Pode a cidade transbordar natureza?

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O tempo é o rio que me leva, mas eu sou o rio
Jorge Luís Borges

É diante do momento em que a divisão entre dentro e fora se faz tão presente, que a obra Fio de Rio ganha circulação no mundo. As paredes que isolam milhões de pessoas em cidades pelo planeta acirram a experiência que se têm do universo de dentro e o universo de fora; o concreto é árido, sufocante e não deixa margem para os interstícios. Mas, é sabido, que entre o dentro e o fora existe o meio; assim, encontrar rachaduras no asfalto é um ato inadiável.

Anita Prades, em seu livro de estreia como autora publicado pelo Selo Emília em parceria com a Livre, é sutil em provocar esta urgência em quem lê . Diante da escassez de água, encontramos uma criança circundada por uma cidade cinza, pela mãe apressada e por folhas mortas. A relação com o meio urbano é pungente dentro e fora de casa; não há água e não há tempo para perder. Um rumor de água, no entanto, craquela a rua e, nas rachaduras do imaginário, o rio transborda.

Neste ponto o livro muda sua narrativa e, à convite sedutor das cores, rompe com a cidade e vagueia pela floresta em companhia da menina. As ilustrações são repletas de traços e tintas que delineiam arbustos, animais e um rio galopante. Preenchem sem palavras as páginas seguintes transformando a relação com o espaço; antes hostil, agora encantador. A abundância de beleza brinca com o tempo e com o espaço e é difícil dizer o que está dentro da imaginação ou fora da imagem. Em seguida, a criança é banhada pela chuva e volta ao asfalto sob o abraço da mãe.

Contudo, a cidade não é e não pode ser mais a mesma. Sem pretender defender o mundo natural em detrimento do social, a narrativa se encerra e traça conversas possíveis entre duas cenas de um mesmo espetáculo; planta em meio a rua, cores no meio da sala. Um rio transborda agora de dentro para fora, com o cuidado materno de acompanhar a leitora, ou leitor, até a última página.

Onde encontrar:
Movimento Literário
Martins Fontes Paulista

Referências Bibliográficas

BORGES, Jorge Luís. Nova refutación del tiempo. In: Obras completas. 1974, p. 771.

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  • Irene Monteiro

    Irene Monteiro é psicóloga, educadora da primeira infância e bailarina da Dançarilhos em Cia. É coautora do livro O tear da vida: reflexões e vivências psicoterapêuticas (Summus) e integra o corpo editorial da Revista Emília. Dedica-se ao estudo e trabalho com as duas pontas da vida - infância e velhice - a partir do corpo, das memórias - sociais e pessoais - e das histórias literárias, realizando ações como aulas de dança e acompanhamentos individuais.

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