Imaginar é resistir

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“Eu me lembro que depois da guerra restava na nossa vila apenas um abecedário.
E o primeiro livro que encontrei era uma compilação de problemas de aritmética.
Lia esses problemas como se lesse poemas…”
Sacha Kavrous 1Citação presente no livro A arte de ler: ou como resistir à adversidade, de Michèle Petit, p. 218.

Qual será o papel da arte narrativa e de nossa capacidade de imaginação na busca por novas elaborações de sentido na experiência contemporânea?2As reflexões deste artigo resultam da dissertação de Mestrado da autora, denominada “Trajetórias de um fio de rio: narrar por imagens no contexto do livro ilustrado”. Disponível integralmente no Repositório Institucional da UNESP. Como os atos de contar, ouvir, ver ou ler histórias podem nos possibilitar “desenhar novas configurações do dizível, do visível e do pensável” 3RANCIÈRE, 2014, p. 100.?

A educadora colombiana Yolanda Reyes identifica na atualidade uma profusão de discursos que “nos ensinam a ser mais conformistas e menos imaginativos, como se sonhar, inventar ou criar fossem operações mentais reservadas a um punhado de gênios isolados e não necessidades vitais”. Para a autora, é justamente nessa problemática que reside a importância da literatura na escola, em um esforço de se “aportar para a transformação deste mundo cada vez mais mutável”4Confira o artigo Mundos possíveis..

Assim se compreende o exercício da imaginação não apenas como uma prática necessária ao desenvolvimento individual, mas também como possibilidade de reinterpretação do mundo, como uma atividade de alcance coletivo, como agente potencial de transformação.

A imaginação, vista de tal modo, não está desvinculada de sua importante e fundamental função social. No livro A arte de ler: ou como resistir à adversidade, a pesquisadora Michèle Petit exemplifica diversas situações de indivíduos ou comunidades em situações de extrema vulnerabilidade – guerra, exílio, miséria -, nas quais a literatura possibilitou respiros de resistência e indagação, em singulares experiências de leitura e compartilhamento de relatos.

A literatura, em particular, sob todas as suas formas (mitos e lendas, contos, poemas, romance, teatro, diários íntimos, histórias em quadrinhos, livros ilustrados, ensaios – desde que sejam “escritos”), fornece um suporte notável para despertar a interioridade, colocar em movimento o pensamento, relançar a atividade de simbolização, de construção de sentido, e incita trocas inéditas. […] como no caso dos meninos e meninas desmobilizados do conflito armado colombiano, que, a partir do desvio do relato, de uma metáfora poética, passam a se tornar narradores de sua própria história. 5PETIT, 2009, p. 368.

Acima, Michèle Petit refere-se a uma experiência de leitura realizada com jovens colombianos em situação de alta vulnerabilidade no ano de 2001. Na ocasião, a pesquisadora Beatriz Helena Robledo contava histórias para adolescentes recentemente envolvidos no conflito armado entre a guerrilha e as forças paramilitares da Colômbia. Beatriz Helena Robledo recorda uma dessas sessões:

Contávamos histórias de mitos e lendas diante de um mapa da Colômbia, no qual estavam indicados os diferentes grupos indígenas que habitam nosso país. Jamais imaginaríamos que um mapa teria tanto significado… O fato de ele estar lá, presente, visível, enquanto eles ouviam os contos, as lendas, lhes permitiu elaborarem a sua própria história, mas também a sua própria geografia. À medida que líamos e sinalizávamos a proveniência do mito ou da lenda, eles se lembravam dos lugares, dos rios, dos vilarejos por onde haviam passado. De repente, como por um ‘abracadabra’, enquanto falava-se da ‘Llorona’ da ‘Madremonte’, do ‘Mohán’, a palavra daqueles jovens, reprimida pela guerra durante tantos anos, substituída pelo barulho surdo dos fuzis, começou a brotar e eles se puseram a contar. 6 Depoimento de Beatriz Helena Robledo reproduzido em PETIT, 2009, p. 87.

Os jovens colombianos, que tinham pouco ou nenhum contato com a escrita e com o conceito de narrativa, passaram então a contar suas próprias histórias, rememorando e tecendo suas lembranças, recuperando suas singularidades individuais e ao mesmo tempo inserindo-se no jogo coletivo de compartilhamento e troca. De acordo com Michèle Petit, a literatura, especialmente em contextos que tendem a neutralizar as individualidades, contribui para a descoberta dos “espaços essenciais” de cada um.

Ler e escutar. Ler serve, de cara, para criar estes outros espaços essenciais à expansão de si mesmo – e ao esquecimento de si mesmo – mais ainda, por aqueles que não dispõem de lugar, de nenhum território pessoal. Nos contextos mais violentos, uma parte deles escapa das leis do lugar, uma margem de manobra é aberta. Porque o que eles descrevem quando evocam este distanciamento da realidade cotidiana, provocado por um texto, não significa tanto uma fuga, mas um salto para outro lugar, para outro mundo, aonde o sonho, o pensar, a lembrança, a imaginação de um futuro se tornam possíveis. 7PETIT In PRADES, 2015, p. 54.

Assim se compreende a imaginação como algo que pode frutificar na restituição de faculdades vitais, especialmente em contextos de opressão e desigualdade. Considerando, portanto, a narrativa em íntima vinculação com experiência humana, Michèle Petit avalia que, nesse contexto, o contato com o livro e a literatura poderia apresentar “esquemas narrativos determinados” 8PETIT, 2009, p. 124. para “em seguida servir de molde ou magma concretos de uma vida e contribuir para a sua estruturação” 9DANON-BOILEAU, 2007, p. 150.. Petit entende a literatura como uma “uma reserva da qual se lança mão para criar ou preservar intervalos onde respirar, dar sentido à vida, sonhá-la, pensá-la” 10PETIT, 2009, p. 285., e, portanto, como algo que deveria estar à disposição de todos.

[…] a literatura, a cultura e a arte não são um suplemento para a alma, uma futilidade ou um monumento pomposo, mas algo de que nos apropriamos, […] que deveria estar à disposição de todos, desde a mais jovem idade e ao longo de todo o caminho, para que possam servir-se dela quando quiserem, a fim de discernir o que não viam antes, dar sentido a suas vidas, simbolizar as suas experiências. Elaborar um espaço onde encontrar um lugar, viver tempos que sejam um pouco tranquilos, poéticos, criativos, e não apenas ser o objeto de avaliações em um universo produtivista. Conjugar os diferentes universos culturais de que cada um participa. Tomar o seu lugar no devir compartilhado e entrar em relação com outros de modo menos violento, menos desencontrado, pacífico 11Idem, p. 347..

Se aceitarmos a ideia, portanto, de que “somos seres da narrativa” 12Idem, p. 154., é possível constatar que, enquanto humanos, somos seres capazes de criar, imaginar, pensar, interpretar, organizar, reorganizar e intervir no mundo de maneira transformadora. Perceberemos que o exercício da imaginação pode ampliar o nosso mosaico pessoal e coletivo de possíveis formas de se interagir com a realidade. Em casos extremos, imaginar pode contribuir, inclusive, para se sobreviver.

Que todos possam ter acesso ao que Petit denomina como “literatura, cultura e arte”, que reverbera nas considerações de Antonio Candido à respeito da relação entre direitos humanos e literatura, pois o autor acredita que “uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável” 13CANDIDO, 2004, p. 126.. O autor assim reconhece a literatura – em seu significado amplo, pois inclui “todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura” 14Idem, p. 124.– como uma necessidade universal.

Vista deste modo, a literatura aparece claramente como manifestação universal […]. Não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação. Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar as vinte e quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado. O sonho assegura durante o sono a presença indispensável deste universo, independente da nossa vontade. E durante a vigília, a criação ficcional ou poética, que é a mola da literatura em todos os seus níveis e modalidades, está presente em cada um de nós, analfabeto ou erudito – como anedota, causo, história em quadrinhos, noticiário policial, canção popular, moda de viola, samba carnavalesco. Ela se manifesta desde o devaneio amoroso ou econômico no ônibus até a atenção fixada na novela de televisão ou na leitura seguida de um romance. Ora, se ninguém pode passar vinte e quatro horas sem mergulhar no universo da ficção e da poesia, a literatura concebida no sentido amplo a que me referi parece corresponder a uma necessidade universal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito 15Idem, p. 125..

Aceitando a literatura como direito humano inalienável, distancia-se a ideia da arte e da imaginação como atividades recreativas reservadas à minorias privilegiadas ou entendidas como devaneios inofensivos. Se imaginar é existência e resistência, se é uma manifestação que diferencia a todos nós enquanto humanos, observamos aqui o reconhecimento de que “a luta pelos direitos humanos abrange a luta por um estado de coisas em que todos possam ter acesso aos diferentes níveis de cultura”16Idem, p. 126..


Imagem: Ilustração de Anita Prades, Fio De Rio, Editora Selo Emília/Livre, 2018.


Referências Bibliográficas

CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 2004.

DANON-BOILEAU, Laurent. La Parole est un jeu d’enfant fragile. Paris: Odile Jacob, 2007.

PETIT, Michèle. A arte de ler: ou como resistir a adversidade. Tradução Arthur Bueno e Camila Boldrini. São Paulo: Ed. 34, 2009.

PRADES, Dolores. (org.) A formação dos mediadores. São Paulo: Livros da Matriz, 2015.

RANCIÉRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.

REYES, Yolanda. Mundos possíveis. Revista Emília [online]. 2013. Consulta em Maio de 2014.

Notas

  • 1
    Citação presente no livro A arte de ler: ou como resistir à adversidade, de Michèle Petit, p. 218.
  • 2
    As reflexões deste artigo resultam da dissertação de Mestrado da autora, denominada “Trajetórias de um fio de rio: narrar por imagens no contexto do livro ilustrado”. Disponível integralmente no Repositório Institucional da UNESP.
  • 3
    RANCIÈRE, 2014, p. 100.
  • 4
    Confira o artigo Mundos possíveis.
  • 5
    PETIT, 2009, p. 368.
  • 6
    Depoimento de Beatriz Helena Robledo reproduzido em PETIT, 2009, p. 87.
  • 7
    PETIT In PRADES, 2015, p. 54.
  • 8
    PETIT, 2009, p. 124.
  • 9
    DANON-BOILEAU, 2007, p. 150.
  • 10
    PETIT, 2009, p. 285.
  • 11
    Idem, p. 347.
  • 12
    Idem, p. 154.
  • 13
    CANDIDO, 2004, p. 126.
  • 14
    Idem, p. 124.
  • 15
    Idem, p. 125.
  • 16
    Idem, p. 126.

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  • Anita Prades

    Ilustradora, designer e atriz. Mestre pelo Instituto de Artes da Unesp. Ilustrou os livros Alberta e o pássaro azul (Terceiro Nome), de Cristina Mutarelli; Fábulas de La Fontaine (Melhoramentos), de Fernanda Lopes de Almeida; Cadê o Pintinho e Os incomodados que se mudem (Pulo do Gato), ambos de autoria de Márcia Leite; dentre outros. Autora do livro Fio de Rio (LIVRE/ Selo Emília). Membro da equipe editorial da Revista e do Selo Emília.

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