Clarice, muitas Clarices!

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Um dos argumentos utilizados para explicar o “boom” do álbum ilustrado, nas ultimas décadas, tem sido a sua possibilidade intrínseca, enquanto objeto, de incorporar novas formas de promover soluções originais que supostamente outros gêneros mais tradicionais não permitiriam.

Se pensarmos em alguns cuidados que escritores devem considerar quando os seus leitores ainda em formação não têm as referências e vivências literárias para dar conta de fórmulas mais criativas, o álbum ilustrado pela sua própria natureza, de fato, é um facilitador e se presta a voos muito mais ousados.

Com isto não quero dizer que a tônica para um público de leitores em formação deva ser aquela facilitadora ou simplista, pelo contrário. A literatura, em suas mais diversas manifestações, entre elas a poesia, traz consigo um ritmo, uma sonoridade, uma forma que leitores em formação são capazes de usufruir. E livros que se destacam são aqueles que apostam nesse leitor capaz, sensível, inteligente que, independentemente de sua idade, pode usufruir das mais distintas experiências estéticas. A questão é que essa produção literária é cada vez mais rara, fazendo com que o álbum ilustrado, na sua potência visual, se sobressaia.

Daí, a grata surpresa de um livro como Clarice, de Roger Mello, ilustrado por Felipe Cavalcante e editado pela Global. O livro de cara chama a atenção pela sua beleza como objeto, capa dura, papel e cores especiais, acabamento impecável, ilustrações impactantes.

Mas, para além de tudo isto, o segredo deste livro é o texto e a construção de uma narrativa pouco convencional para os padrões da chamada literatura juvenil. Clarice nos transporta, sem referências explícitas, aos anos da ditadura militar brasileira. Clarice é uma das narradoras, pois, ao longo da história, ela se transforma em muitos outros personagens, que assumem diferentes pontos de vista, mas sempre regidos por ela. Menina no meio de uma realidade sem pés nem cabeça, a historia se constrói diante dos seus olhos a partir de eventos marcantes: a separação inesperada e incompreensível da mãe e o reencontro, a convivência inesperada com uma tia e um primo, encontros com conhecidos que assumem papeis muitas vezes incompreensíveis aos olhos de Alice.

Estamos em Brasília, em plena ditadura militar. Informações pontuais vão construindo o pano de fundo da história de Clarice. O olhar da menina descreve encontros e relações, a cidade vista da janela do carro, um mundo adulto tentando sobreviver, buscar saídas, “os livros atirados”, seus sonhos, seus monstros, a busca por uma nova vida, a Coreia, suas lembranças: “Segurei a respiração e afundei minha cabeça no vestido de minha mãe, quero dizer, da minha tia”.

Alice quer entender, montar o quebra cabeça que, como em um sonho, ou pesadelo, remete a histórias aparentemente desconexas, que o autor vai montando, sem perder o fio que conduz o leitor na reconstrução da historia de Alice. Uma história que não é só dela, mas que na sua particularidade mostra a insensatez de um dos períodos mais obscuros da história recente brasileira.

São muitas as imagens que Alice compartilha com o leitor, a mais forte talvez, seja esta que captura o leitor desde a primeira frase:

“- Essa pedra não serve. Outra.

Atiramos livros de cima da ponte, desde quando?

– Colocar fogo pode chamar atenção, a fumaça. (…)”

Este inicio extraordinário, marca a tensão que se mantém ao longo de todo o livro. Ambientes obscuros, muitos ditos e não ditos, muitas perguntas sem respostas, muitas informações pontuadas que vão, pouco a pouco, dando um contorno, nem sempre nítido, a uma realidade vista sob o olhar desconcertado de Alice.

“Eles”, quem são “Eles”?, os que mandam, os inomináveis, os que não devem ser nomeados. “Eles” aparecem como uma entidade sem rosto que faz com que livros devam ser atirados da ponte, pessoas desapareçam, o medo se instale, Alice seja separada da mãe. O olhar de Clarice registra tudo o que acontece ao seu redor, procurando algum sentido e compartilhando com o leitor seus assombros e desconcertos. Clarice é uma menina inteligente, irônica, que tenta buscar e encontrar um sentido em um mundo que não faz nenhum sentido. Não tem como o leitor não se envolver com Clarice, compartilhar seu espanto, se enredar no seu desconcerto, compartilhar seu humor e sua ironia e claro, torcer para o reencontro.

Roger Mello, constrói uma narrativa onde forma e conteúdo se articulam organicamente, sem artificialismos ou excessos. Um texto enxuto, sintético, fluido que deixa o leitor em suspenso, sem folego, enquanto é levado, pela mão de Clarice, a construir algum sentido. Clarice nos conduz através da escuridão e é seu olhar que vai iluminando personagens, acontecimentos, dando pistas. A escolha de uma narradora como Clarice contrapõe inocência infantil a barbárie adulta, leveza e poesia a tempos duros e violentos.

A menina Clarice, na sua perplexidade, denuncia um mundo sem pés nem cabeça, um mundo adulto sem sentido. Seu desconcerto é o desconcerto de muitos, uma crítica à ditadura militar, um resgate da história e da memória…

Quantas Clarices mais serão necessárias?

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  • Dolores Prades

    Fundadora, diretora e publisher da Emília. Doutora em História Econômica pela USP e especialista em literatura infantil e juvenil pela Universidade Autônoma de Barcelona; diretora do Instituto Emília e do Laboratório Emília de Formação. Foi curadora e coordenadora dos seminários Conversas ao Pé da Página (2011 a 2015); coordenadora no Brasil da Cátedra Latinoamericana y Caribeña de Lectura y Escritura; professora convidada do Máster da Universidade Autônoma de Barcelona; curadora da FLUPP Parque (2014 e 2105). Membro do júri do Prêmio Hans Christian Andersen 2016, do Bologna Children Award 2016 e do Chen Bochui Children’s Literature Award, 2019. É consultora da Feira de Bolonha para a América Latina desde 2018 e atua na área de consultoria editorial e de temas sobre leitura e formação de leitores.

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