Livros vencem armas, censura nunca mais

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Não subestimamos nossos leitores, essa é a premissa básica dos projetos de formação de leitores dos quais participamos. Acreditamos no leitor sentado à nossa frente nos clubes de leitura. Confiamos que ele pode dar conta de qualquer conteúdo contido em um livro de literatura. Afinal ele dá conta da vida.

Quanta violência há no noticiário que retrata tragédias cotidianas evitáveis ou nas andanças pelas ruas de São Paulo, por exemplo, com cada dia mais famílias vivendo ao relento? Ou, ainda, ao entrar nas redes sociais e ler sobre mais uma violação de direitos protagonizada por representantes do governo? Por que algumas pessoas têm tanto medo do conteúdo dos livros e não questiona o sistema que reproduz e fomenta violências?

Todos os dias ansiamos por abrir um livro, habitar outra narrativa e pausar por alguns instantes, com sorte por algumas horas. Ganhar mais que um refúgio momentâneo, nos apropriarmos do tempo e convertê-lo em doses diárias de oxigênio para nutrir os sonhos. Algumas pessoas preferem as leituras felizes, temas de superfície, nos sugerindo, inclusive, a adoção de livros de autoajuda em clubes de leitura. De nossa parte, no entanto, consideramos Conceição Evaristo, Albert Camus, Gabriel Garcia Marques eToni Morrison, dentre tantos outros, de extrema autoajuda. A sugestão de livros que tragam receitas fáceis, alguma moral, um contorno bem uniforme e um final feliz, no entanto, é falaciosa. Se a vida já é dura, como dizem ao usar o argumento a favor destas leituras, não são os livros de autoajuda que nos ajudarão. Porque esses livros, na verdade, só reforçam aquilo que já sabemos. Não nos desafiam, não nos deslocam e não chegam mesmo a nos fortalecer.

Somos favoráveis a que as pessoas sejam livres para lerem o que quiserem, mas o que vemos há mais de uma década são os clubes de leitura ampliando repertórios e possibilitando que as pessoas leiam o que não leriam num primeiro momento. São centenas de pessoas, todos os meses, conhecendo gêneros, autores e narrativas que não entrariam em suas estantes não fosse esse elo entre mediadores e leitores. E esse movimento cresce porque um bom livro de literatura sabe como tocar a dimensão humana mais profunda.

Não seriam as mortes reais, ou as pequenas mortes, as separações, as perdas, os amores, os erros e arrependimentos, as belezas e afetos, faces da imensidão de sentimentos e experiências humanas que nos unem e atravessam exatamente por sermos feitos da mesma matéria? O livro, então, pode até ser considerado inadequado por provocar alguma tristeza ou angústia no leitor, mas ao fechar esse livro o leitor se sente menos solitário. E isso é muito.

Um livro que vale a pena, portanto, é aquele que desloca, amplia, surpreende e empresta palavras a sentimentos e experiências que estão ali presentes, precisando ser lidas, relidas, reinterpretadas. Outras vezes, trazem narrativas que nunca nos passaram pela cabeça, e exatamente por isso despertam um sentido profundo de alteridade. A leitura que vale a pena é aquela que nos faz morrer um pouco, e nascer outro tanto.

Há muito prazer na leitura literária, mas é bom não confundir arte com entretenimento ou prazer com bem estar. E é bom não confundir literatura com reiteração de si. Significa que haverá deleite, sem nos subestimar. Teremos o pacote completo em um bom livro de literatura e nele estarão incluídas as dores e as alegrias do mundo. O escritor que vale a pena ser lido é aquele que sabe que todos nós, por sermos humanos, aguentaremos a leitura e que de forma única vamos encontrar um caminho de olharmos nos olhos daquilo que perpassa cada vida humana e que a circunda. E saber que um escritor confia em nós, leitores, também nos fortalece. Ninguém quer ser diminuído, seja por quem for. Mais do que isso: ninguém merece ser diminuído, seja por quem for.

É por isso que não aceitaremos censura. Não suprimiremos um livro, um artigo, uma palavra sequer. Em nossos projetos todas as vozes vão ecoar, todos os conteúdos e temas estarão acessíveis e é nosso papel fazê-los chegar a todas as pessoas. Nós, mediadores de leitura, somos pontes entre pessoas e bibliotecas, e quanto mais diversa ela for mais amplas serão as bases de uma sociedade que se quer democrática, com pessoas livres, portanto críticas e apropriadas de suas potências.

Em tempos de distopia há de se combater o ódio com o amor e o desespero com a esperança. Que a indignação seja motor para disseminarmos belezas onde houver chão fértil. E é assim que os livros vencem as armas.


Imagem: Detalhe de ilustração de Fernando Vilela, para o livro Lampião e Lancelot, Editora Pequena Zahar, 2018.


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Autores

  • Janine Durand

    Janine Durand é educadora e fundadora da Jnana Consultoria. Responsável por implementar mais de 150 clubes de leitura pelo Brasil, é articuladora e voluntária do Programa Remição em Rede e articulista da Revista Emília.

  • Luciana Gerbovic

    É advogada e sócia da Escrevedeira Centro Cultural Literário, em São Paulo. Há mais de 10 anos atua como mediadora de clubes de leitura e facilitadora na formação de leitores e mediadores de leitura. Com Janine Durand, é articuladora do programa Remição em Rede.

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