Histórias sem armários

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É possível voar longe com um livro, se a história permitir e colocar questões – às vezes, polêmicas – que convidem à reflexão. Se procurarmos na memória, rapidamente encontraremos na literatura infantil alguma história que fale sobre ser diferente em um sentido amplo e genérico. Veja O patinho feio, de Hans Christian Andersen: depois de muito se sentir diferente de seus irmãos, uma vez que além de grande demais, era cinza, o patinho descobre que era, na verdade, um lindo cisne. Nesse conto de fadas, mostra-se que a diferença em um mundo uniforme deve vir acompanhada pela rejeição daqueles que não te veem como igual. Partindo de outro ponto de vista – e aqui não há hostilidade – em Guizzino [Veloz], de Leo Lionni, também se ilustra a diferença: as páginas, em pinceladas cheias de cor, relatam a história de um peixinho preto que vive em uma comunidade de peixinhos vermelhos. Nesse caso, o peixe de outra cor é o que nada mais rápido, é o mais valente e esperto, qualidades que o ajudam a salvar a comunidade. Para sobreviver a grandes peixes ferozes que habitam o fundo do mar, se valem do princípio “a união faz a força”, desenhando a forma de um grande peixe composto por peixinhos vermelhos agrupados. Para o preto, cabe nada menos que o lugar dos olhos.

Assim, tomo como ponto de partida o patinho que se transforma em cisne e o peixinho valente para refletir sobre questões LGTBQ+ na literatura infantil, mais precisamente, no livro álbum.

Em alguns exemplos que citarei ao longo deste artigo, como veremos, o valor do livro não se refere tanto à qualidade literária e/ou artística, mas sim aos temas que aborda. O problema é que nem há um volume tão grande de obras sobre o assunto, porque apenas a partir dos anos 2000, no território espanhol, começou-se a publicar os primeiros livros infantis LGTBQ + (seja produção nacional ou estrangeira). Quando os destinatários são os pequenos leitores, sempre se pisa em ovos. Deve-se considerar os quarenta anos de ditadura franquista, nesse caso, e o peso das crenças religiosas, que impediram qualquer evolução para uma sociedade mais moderna, especialmente quando se refere a esse grupo e, por conseguinte, à publicação de obras – sobretudo as destinadas às crianças – sobre esse tema.

Menino chora!

Apesar da evolução evidente em relação à aceitação da diversidade em nossa sociedade, ainda há uma longa estrada a ser percorrida. É possível ser diferente de muitas maneiras: distanciando-se, por exemplo, do que dita a tradição no que diz respeito à definição de papéis por gênero. Não é um caminho fácil, sem dúvida, pois esses papéis continuam muito marcados. Nesse sentido, devemos nos questionar sobre o que acontece quando tais padrões são rompidos com a adoção de um comportamento “não normativo” e se coloca em questão a própria categorização – rígida – do gênero binário. Aprendemos a ser meninos ou meninas de uma forma bastante diferenciada. Tanto o entorno social como os meios de comunicação ou a publicidade – não sempre nem em todos os contextos – enviam mensagens de diferenciação de gêneros: não quero parecer simplista, mas, para que se entendam as sutilezas, tenta-se inculcar que os meninos são fisicamente fortes, não sabem expressar seus sentimentos ou que amam futebol, enquanto só as meninas se inscrevem no balé ou querem ser princesas quando crescerem. E insisto, a fronteira é cada vez mais estreita, ainda que, em certos contextos, a separação seja mantida. Nessa linha, é interessante a leitura de Chasing Rainbows [Em busca do final do arco-íris], de Fiona Joy Green e May Friedman, uma compilação de artigos sobre a criança a partir da fluidez de gênero.

Uma obra dos anos setenta, transgressora e pioneira no que se refere aos papéis de gênero, é A história de Julia e sua sombra de menino, de Christian Bruel (Scipione). A metáfora da sombra de menino que acompanha a protagonista permite que se faça uma revisão de estereótipos. Julia não é delicada, nem doce, nem fresca, ao que seus pais repreendem, chamando-a de “menino malcriado”. De todo modo, pois já faz 40 anos, hoje já não é fonte de conflito, pelo menos em muitos lugares, que uma menina não goste de se pentear, por exemplo, ou que não tenha “bons modos”. Há clichês que já foram superados e ficaram longe, porque a sociedade avança, particularmente em aspectos como esse de que nos ocupamos. Bom, ao final da história, a protagonista conhece um menino a quem dizem que chora como menina: “As pessoas dizem que meninas devem agir como meninas, e os meninos, como meninos”, comentário que, por desgraça, continuamos a achar normal. Se por um lado demos passos importantes em relação ao papel da mulher na sociedade – não devemos baixar a guarda –, por outro, os homens continuam presos em uma masculinidade que começa a mudar. Além disso, pensamos que a biologia tem muito a ver com isso, quando na realidade se trata, sobretudo, de um efeito cultural. Podemos ver uma amostra de revisão dos estereótipos masculinos em Oliver Button is a Sissy [Oliver Button é maricas], de Tomie dePaola, ainda que se tenha que considerar que a obra foi publicada pela primeira vez em 1979. Certamente agora um Oliver não seria apelidado de “maricas” no pátio da escola por cheirar uma flor, usar fantasias, desenhar ou dançar, pelo menos, em boa parte dos lugares. De qualquer modo, continua sendo uma obra de referência e uma boa ferramenta para abordar o assunto.


Protagonizado por um cachorro e cheio de humor, não poderia deixar de citar Cachorros não dançam balé, de Anna Kemp e Sara Olgilvie (Paz e Terra). “Meu cachorro não é como os outros”, começa o relato. E, efetivamente, não é, porque morre de vontade de vestir um tutu e demonstrar seus dotes artísticos no cenário. Quem não sentiria empatia por um personagem tão carismático. Ao final, superadas as dificuldades, (“Cachorros não dançam!”, diz o pai), conquista seus objetivos. Por outro lado, a humanização do animal – recurso comum na literatura infantil – e o ar indiscutivelmente ágil e fresco da história facilitam seguramente a aproximação e a compreensão dos papéis colocados em questão.

Quem sabe ainda mais comovente para os leitores, devido aos toques de realismo, seria O menino perfeito – meu livro –, que colocou o dedo na ferida de mais de um adulto. Aos olhos de todos, Daniel é o menino perfeito, porque tem um comportamento exemplar e segue cada uma das convenções que o constituem. De noite, enquanto seus pais dormem, se traveste. Nesse livro, falo sobre tomar outro caminho, um que se afasta do que a sociedade espera, e falo do reconhecimento da própria homossexualidade, um processo inicialmente íntimo e privado. É por isso que o protagonista se veste com as roupas de sua mãe às escondidas: um ato simbólico que vai além do disfarce. Daniel é como o menino de Minha vida em cor de rosa (Alain Berliner, 1997), que aparece vestido de mulher em uma festa da vizinhança ou o amigo de Billy Elliot, que um dia o recebe em casa de saltos altos. Para eles, isso não é uma brincadeira, assim como não o é para o menino perfeito, que tem um segredo. Não é plenamente consciente do sentido desse segredo, ainda é pequeno, mas ele já sabe que aquilo que acontece à meia-noite é significativo.

Também é significativo Jacob’s New Dress [O vestido novo de Jacob], de Sarah e Ian Hoffman, que como o menino perfeito, ainda que se travista, não tem nenhum conflito com o gênero que lhe foi designado ao nascer (o masculino). O relato de Jacob descreve, com muito cuidado e conhecimento, a transexualidade: “Vou ser a princesa”, diz o protagonista. De fato, parte de uma experiência pessoal: a dos pais do menino. Em uma linha semelhante, de experiência pessoal, está I am Jazz, um reality show americano em que Jazz Jennings narra em primeira pessoa sua própria história como menina trans e mostra sua vida cotidiana com a família. Para tirar proveito do produto, publicaram uma história com o mesmo título. De forma sempre positiva, clara e didática, Jazz conta às crianças o que significa se identificar com o gênero oposto: “não me importo de ser diferente. Diferente é especial”. Apesar da proposta artística não ser muito original, já que segue um estilo bastante comum na linha do que se espera encontrar, a leitura é interessante para refletir sobre essas questões. De qualquer forma, tendo visto os dois livros álbum sobre transexualidade, vale destacar que, especialmente no segundo, a protagonista se vê assimilada pelo sistema, quer ser uma menina de acordo com os estereótipos do gênero, tal qual os conhecemos no sentido tradicional do gênero binário, que têm os papéis muito bem marcados. Temos que considerar que este é apenas um dos tantos caminhos que as crianças trans podem escolher, não é o único: há uma infinidade de possibilidades.

Outras relações, outros modelos de família

As pessoas dificilmente se desprendem do peso da tradição em relação aos tipos de relação e modelos de família. Se pensávamos que os príncipes só podiam se casar com princesas ou as princesas com príncipes, estávamos muito enganados. König & König [Rei e Rei], de Linda de Haan e Stern Nijland é um exemplo. Nesse livro álbum tão colorido e cheio de detalhes, chegou a hora de o príncipe se casar e se tornar rei. Depois de receber visitas de princesas de todos os reinos, o príncipe se apaixona pelo irmão de uma delas e acabam comemorando sua união: “Foi um casamento muito especial. A velha rainha chorava de emoção. Desde esse dia, os príncipes vivem juntos, como rei e rei.” E que a Disney tome nota! Sem abandonar o mundo monárquico, no conto La princesa Li [A princesa Li], de Luiz Amavisca e Elena Rendeiro, a protagonista está apaixonada por Beatriz, mas sua história de amor é interrompida quando o rei Wan Tan quer casá-la com um jovem da corte. Também em Titiritesa, em um mundo fantasioso de personagens que podem parecer um tanto grotescos, uma princesa empreende uma viagem na qual acaba resgatando Wendolina das garras de um monstro. Enfim juntas, montadas em um burro, “sentiram uma brisa divertida que lhes fez cócegas no pensamento.” Encontramo-nos, assim, frente a três relatos para pequenos leitores protagonizados por personagens claramente homossexuais, um aspecto que, apesar da escassa qualidade de algum, é relevante: não devemos esquecer que anos atrás ‑ nem muitos, nem poucos ‑ se pensava apenas em relação afetiva-sexual entre um homem e uma mulher.

Por outro lado, não seria demais lembrar que não há só um modelo válido de família. É importante que se aprenda, em casa e na escola, que o leque é muito mais amplo, tanto o núcleo mais reduzido, formado por um adulto que cuida de seus filhos, como os casais que não passaram pelo registro ou os casamentos com um filho ou mais, civis ou religiosos, heterossexuais, homossexuais, transexuais e um grande et cetera. Todos merecem ser aceitos e respeitados. Não é o que encontramos em Aitor tiene dos mamás [Aitor tem duas mães], de Maria Jose Mendieta, em que se descreve, com acerto e olho crítico, a realidade de duas mães lésbicas e seu filho em um pequeno povoado: ainda que o protagonista viva em um lar cheio de amor e afeto, fora de casa enfrenta atitudes hostis. Continuando nos modelos familiares, em Las cosas que le gustan a Fran [As coisas de que Fran gosta], de VV.AA., os autores colocam a prova o leitor: a narradora-protagonista não revela até o final o gênero da parceira de sua mãe, que é uma mulher. Um jogo interessante, se levarmos em conta que muitos de nós, devido à educação que recebemos, caímos na armadilha pensando que era uma relação heterossexual.

Muito diferente é a história de dois pinguins machos no zoológico de Nova Iorque. Casos de homossexualidade no reino animal são conhecidos – e igualmente polêmicos – especialmente entre essas aves tão adoráveis. As de And Tango Makes Three [Três com Tango], de Justin Richardson e Peter Parnell, e Henry Cole, graças à boa vontade do guarda, podem incubar um ovo que foi abandonado e assim formar uma família. Baseado em uma história real, se trata de um relato que, além de sua qualidade literária, também convida à reflexão e seguramente prepara o caminho para uma educação na tolerância.

Metaforicamente falando

É difícil saber qual é o tom apropriado para que os pequenos se interessem pela mensagem da diferença, há muitos fatores em jogo. Quando a literatura infantil coloca essa questão a partir do realismo, sem rodeios, às vezes se fala de obras (também) para adultos. Mas, não quero entrar nesse debate, porque seria dar um passo maior do que minhas pernas. O que posso dizer é que Monstro Rosa, de Olga de Dios (Boitatá/Boitempo), se encontra no lado oposto uma vez que ilustra a diferença a partir da fantasia. Se quisermos utilizar a metáfora para explicá-la, um monstro cor de rosa – desde quando os monstros são cor de rosa? – em uma comunidade de personagens idênticos e brancos, é certo que atraia os pequenos leitores. Há sinais, como o arco-íris da coberta ou o uso da cor rosa para o protagonista, elementos que por tradição relacionamos ao coletivo LGBTQ+. Mas, isso as crianças não sabem. No final das contas, é bom dispor de material que para além de entreter, abre espaço para pensar e refletir. Algo como acontece com Red [Vermelho], de Michael Hall, um giz de cera cuja etiqueta diz “vermelho”, porém, na verdade, é azul. Seu professor o incentiva a pintar vermelho (“Vamos pintar morangos!”), sua mãe manda que brinque com o colega amarelo (“Vá pintar uma laranja bem bonita!”). Mas nada faz com que desenhe em vermelho. Um dia, um amigo novo o convida a colorir um oceano azul, e então o lápis de cera descobre o que nós leitores já sabíamos: ele era azul! O acompanhamento da leitura aqui se faz necessário, considerando a simbologia e os sinais que pertencem à construção do relato: podemos levá-lo ao terreno da identidade de gênero, se quisermos.

De qualquer modo, seja por meio do realismo ou da fantasia, as obras citadas são ferramentas para encarar questões polêmicas. Na Espanha, as pessoas com cerca de cinquenta anos cresceram em um mundo homofóbico, onde se acreditava que a homossexualidade era um desvio, uma coisa má, negativa. Avançou-se muito, ao menos por aqui, mas não podemos nos esquecer das políticas conservadoras e discriminatórias de alguns países não tão distantes. Trata-se de favorecer, pois, que meninos e meninas cresçam em um ambiente cuja base seja a aceitação, a tolerância e o respeito. Nesse sentido, o livro infantil pode ser útil.

Para finalizar, fiquemos com uma imagem: o peixe grande formado pela união dos peixinhos vermelhos. Ele que é diferente, e preto, tem um papel na construção da figura – faz o olho – porque na sociedade também há lugar para as minorias.1Este artigo foi originalmente publicado na revista Faristol nº 80 sob o título Cuentos sin armarios – Algunas reflexiones sobre la diversidad sexual en la literatura infantil.

Tradução Dani Gutfreund

Nota

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    Este artigo foi originalmente publicado na revista Faristol nº 80 sob o título Cuentos sin armarios – Algunas reflexiones sobre la diversidad sexual en la literatura infantil.

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  • Bernat Cormand

    Nasceu em Barcelona, em 1973. É filólogo e ilustrador, com mestrado em Literatura Comparada. Começou sua formação artística fazendo esculturas, desenho e ilustração. Trabalhou vários anos como redator e editor em editoras de Barcelona. Atualmente, dirige a Faristol, revista especializada em literatura infantil e juvenil. Escreve sobre LIJ e questões LGTBQ+. Publicou livros-álbum, e livros para jovens e adultos. Em 2016, fez dois meses de residência artística no Spark Box Studio, em Ontário, no Canadá. Seus originais estão expostos na PLOM Gallery (Barcelona). É autor de O menino perfeito (Livros da Matriz, 2017).

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