Quando a afro-bibliodiversidade lê Monteiro Lobato

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Desde os idos de 1988, marco dos cem anos da abolição, personagens negros que abastecem o repertório lobatiano são alvos de críticas e análises na área de teoria literária e por parte de ensaístas. Marisa Lajolo recuperou certo histórico ao dar, naquele ano, seu passo nessa direção.”1A figura do negro em Monteiro Lobato”. Trabalho apresentado no congresso 100 Anos de Abolição, na Universidade de São Paulo, em junho de 1988. Acesso em fevereiro de 2019. O reparo espelhava os bons tempos em que relacionar literatura e sociedade, história e literatura, literatura e política e similares binômios, amparava os pareceristas da área. Afinal Nastácia, uma idosa negra de estimação, a cuidar do bem-estar de uma família branca, ofertava um argumento cultural para exame.

Sem a pretensão de esgotar as possibilidades de leitura da obra de M. Lobato, André Luiz Vieira de Campos interpretou o Sítio como metáfora de uma república comandada por mulheres. Nastácia e Benta representariam, respectivamente, o saber popular e o erudito. A reputação da segunda, todavia, é galgada na desqualificação da primeira. Da mesma forma, a idosa branca ocupa o lugar de respeito, em contraste com a idosa negra, para quem são dirigidos os desrespeitos, xingamentos, insistentes desprezos saídos da boca dos personagens. Sendo assim, o conjunto, as figuras em cena perdem o isolamento, formando a gestalt acerca dos modelos de humanidade grego ou negro que ali circulam. Status de humanidade que Nastácia perde em trechos como aquele em que suas atitudes aparecem associadas a trejeitos de uma macaca.2“(…) e Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima (…)”. Lobato, M. Caçadas de Pedrinho. Coleção O sítio do PicaPau Amarelo, fac símile digitalizado por Arlindo San. pág. 23. Acesso em fevereiro de 2019.

Oras, não faltavam motivos para Abdias do Nascimento alertar, de maneira categórica, sobre o potencial perigoso da contaminação racista desde a tenra idade. M. Lobato, ele afirmava, envenenou várias gerações de crianças através do racismo contido na figura da “Tia Anastácia”, perfeito símbolo do negro brasileiro inscrito na tradição que o vê e o deseja na eterna posição subalterna, risonha e humilde.

E a indignação volta possante no ano de 2010, quando o Conselho Nacional de Educação enfrenta o tema racismo e outros no título Caçadas de Pedrinho. A perspicácia desse instante passou a relacionar fases da produção com os circuitos que pregavam superioridade racial e o pensamento eugênico da época, o que inclui aqueles que exaltavam os extremistas brancos da Ku Klux Klan. A clivagem se Lobato era ou não era racista tomou conta do debate, sem qualquer unanimidade.

Em recente coluna na Folha de São Paulo, Jorge Coli alega serem só os analfabetos da obra e os burros, os que julgam o autor racista. Opinião essa que apaga o prisma impulsionado por Ana Maria Gonçalves e depois popularizado ainda mais, desde a capa de uma edição da Revista Bravo. E a trilha das assimetrias é bastante conhecida via redação ou ilustrações do material.

A representação do Saci, por exemplo, na capa da primeira edição de Saci-pererê – Resultado de um inquérito carrega uma conotação nada neutra. Embora a proposta expresse o reconhecimento da oralidade popular, a narrativa visual cria para ela a face demoníaca própria do sistema religioso judaico cristão.

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Para os 2.000 exemplares rodados em 1918 foram selecionadas as ilustrações de J. Wasth Rodrigues para a capa e de Voltolino, para as páginas de publicidades impressas no final do livro. Nessa ordem lógica permanecem inúmeros elementos sobre os códigos contidos na autoria. Porém, é “mais provável que um brasileirinho lesse a demonização da figura recolhida do folclore. Lá estão os chifres e a ferocidade estampada no rosto assustador com dentes vampirescos. O próprio Lobato assina a obra com o pseudônimo Um Demonólogo Amador.”(LIMA, 2019)

E se tudo isso compõe a obra, o dono dela não é um qualquer. O escritor empreendedor foi se tornando o ícone da produção literária nacional para a gurizada, recebendo todo o apreço como habitante do panteão dos bem letrados. Tanto prestígio pede a atenção para a ordem de grandeza de difusão do repertório e, nele, as estereotipias todas envolvendo os padrões fenotípicos e crenças correlatas. Por esse ângulo, o impacto dessas mídias nas infâncias e juventudes de um país onde a desigualdade impera precisa considerar a escala do amado M. Lobato.

Mas, para a continuidade das observações, cabem dois alertas, ainda. O primeiro é que parece óbvio, mas é preciso distinguir o material produzido no contexto do autor vivo e, aquele dos desdobramentos que o seguiram. Há infinitas releituras a partir das elaborações originais. Fundamental sempre remetê-las ao contexto de produção. E, o segundo é não perder de vista que a população negra “não era ou era desse jeito”. O que há para atentar é a forma como esta foi percebida numa autoria, o que sempre será uma transfiguração da realidade. Circunscrever seja os anos 1918, 1980, 2010, 2019 ou qualquer outro instante, eles contarão mais sobre a sociedade do que sobre o autor, nesse vínculo acerca das relações raciais. Então, sigamos!

Ao diabo com tua representação

Como já dito por mim, em outro trabalho:

“A polêmica brasileira com Monteiro Lobato delimitada para com os personagens negros por ele elaborados miraram, por muito tempo, a defesa do autor e houve demora em perceber a nuança da criança negra, lendo a obra. (…) Quem não leu alguma das edições, acompanhou as HQs, assistiu na TV, no cinema, conheceu os brinquedos, vestiu a fantasia no carnaval e outras tantas entradas. O material reinou sozinho, bem avaliado por educadores, por décadas. Circulou numa ordem de grandeza considerável para o imaginário de muitas gerações.”(LIMA, 2019)

Poucos adultos no Brasil não resguardaram alguma memória afetiva da galeria lobatiana, pressupondo a escala já assinalada. E como se torna difícil revisitar e desconstruir algo assentado nas camadas da afetividade. Sobretudo, o caso específico das imagens fixadas da inferioridade de uns e outros. Como estratégia, vale deslocar o acento: o que havia nas prateleiras literárias como contraponto para essas concepções? Hora pois, de deixar o escritor e seus negrinhos e jogar luzes sobre o circuito editorial por todo o século XX e XXI.

A questão passa a ser a oferta de padrões da existência negra para leitores de pouca idade. Quem vai desnotar a estreiteza da referência para o imaginário em formação por todo o longo período? Portanto, a contrariedade não está apenas no material produzido por M. Lobato, e sim na insuficiente oposição de visões acerca das diferentes identidades raciais. Afinal, há todo um aparato teórico que trata das relações de poder, das práticas discricionárias que se abastecem de marcas físicas e culturais. Sendo a inferiorização uma constância, ela auxilia a naturalizar a evidente desigualdade na vida social. Como esquecer a materialidade do discurso, na “inofensiva” instância literária? Ou, melhor pular, mais uma vez, a questão envolvendo as identidades nacionais, que lidam com o passado escravocrata agindo sobre o presente? Ao diabo tua representação, gritam as minorias.

Por sua vez, a Educação e a Cultura, áreas de suporte dessa produção, sabem que não educar uma criança para o respeito à diferença é racismo. E o racismo impacta a infância, comprovaria a Unicef. Especialistas se estafam dizendo que compartilhar expressão estigmatizante é favorecer práticas racistas. Também é sabido que promover hierarquias na convivência pueril tendo por base fenotipias ou referências culturais é o mesmo que ensinar superioridades para um dos padrões envolvidos.

Essas e outras tantas fórmulas acabam correlacionadas às vulnerabilidades ou à confiança para donos do mundo. Desse modo, formam a base para xenofobias e impulsionam as vantagens ou desvantagens entre identidades sociais.

Será que encontraríamos porções delas nas bibliotecas? É notória a desproporção entre certo ideal alusivo à origem europeia frente aos demais protótipos continentais. Em porcentagem e abordagem. Logo, necessariamente o ponto de vista na concepção de uma biblioteca ganha destaque. E, com ela, a perspectiva do debate contemporâneo em torno da categoria bibliodiversidade. Sobretudo, por indagar o fim da pluralidade de acesso à produção, elegendo o livro como bem cultural e não apenas mercadoria.

Na tática produtora de best-sellers, sob neoliberalismos globalizados, é um dos argumentos, poucos têm poder decisório, sendo uma espécie de censura à expressão sui generis local. No máximo o que pode ocorrer é a absorção de repertórios culturais por grandes grupos financeiros, assunto negligenciado no Brasil.

Nessa visão, a particularidade, do narrador ao receptor, acarreta demandas dentro e fora dos livros. Sim porque é fundamental romper o costume “falar de nós, sem nós”. É o ponto de vista o que facilitaria perceber existências plenas em densidade e diversidade. E no caso negroafrodescendente, quem sabe alcançar uma afro-bibliodiversidade que superasse a pasteurização e homogeneização recaída, frequentemente, sobre tal identidade.

Seguindo detalhes, de M. Lobato até nossos dias, se a presença negra nos acervos é minguada ou inadequada, a bibliografia analítica dessas produções, da mesma forma, abarca escassas vozes. Parte do problema da grande escala, é bem comum o analista negro que discute o racismo não ser citado, certificando que desprestígio e segregação andam juntos no âmbito da formação de opinião. Isto não significa ausência de iniciativas em menores proporções. Pois as análises técnicas ou as expressões literárias que sempre buscam seus leitores, algumas vezes os encontram e conseguem explodir conservadorismos.

Tais históricos circunscritos bem lembram Carolina Maria de Jesus, exemplo vivo do provérbio “Eu não estou à margem da História e sim no centro de outra”.

E, para não perder de vista a questão do contraponto, elejo para aproximação a obra A vida não me assusta. Quanto tempo demorou para surgir no Brasil uma publicação da envergadura que liga o poema de Maya Angelou (1987) a pinturas de Jean Michel Basquiat?


Dragão soprando chama ao pé de minha cama, isto não me assusta nada.

A obra, traduzida para o português em 2018, reúne dois ícones da historicidade diaspórica africana para alcançar o universal do universal. A espessura do poema e a expressividade do desenho encorajam qualquer um que passe pela leitura da visualidade e da escrivivência, como talvez dissesse Conceição Evaristo. A proposta, sob a organização de Sara Boyers, ativista na pauta protagonismo juvenil, abarca uma multiplicidade de insights. Neste casamento surreal há desde a fantasia que imbrica o pueril e o horror, até o enlaçar e harmonizar autorias entre tempos. A inovação é da editora Dark Side, ainda novata no segmento infantil e juvenil, mas que já capta a demanda literária represada sendo respeitosa para com o projeto gráfico da edição original norte americano, lançado em 2017.

No exemplar, a verossimilhança com a realidade não deixa espaço para a conformidade com as mazelas do real. O significado social é diametralmente oposto aos que se encontra nos “ingênuos” de M. Lobato o que preconiza nem perder tempo com eles. A ludicidade na reunião de Maya Angelou e Basquiat permite entrar em contato com o medo, para dele sair fortalecido. É uma resposta literária que vitaliza e não aprofunda, ainda mais, o abismo intelectual para compreender desvantagens imputadas às minorias.

E, não há neutralidade alguma na renovação de disposições que alimentem neo-racismos, num planeta já tão infestado deles. A vida não me assusta é o contraditório também porque o leitor em algum momento conhecerá a biografia de ambas as autorias que se depararam com o monstro do racismo, o olho d´água de suas expressões artísticas.

E qualquer um nessa leitura-travessia se empodera, como uma liberação psicológica a agregar e mobilizar lideranças em potencial. A obra alcança o universal, sem perder nada para o Polegar, a Borralheira e tantas outras jornadas de seres marginalizados. Ao final, sobra o herói ou heroína. E, sobremaneira, o quanto o motivo é importante para a criança afrodescendente onde quer que ela viva.

Enfim, bem-vindos os contrapontos de qualidade. Aliás, comparativamente, o saci de J. Wasth Rodrigues, ele pode até possibilitar uma experiência com o medo. Mas a imagem produzida é muito mais aliada da demonização associada à ascendência africana, o preconceito preferido de longa data.

Empatias

“Negrinha”, um dos contos de M. Lobato, frequentemente é invocado como chave da empatia. Olhando de perto a lógica que concebe a personagem, ela é a pobre coitada, mulatinha escura, vestida com trapos imundos nos dizeres do narrador.

Ele exemplificaria a denúncia do racismo contra o corpo negro. Recordando que o objetivo aqui não é avaliar a qualidade do texto e sim, a construção social das figuras negras no repertório.

Negrinha, é a desgraçada e paralela ao encanto sugestivo para com as meninas branquinhas cheirosas, anjos de sangue azul. O argumento do conformismo no impedimento social, sinuosamente trança a trama com a melancolia que se esgueira na solução da morte. O domínio absoluto que marca o perdedor social foi, historicamente, um esquema constante na representação da escravidão ou de África para o imaginário.

Agora, imagine o poder do argumento sem oposição? Pessoalmente, lembro quando a professora lia o conto com a sequência de humilhações, em voz alta na sala de aula. E acontecia dos muitos olhos da minha idade em outras cores de pele, cronometricamente se virarem em minha direção. Impossível esquecer a abundância dos olhares de pena impelidos pela quimera mas projetados em mim, fora dela. Coitadinha! Não há nada pior do que alguém sentir pena de ti. Porque a situação pode enrustir uma supremacia intragável para o penado. A empatia, o se colocar no lugar do outro é emoção e cognição. Não é vazia de conteúdo. Busque, por aí, leitores que queiram ser a Negrinha, mesmo a Nastácia.

O projeto A vida não me assusta, ao contrário, consegue mostrar a sutileza entre a coragem e a impotência, entre aniquilar ou empoderar uma referência para identificação.

Sem o balanceamento entre abordagens, a face subordinada oferecida outra e outra e outra e outra vez se torna muito eficaz numa sociedade que pouco resolveu desigualdades. Mais do que isso, construções simbólicas obsoletas não contribuem para a inversão cultural que, de fato, melhore as condições de vida dos referenciados.

E a displicência para com os índices de violência entre marcadores sociais é bem conhecida. O circuito editorial não é propriamente o Estado, e atua sobre eles.

Isto posto, só a insubordinação racial salva! Porque um livro entre milhares de outros disponibilizados para uma geração carrega uma série de decisões políticas, o que requer cogitar o âmbito geracional. Isto se o princípio da equidade continuar sendo um alto valor para a ideia de democracia brasileira. Ou, não valeram de nada os esforços em decodificar as mensagens embutidas na ficção e seus impactos no real? Voltamos ao patamar do índio o boçal, do judeu usurário de nariz adunco, do pasteleiro idiotizado e outras tantas aberrações com larga produção de conhecimento a respeito.

O uso fácil e descompromissado de expressões como o “politicamente correto” poderia estender a conversa, mas melhor deslocá-la para outro artigo. O tema talvez ajude a pensar sobre os novos sentidos no gesto de pareceristas assinando embaixo do descaso para com a recepção das mensagens em mídias dirigidas à infância e juventude. A irrelevância da dimensão racista do legado de M. Lobato defendida sem pudor por Jorge Coli, sem supor o leitor negro da obra, não é posicionamento isolado. Comprova, sem dúvida, que polêmicas acerca do racismo em M. Lobato foram, ainda são e serão centrais no debate público sobre a sociedade brasileira.

Convenhamos que totalizar a proativa biobibliografia de M. Lobato por um aspecto nela detectado é tão perturbador quanto jogá-lo para debaixo do tapete. Provavelmente censurando a leitura desse aspecto ou tornando glamourosa outras facetas como é o costume, por aqui. No entanto, o racismo continuará naquele sistema de pensamento. E como venho advogando, “embora algumas teorias racistas tenham sido banidas do mundo adulto e refutadas por acadêmicos maduros, veja que podem adquirir, nos aparentemente ingênuos formatos de livro infantis, canais para fixar preconceitos, estimular estereotipias e evocar atitudes discriminatórias.” (…) 3Artigo Geledés.

Sobretudo, reaplicá-las na euforia do mercado para os setenta anos da morte do autor que, completados em 2019, receberam a categoria domínio público. Uma coisa é liberar juridicamente a comercialização sem direitos autorais para os herdeiros de M. Lobato. Outra são os direitos de cidadania das famílias negras. Portanto, cara pálida, não tenha medo de nenhuma leitura da obra.

Mesmo porque, puxando outra ponta sobre a empatia, sempre conto o caso do convite para opinar na Folhinha sobre a Nastácia, então caderno da Folha de São Paulo dirigido ao segmento infantil. Eram as comemorações dos noventa anos (2011) de Emília e Narizinho. Mais do que um desafio, era uma verdadeira saia justa entre eu e mim mesma. Quebrei a cabeça, e parti do senso comum que a associa aos afetos da casa na memória fácil dos bolinhos de chuva:

“A Nastácia é deliciosa, mas percebam o quanto ela é ofendida pela Emília, Pedrinho e Narizinho: (…) mesmo sabendo que Lobato criou essas histórias em outro momento, tanto lá quanto cá, quem gostaria de ser atacado como ela é nos livros? Por isso, a dica é aproveitar a leitura para também discutir o assunto na escola ou em casa.”(LOPES, 2019)

A saída foi propor ao leitor se colocar no lugar da Nastácia dentro dos momentos difíceis da personagem. Melhor que assassiná-la como tem sido feito. Sem tocar na criação e abordagem do autor, que está fisicamente morto e enterrado, embora vivo e exaltado na memória nacional, valia sensibilizar a percepção daquele que lê as histórias nos nossos dias. Afinal a obra resguarda a mesma lógica e não permanece no passado. Problematizar a agressão é uma forma de não repassar hierarquias forjadas em outros tempos. Nem espichar estereotipias. O que passava desapercebido lá, não pode ser mantido aqui.

Em tempos: M. Lobato e Graciliano Ramos

E quando o incentivo à leitura advindo dos formadores de opinião ou da seleção disposta nas bibliotecas for alheio ao racismo? Estamos diante da expectativa de uma enxurrada de Lobatos na praça.

Havendo preparo dos mediadores de leitura sempre é possível uma inversão cultural a favor de uma sociedade mais lúcida quanto ao tratamento dispensado à origem negroafrodescendente. Todavia, o que temos para essa travessia é o fio da navalha.

Os livros de M. Lobato podem levar a perceber as mazelas da coexistência na república brasileira fantasiosa ou, a real e vice-versa. A dificuldade está em conter a promoção apenas do entretenimento, com implicações que vão desde a demonização já aludida e agravada hoje pelos ataques da matriz religiosa africana, até a facilitação de apelidos inspirados nos personagens reavivados sob aquela lógica. Como lembrado no início deste artigo, a Nastácia é a mais desprezada pela forma como pensa, fala e, especialmente, pela aparência.

Naquele projeto literário, ela e Dona Benta (dona?) estão ambas ali representantes de longevidades sabidas. Porém, o local do respeito e o do desrespeito não se alternam. Como trabalhar a lógica racista para o leitor desavisado e o mediador despreparado? Editorialmente a responsabilidade poderia vir no cuidado e criatividade para as reivindicadas notas na reprodução do material original. Também a estratégia de revisitar as circunstâncias do período encontrará contrapontos interessantes e chamariz para novas leituras. Que tal uma conversa entre Graciliano Ramos e M. Lobato?

“Alguns zeladores passaram a afirmar que o autor não era racista e sim a época em que ele viveu. Mas quantos não racistas a mesma década produziu? Um exemplo parcial pode se ater a Graciliano Ramos e, entre outros, seu encantador A terra dos meninos pelados, no qual ele conduz o jovem leitor a elaborar o bulimento pautado em aparências físicas, a partir das caçoadas sofridas pelo personagem. A publicação é de 1939, mesma década da coleção O Sítio do Pica-Pau Amarelo. A proposta se diferencia ou, provavelmente, não contribuiu para acentuar as discriminações próprias do racismo, sem sair daquele contexto. Ao contrário, o desvela.”(LIMA, 2018)

E quanto à aquisição de um ou outro livro para a infância, reportando ao meu termômetro pessoal. De imediato, projetaria o meu neto ou neta lendo o material? Depois, outros lares e ambientes educativos. Porque por mais bem qualificado que seja o literário passando por minhas vistas, o que mais levo em conta é a longa peleja de combate ao racismo no cenário brasileiro.


Imagem: Tecido Artesanal Kente, Grupo Ewe, Gana. Acervo África.


Referências Bibliográficas

CAMPOS, André Luiz Vieira de. A república do Picapau Amarelo: uma leitura de Monteiro Lobato. São Paulo: Martins Fontes, 1986.

COLI, Jorge. “Só quem não leu ou não entendeu livros de Lobato pode julgá-los racistas”. Folha de São Paulo (3/fev./2019). Acesso em fevereiro de 2019.

GONÇALVES. Ana Maria. “Lobato: Não é sobre você que devemos falar.” In: Dossiê Monteiro Lobato. Revista Geledés (20/11/2010). Acesso em fevereiro de 2019.

LIMA, Heloisa Pires. “Lobato e a caçada ao racismo verde-amarelo.” Dossiê Monteiro Lobato. Revista Geledés. (18/11/2010). Acesso em fevereiro de 2019.

LIMA, Heloisa Pires. “A origem africana para o imaginário infantil e juvenil: uma obra em muitas histórias”. In: ALMEIDA, Dalva Martins de; SILVA, Gislene Maria Barral Lima Felipe da; NAKAGOME, Patricia Trindade (orgs). Travessia: Literatura e infâncias. Araraquara: Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea (GELBC)/ Letraria, 2018, p. 37. Acesso em fevereiro de 2019.

LOPES, Marta. Tia Nastácia tem leite do folclore. Folhinha. Acesso em fevereiro de 2019.

LIMA, Heloisa Pires. Travessia: Literatura e infâncias, op. cit., 2018. p. 38-39.

MONTEIRO LOBATO E O RACISMO. Revista Bravo!. São Paulo: Abril, v. 165, maio.2011. p. 24-33.

NASCIMENTO, Abdias. O quilombismo. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2002. 1980. Acesso em fevereiro de 2019.

Notas

  • 1
    A figura do negro em Monteiro Lobato”. Trabalho apresentado no congresso 100 Anos de Abolição, na Universidade de São Paulo, em junho de 1988. Acesso em fevereiro de 2019.
  • 2
    “(…) e Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima (…)”. Lobato, M. Caçadas de Pedrinho. Coleção O sítio do PicaPau Amarelo, fac símile digitalizado por Arlindo San. pág. 23. Acesso em fevereiro de 2019.
  • 3
    Artigo Geledés.

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  • Heloisa Pires

    Antropóloga, mestra e doutora pela USP. Foi pesquisadora do Instituto Camões-Cátedra Jaime Cortesão, em Portugal. A estreia no circuito editorial (1995) abrange a escritora, a editora e a pesquisadora da área. Como consultora, atua tanto na esfera pública, sobretudo MEC e SMEs, quanto privada (Canal Futura/Fundação Roberto Marinho). Também atua em organizações nacionais e internacionais com foco em educação. Pela Somos Educação, é coautora da obra Capulana: Um pano estampado de histórias (Scipione).

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Uma resposta

  1. Discutir a arte brasileira em meados do século XX é sempre fascinante. Em relação a Lobato, desde de 2010, quando cursei especialização em educação Etnocorracial, defendo sua importância no cenário literário nacional. O argumento apresentado, de que existe material mais relevante para ser apresentado a crianças e adolescentes, não inviabiliza a obra de Lobato, pois no final quem decide isso ainda é o público leitor e os mediadores de leitura. Precisamos resistir a tentação maniqueísta que recai sobre a obra lobatiana a algum tempo, e que vem de quando ele ainda era vivo. Lobato talvez até tivesse seus preconceitos, como todos nós, mas sempre demonstrou em sua trajetória um caráter democrático. Como exemplo, cito seu relacionamento com Lima Barreto, de quem era admirador, chegando a convidá-lo para uma parceria profissional (https://homoliteratus.com/monteirolobato-limabarreto/). Espero poder ter contribuído. Saudações.

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