrar o mistério;

O Silêncio;

O esquecimento e a memória?


Imagem: Ilustração de Issa Watanabe, Migrantes, Selo Emília & Eitora Solisluna & Raposa Vermelha, 2021.


Inquietações a partir da leitura de:

  • Brinquedos do Chão – Gandhy Piorski
  • A máquina de fazer espanhóis – Valter hugo mãe
  • A solidão dos moribundos – Nobert Elias
  • The best books on Silence – Sara Maitland
  • Mudo de Beleza – Marcella Terrusi

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  • Irene Monteiro

    Irene Monteiro é psicóloga, educadora da primeira infância e bailarina da Dançarilhos em Cia. É coautora do livro O tear da vida: reflexões e vivências psicoterapêuticas (Summus) e integra o corpo editorial da Revista Emília. Dedica-se ao estudo e trabalho com as duas pontas da vida - infância e velhice - a partir do corpo, das memórias - sociais e pessoais - e das histórias literárias, realizando ações como aulas de dança e acompanhamentos individuais.

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