Abra este pequeno livro

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Abra este pequeno livro

Abra este pequeno livro
Autora: Jesse Klausmeier
Ilustradora: Suzy Lee
Editora: Cosac Naify
Tradução: Alípio Correia de Franca Neto
Ano: 2013

A capa dura, violeta, com a lombada e cantos direitos emoldurados por triângulos pretos, mais uma etiqueta na metade superior, assemelham esta obra literária a um livro de atas – na etiqueta, lê-se, em letra cursiva: “Abra este pequeno livro”. Impõe-se no leitor a curiosidade: do que tratará este livro que mais parece caderno de registro? Quem dá esse comando, faz esse convite: o próprio livro? O dono desse livro? A autora? Não, nem parece a autora. Parece já que o livro tem vida própria e fala por si: “abra-me!”.

Vamos abri-lo, então.

A capa interna e a primeira página unificam-se tomadas pela imagem em gotas cinzas, como chuva sem cor. A página 2 traz a dedicatória “Para meus pais e avós: meus primeiros mestres e bibliotecários…” – entende-se, então, que “o livro” é personagem, pela posição que ocupa na vida de Jesse Klausmeir, autora americana, ilustrado por Suze Lee, coreana, que ganhou com uma de suas obras o prêmio de Livro Mais Bonito da Suiça. O que nos dirá esta obra de Jesse Klausmeir e Suze Lee? A tradução de Alípio Correia de Franca Neto – se falamos da linguagem verbal, nos permitirá conhecer.

Em formato menor do que essa primeira capa surge, efetivamente, na página seguinte, um pequeno livro, em que se lêem o título e as referências: autor, ilustração, tradução, editora – prolongando o jogo da curiosidade instalada no leitor. Vamos à página seguinte: o que nos aguarda? Outra representação de capa de livro parecendo confirmar sobre a vida da autora povoada de leituras desde a infância. De capa em capa sucessivas, o convite – ou provocações – continuam, nos apresentando um personagem que abre um livro em que outro personagem abre também um livro, permitindo que o leitor, pelas cores e imagens alusivas, faça antecipações – se há cenouras como que disfarçadas pela representação geométrica na capa de um desses pequenos livros, imagina-se que um coelho mostrará seus dentes e orelhas para o leitor quando este virar a página. Bela surpresa, fugindo do lugar comum: temos uma coelha!

Um livro multifacetado

Trata-se de uma obra genialmente concebida, assentada em pouco texto e muita ilustração, configurada como “livro ilustrado” – aquele em que texto e ilustração conversam de forma amalgamada, um não existe sem o outro, ilustrações e palavras dão o sopro de vida umas às outras, coisas de se constituir como corpo e alma. O livro ilustrado é assim definido na obra Livro ilustrado: palavras e imagens: “O leitor se volta do verbal para o visual e vice-versa, em uma concatenação sempre expansiva do entendimento. Cada nova releitura, tanto de palavras como de imagens, cria pré-requisitos melhores para uma interpretação adequada do todo”.1Maria Nikolajeva e Carole Scott, Livro ilustrado: palavras e imagens. São Paulo: CosacNaify, 2011; p.14.

A forma como o texto escasso se estrutura nos permite classificar esta obra também como “história com repetição”, cuja característica é apresentar uma estrutura que contém sequências recorrentes, ou seja, que se repetem ao longo da trama. Falas, eventos e ações se repetem. Esse movimento repetitivo da estrutura do texto pode se apresentar de forma mais ou menos articulada, dando uma ideia de encadeamento. Geralmente essa recorrência se dá de maneira curiosa e divertida, ressaltando o caráter de brincadeira desse tipo de história”.2Clique aqui. 

Abra este pequeno livro-aberto

Numa primeira leitura, é provável que a obra provoque risos nas crianças, assim como nos adultos, pelo jogo de repetições num crescendo que apresenta novos personagens que nada fazem além de… abrir um livro – como o leitor o faz, abrindo capa por capa este livro. Quando adultos e crianças aceitam o convite de abrir um novo livro, podem se encantar, porque há o jogo da descoberta, porque há animais, bem ao gosto infantil, que atuam como crianças leitoras. Encanta-nos porque há graça nos livros que vão se tornando pequeninos – se fazendo quase objetos, no interior da obra.

É certo que a obra impulsiona o leitor a uma segunda leitura, que remete a uma terceira, em que ler começa a não se dar de forma linear. A obra passa a ser explorada sem limite de ordem no virar das páginas ou na direção do olhar. Folhear o livro pede um ir e vir porque o leitor se contagia pelas descobertas nesse jogo de interação de linguagens. Mas a obra não abandona a tradicional presença do conflito, mesmo que relâmpago, no centro da narrativa, que se resolve com a ajuda dos personagens animais. No exato centro da obra, apresenta-se a única personagem humana, a Giganta, que não consegue abrir o pequeno livro. A partir desse “conflito”, a história inicia um retorno, avançando para o desfecho.

A repetida estruturação do texto imprime um ritmo à leitura como se provocado por passos que se tornam uma alegre correria: os personagens se deslocam, convidando o leitor a se deslocar. É um movimento que amalgama personagens e leitor, tanto que a certo ponto dessa estrada, os personagens, como se tivessem consciência de que o leitor os acompanha, acenam para ele quando o texto os apresenta, e o leitor somos nós. Nesta parte central, ocorre o fenômeno: o leitor poderá se reconhecer na personagem Giganta, porque o virar da página por ela – revelado pelo dedão gigante coincide com o dedo do leitor que deverá virar essa página para fazer a viagem de volta – fechando todos os pequenos livros que abriu até então.

O leitor fecha o pequeno livro. Mas o abre novamente. Faz novas perguntas – nem sempre respondidas – e novas descobertas. Mate esta charada: o que é, o que é que começa no violeta da capa e no violeta se acaba? Mate outra charada: o que é, o que é que o sapo do livro pode estar levando na não para não se molhar, mesmo ele estando na água?

Assim, este livro de capa violeta assemelhada a um livro de atas – um formato tão antigo – se realiza como obra tão moderna – porque impele para outra relação entre leitor e obra, distinta do modo convencional de acompanhar uma narrativa apenas adornada por ilustrações. A etiqueta na capa do livro (e na capa de todos os livros internos) nos remete também a formatos antigos, a lembranças antigas – que as crianças modernas talvez nem conheçam, etiquetas que se apresentavam ou se colavam nos cadernos, para nelas se escrever a que se destinavam ou a quem pertenciam. Nisto também podemos reconhecer a gratidão da autora pelos pais e avós que conviveram desde “tempos antigos” com a leitura. E por que não interpretar com isso que o gosto pela leitura se cria também por imitação e por alguém que a apresente, e que a leitura é algo eterno, que preserva seu propósito mesmo que passe o tempo e novas formas de ler se ofereçam, como esta, do livro ilustrado? Nesse sentido, podemos pensar também que se trata de um livro metalingüístico, que tem como um dos temas principais a linguagem e a própria leitura, considerando que a função metalingüística pode ser percebida quando, numa mensagem, é o fator código que se faz referente, que é apontado. Discurso desempenhando a função de se auto-referencializar.”3Chalhub, Samira. A metalinguagem. São Paulo: Ática, 1998, p.27.

Estamos diante de uma obra aberta à imaginação, não em relação ao enredo, mas porque opera de forma metafórica: o livro organiza os personagens com livros nas mãos, um levado a outro, como uma leitura por outra é levada. Ou então, outra metáfora pode ser sugerida: a personagem coelha citada anteriormente, tal como o coelho de Alice no país das maravilhas, também carrega um relógio de bolso preso a uma corrente e segue apressada. O buraco em que Alice segue o coelho lhe revela sua longa profundidade como um poço com paredes repletas de prateleiras, objetos estranhos, quadros e de livros… Capa a capa, viajar de um livro para outro não é mesmo adentrar num país de maravilhas?

Por esta razão, a obra percorrida tem o poder de não terminar onde termina, e porque desemboca em uma imagem que representa uma floresta de leituras: o que tanto dirão esses livros tantos que os personagens manuseiam na penúltima página, com um jeito tão satisfeito de estar?

Por essas interpretações que possibilita, nos pequenos detalhes que traz, este “pequeno livro” é uma obra singela e gigante. Mais um detalhe: a última página, pareada ao verso da quarta capa, é tomada também por gotas, agora uma chuva colorida. Será que a cor da capa e o objeto que o sapo carrega tem algo a ver com isso? Mate essa charada. Antes, porém, é preciso abrir essa grande obra. Abra!

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Veja o o vídeo para a edição:

Notas

  • 1
    Maria Nikolajeva e Carole Scott, Livro ilustrado: palavras e imagens. São Paulo: CosacNaify, 2011; p.14.
  • 2
  • 3
    Chalhub, Samira. A metalinguagem. São Paulo: Ática, 1998, p.27.

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  • Alda Beraldo

    Formada em Letras (USP), especialização em alfabetização (IVC). Formadora da Comunidade Educativa CEDAC há 15 anos, atuando em vários Estados do Brasil presencialmente. Atua como formadora do curso a distância Itinerários Literários Virtuais, pela CE CEDAC. Participou da equipe de elaboração do material adaptado para o Brasil, Myra, juntos pela leitura – programa inspirado no Lecxcit – Leitura para o êxito escolar (Catalunha), parceria CE CEDAC e Fundação SM. Faz parte da equipe de apoio permanente da Revista Emília.

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