O Corpo leitor

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Acho que a frase “leitura obrigatória” é um contrassenso.
A leitura não deve ser obrigatória… A leitura deve ser uma das formas de felicidade.
Jorge Luis Borges

Longe, entre o final do por do sol e o badalar pungente da meia-noite
nos atiramos dentro dos portais,
em meio a trovões que desabavam
como sinos majestosos que golpeiam as sombras nos sons
e dão a impressão de serem lampejos de liberdade intermitente
.
Bob Dylan

Alguém lê e constrói uma coreografia. Outros, também. Sejam leitores solitários ou acompanhados, na cena da leitura, está sendo criado (além das muitíssimas criações que são feitas ao ler), um baile. Não é o mesmo ler sozinho que ler para outro. Ser lido. Ler em grupo. Ler poesia em um estádio imenso ou em uma praça, ou em um clube, como acontece há anos, por exemplo, no festival de poesia de Medellín (Colômbia). Ler em pé, não é o mesmo que ler sentado ou deitado. Ler é uma atividade de movimento contínuo e as posições leitoras são múltiplas, como nos é mostrado em “Para mirarte mejor”, um tributo ao livro e aos leitores.

Além do imenso e nunca automático esforço de ir “engolindo” letras, além de devorar histórias e ser devorado por elas, até mesmo para ir “tomando-as” com calma, há todo um movimento de cada parte do corpo. Algo espacial acontece. Cada músculo se tensiona ou se aquieta.

Um diretor e ator de cinema, Pierre Etaix nos mostra em seu curta-metragem “Insomnio” um leitor que, consumido pelo cansaço, deseja continuar a ler e como os personagens dos livros se movem (fazendo sua dança) também de acordo com o movimento dos olhos.

A palavra ler vem do latim legere que significava, em princípio, escolher. Disso trata a leitura: de selecionar, escolher, decidir. E isto envolve desde o imenso esforço de aprender a soletrar até a compreensão posterior da leitura.

Não há nenhum hábito no ato de ler. Cada vez é uma ação nova, nunca rotineira. Cada vez, o corpo é colocado em jogo de outra maneira, nos tempos e espaços. Ao mesmo tempo se está “nesse tempo” e em um lugar, o corpo inteiro na cadeira, na cama, no chão e cada parte fazendo o seu esforço: a mão que se abre e se fecha, que vira as páginas, às vezes os dedos que seguem as linhas, ou a caneta que é levada da boca até uma linha que sublinhamos, para em seguida levar de novo a caneta na boca, ajudando a sustentar a ação e a emoção. Assim, enquanto estamos em um lugar, enquanto lemos, viajamos pelo mundo com essa parte do corpo que nos entrega um capital simbólico. Isso repercute de tal modo em nós que nos leva a questionar sobre nossa própria vida, nos impacta em nossas experiências e pode, ainda, nos fazer mudar o que o futuro nos prepara.

Orhan Pamuk, autor que recebeu o prêmio Nobel de literatura em 2006, escreve em “La vida nueva”:

Um dia li um livro e toda minha vida mudou. Desde as primeiras páginas senti a força do livro de tal forma que achava que meu corpo se distanciava da mesa e da cadeira em que estava sentado. Contudo, apesar de ter a sensação que meu corpo se distanciava de mim, era como se mais do que nunca eu estivesse na frente da mesa e na cadeira com todo meu corpo e tudo o que era meu, e a força do livro não se mostrava somente em meu espírito como em tudo que me fazia ser eu. Aquela era uma força tão poderosa que acredite que das páginas do livro emanava uma luz que se refletia em meu rosto: uma luz brilhantíssima que ao mesmo tempo cegava minha mente e a fazia refletir. Naquela luz, senti as sombras de uma vida que conheceria e com a qual me identificaria mais tarde.

Na leitura, as imagens em nós se revoltam, se subvertem, nos inquietam, e as palavras alcançam um “dom de voar”. As palavras se tornam imprevisíveis; fazer imprevisível a palavra não é por acaso um exercício de liberdade? Nos diz Gastón Bachelard em sua pergunta que encerra a sua afirmação na “Poética del espacio”. Acreditamos que com a imaginação expandida, o corpo também se torne livre da linguagem. Emanação constante de signos, deriva que modifica os corpos. E nesta emanação e deriva o sujeito que lê é todo o sujeito, assim como em uma palavra estão todas as palavras.

Considerei que mesmo nas linguagens humanas não há proposição que não implique todo o universo; dizer o tigre é dizer os tigres que o conceberam, os cervos e as tartarugas que devorou, o pasto do qual os cervos se alimentaram, a terra que foi mãe da grama, o céu que deu luz à Terra.
Jorge Luis Borges.

Nós leitores somos “citadores”, vamos recordando frases, temos “encontros contínuos”. Também visitamos e somos visitados por esse universo que nos é apresentado de novo e de novo. Como o sonhador que desperta e quer compartilhar seu sonho, o leitor quer dividir os mundos que vai descobrindo e que, talvez, outros encontrem neste mesmo relato significados diversos.

Até este ponto poderia se dizer que estamos falando da leitura “silenciosa”, em voz baixa, de onde às vezes é sussurrada, às vezes se movem os lábios ou se produz um balanço do corpo. Entretanto, há também a leitura em grupo, a leitura em voz alta. Ler com os outros. Ler para os outros. Escutar. E ali talvez aconteça que, quando uma frase nos “toque”, possamos nos sentir em comunhão com os demais.

Aquele que lê é um decifrador, um descobridor, alguém que aprende a ver as múltiplas camadas que o mundo oferece. É perceber mais fundo, mais perto e mais distante.

Nestes tempos de ruptura com a realidade, de perda de história, a leitura nos ajuda a não ser excluídos. Nos lembra que somos parte de uma comunidade.

A leitura é, então, um fato de criação e especialmente de discernimento para estar/ser com os demais, mais livres, mais felizes para compreender melhor o caminho que vamos transitando. E nós leitores, – bailarinos e equilibristas – vamos dando volta nas páginas do livro.

Tradução Belisa Monteiro


Fotos: Arquivo de Akántaros.


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  • Laura Szwarc

    Nasceu em Buenos Aires, Argentina. É artista polivalente, desenvolveu seu trabalho em literatura e teatro. Coordena a Associação Cultural Akántaros, entidade multicultural e interdisciplinar. Publicou livros de poesia, teatro, literatura infantil e ensaios, muitos deles premiados. Na sua trajetória como docente se dedica a promover a criatividade entre as crianças, jovens e adultos. Para saber mais: https://lauraszwarc.wordpress.com/ e https://akantaros.wordpress.com/.

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