Remição em rede, livros em punho

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Recebo mais uma resenha do mês. O autor se chama Nailton. O texto, escrito à mão, tem letra caprichada, pensamento claro e demonstra interesse pela leitura. Não o conheço pessoalmente, mas ver seus traços e seguir seu raciocínio me aproxima dele. Ao avançar por cada linha do texto, entro num universo novo e acesso mais profundamente a dimensão humana. Estamos conectados pela literatura. É como se eu o conhecesse e passasse a me conhecer um pouco mais depois dessa experiência. E isso não é pouca coisa!

Esta é apenas uma das centenas de resenhas escritas por 200 detentos de 10 penitenciárias do Estado de São Paulo que recebemos no Comitê de Cultura do Grupo Mulheres do Brasil. Somos 34 voluntárias que trabalham no projeto “Remição em Rede”, uma parceria entre o Grupo Mulheres do Brasil, a Fundação de Amparo ao Preso (FUNAP/Governo do Estado de São Paulo), a Jnana Consultoria e as Editoras Boitempo, Planeta, Record e Todavia. Só em março deste ano foram emitidos 616 pareceres pelas voluntárias do grupo.

O projeto tem como base a “lei de remição de pena pela leitura” e prevê que cada livro lido mensalmente pelo detento pode diminuir sua pena em quatro dias. O preso tem a possibilidade de ler 12 livros por ano e conseguir até 48 dias de remição da pena. Para isso, ele precisa ler a obra e apresentar uma resenha que será avaliada e encaminhada ao juiz regional para que seja concedida a diminuição da pena.

Aprovada em 2013, a lei pretende incentivar a leitura nas unidades prisionais, atribuindo este exercício como um direito humano essencial e básico do cidadão, como já defendia o sociólogo e crítico literário Antonio Candido.

Este é um avanço inestimável aos apenados e também à sociedade, já que o livro amplia a visão de mundo, abre portas para interpretações, metáforas, aquisição de linguagem e ampliação do repertório possibilitando a conquista de protagonismo e autonomia no exercício da cidadania.

Os personagens principais deste projeto são os detentos que escrevem as resenhas. Pessoas privadas de liberdade, que certamente não tiveram o direito humano à leitura garantido e que agora têm os livros como pontes, como uma possibilidade de esperança.

Leio as resenhas uma a uma com cuidado, torcendo para que cada palavra escrita revele os temas e personagens centrais da narrativa evidenciando a leitura integral do livro. A esperança também está do lado de cá, desejamos que o livro tenha arrebatado mais um leitor. Essa é uma experiência que vai muito além da emissão de um parecer. São quatro dias de liberdade em troca de trinta dias de literatura.

Como articuladora e voluntária do Programa Remição em Rede, tenho o privilégio de receber não apenas resenhas, mas inúmeros depoimentos de mediadores, parceiros, voluntários e dos próprios detentos. Todos comprovam que um livro e o trabalho em rede podem, sim, transformar a realidade. O mundo precisa de novas chances e a literatura é um caminho possível.


Imagem: Fernando Vilela, Cadernos.


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  • Janine Durand

    Janine Durand é educadora e fundadora da Jnana Consultoria. Responsável por implementar mais de 150 clubes de leitura pelo Brasil, é articuladora e voluntária do Programa Remição em Rede e articulista da Revista Emília.

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