Clubes de Leitura, espaços para compartilhar…

Post Author

“Em minha opinião, ler é um drama em três atos. O primeiro ato é a seleção: eleger o que ler, onde ler, quando ler. O segundo ato é a leitura do que se elege ler, e é um exercício que requer que nos entreguemos a ele, nos deixemos absorver pelo livro, inclusive nos tornamos antissociais por períodos consideráveis. O terceiro ato é a reconstrução. [ …] quando o terceiro ato se converte em uma obra em si mesma, o chamamos crítica”.
Aidan Chambers

Comecemos por considerar que o terceiro ato desse belo “drama”, como assim concebe o autor e crítico inglês Aidan Chambers, não é prerrogativa dos críticos contratados para produzir comentários sobre obras nos meios de comunicação, mas é uma consequência da formação leitora. Que nunca finda. Se nossa formação como formadores também não finda, ser leitor experiente é impositivo: estreitar os laços com a leitura de qualidade literária, apurando julgamentos, contatando ideias diversas, maturando a sensibilidade estética. Por consequência, formando-nos continuamente como leitores críticos.

Ser leitor crítico, leitor experiente, é determinante para pensarmos ações formativas envolvendo leitores com diferentes graus de intimidade com a leitura. Por isso, leituras em voz alta de textos literários e compartilhamento de acervos de livros de literatura são atividades constantes nos encontros da Comunidade Educativa CEDAC com professores, coordenadores pedagógicos e diretores escolares, em todos os segmentos. Em alguns projetos, implementamos também ações em que é incentivado que os educadores leiam livros diversos e compartilhem suas leituras, como ocorre atualmente em Catas Altas (MG).

Do lado de cá, na instituição viemos também realizando atividades de leitura literária, mas com a equipe interna, como espaços de compartilhamento e indicação das leituras realizadas pelos próprios formadores. São as chamadas Rodas de Leitura. Em certo momento, porém, pensamos: queremos situações para aprofundar leituras específicas. Nesse contexto surgiu o Clube de Leitura de formadores. E assim o imaginamos: para ampliar oportunidade de apreciação literária compartilhada, para ler aquela obra guardada na história de não-leitura de cada um, para reler uma obra, para ler algo que não leríamos sozinhos ou como obra que sabemos ser interessante (ou importante) conhecer. Por que muito se comenta sobre ela, por que tanta repercussão mundial – ou no Brasil? Também seria oportuno o prazer de estarmos juntos de uma forma diversa das reuniões de planejamento de trabalho. Afinal, antes de tudo somos – segundo a teoria da recepção – um “elemento do fenômeno literário”, reagimos como leitores, e conversar sobre essa “reação”, como ato crítico, é tão prazeroso quanto ler a obra. Por que causou interesse, por que decepcionou, provocou surpresa? Por que repercutiu ou não na nossa emoção, seduziu ou não como evento estético? Diferentemente do que ocorre nas Rodas de Leitura, em que há uma diversidade de obras em jogo, o Clube permitiria intensidade na discussão de um mesmo livro.

E assim fizemos. E assim ficou: o grupo escolhe um dentre três livros apresentados, um clássico estrangeiro, um clássico brasileiro, um clássico escrito por uma autora – brasileira ou não. Os encontros são realizados em intervalo de dois meses aproximadamente. Com apoio de uma dupla que prepara o encontro, os leitores também ampliam os conhecimentos sobre autor e sua obra. Após a discussão, é disponibilizada uma apresentação aos participantes, com dados contextualizadores que incluem eventos sociais, situação política, momento cultural no país do autor e no mundo e destaques de alguns elementos eleitos como significativos para apreciação da obra específica.

Escolhemos ler os clássicos. Por que os clássicos? Uma velha pergunta que autores e críticos nos ajudam a justificar. Uma vez, ouvimos depoimentos preciosos sobre os clássicos dados por também preciosos autores, como Carola Saavedra, Rodrigo Lacerda, João Anzanello Carrascoza, Noemi Jaffe, Lourenço Mutarelli, Michel Laub, Milton Hatoum, Raphael Montes, Ivana Arruda, Santiago Nazarian, Bernardo Carvalho, Fernanda Torres, Alberto Mussa – e colhemos algumas definições: um clássico “Oferece novidades sempre, não se esgota a cada leitura”, “Convida a ler nas entrelinhas”, “Vai pelos séculos e é lido de forma diferente nos diferentes tempos e momentos”, “Tem potência na experiência com a densidade da vida”, “Provoca reflexões interessantes, tem densidade, desafios”, “Apresenta conteúdos arquetípicos, questões inerentes ao ser humano”, “Além de ser bem escrito, transmite a complexidade do mundo”, “Apresenta as humanidades que estão girando em torno da gente”, “Tira as coisas do lugar”.

E assim fomos nos movendo, entrecruzando nossas experiências leitoras. Escolhemos produções artisticamente intensas, com potência para nos mergulhar na fruição – a literatura como busca e encontro, não como “viagem ou evasão”. Buscamos formas de organizar essas situações, imaginadas como momento agradável e que ao mesmo tempo agregue valor à nossa formação, amplie nossas possibilidades de trabalho junto aos educadores com os quais convivemos nos nossos programas formativos.

No passo a passo, convidamos para o encontro, propomos algumas obras, ouvimos propostas. Dentre elas, o grupo escolhe uma. No nosso Clube de Leitura – Clássicos Universais, as participações podem ser presenciais ou a distância. Em 2017, nos deparamos com Dom Casmurro (Machado de Assis), Perto do coração selvagem (Clarice Lispector), 1984 (George Orwell) e Jane Eyre (Charlotte Brönte).*

Sobre os Clubes de Leitura em terras parceiras, por Cristiane Tavares

“A arte algumas vezes julgou os juízes, exortou os inocentes à vingança e mostrou ao futuro o sofrimento do passado para que não fosse esquecido. Sei também que quando a arte faz isso, qualquer que seja a sua forma, os poderosos a temem, e que entre o povo e essa arte corre por vezes um rumor e uma lenda porque dá sentido àquilo que não podem dar as brutalidades da vida, um sentido que nos une, porque, no fundo, é inseparável de um ato de justiça. Quando funciona assim, a arte converte-se no lugar do encontro do invisível, do irredutível, do perdurável, da coragem e da honra”.
John Berger

A epígrafe citando John Berger foi retirada de um artigo intitulado “Justiça Poética – A literatura além do ponto final”, de Eduardo Pellejero. Sua pertinência logo se fará visível neste novo espaço de encontro entre palavras e leitores. A intenção aqui é explicitar o quanto as leituras se entrelaçam e os textos conversam em tempos e espaços distintos, prorrogando quase infinitamente o ponto final de algumas obras literárias. A imagem de entrelaçamento, de um fio que puxa o outro, é boa para ilustrar o que pode acontecer num encontro em que o principal propósito é conversar sobre uma leitura compartilhada: uma fala leva a outra, o depoimento de alguém instiga o outro a falar, uma percepção alarga as demais, alguns nós se apertam, outros se desfazem e assim por diante. Mas a imagem mais forte que justifica a escolha da citação é a frase final que caracteriza a qualidade dos encontros que a arte possibilita. No caso do que trataremos aqui, um encontro com a arte literária que, tocada pelas pessoas que a leem, pode converter-se em encontro com “o invisível, o irredutível, o perdurável, a coragem e a honra.” Palavras fortes. E boas demais para começar uma prosa, como dizem as mineiras e os mineiros que participaram do 1o encontro do Clube de Leitura de Catas Altas – MG, uma ação promovida pela Comunidade Educativa CEDAC em parceria com a Secretaria Municipal de Educação.

A formação em Catas Altas, município já atendido pela CE CEDAC em projetos anteriores, foi retomada, a pedido da Secretaria de Educação, em agosto de 2017. Eu, Cristiane Tavares, tinha acabado de voltar da FLIP, onde havia encontrado pessoalmente a escritora Scholastique Mukasonga depois de finalizar a leitura de seu romance de estreia no Brasil, A mulher de pés descalços (Ed. Nós). Sem dúvida, uma das leituras mais impactantes dos últimos tempos. No primeiro encontro que tive com gestores, diretores e coordenadores pedagógicos de Catas Altas, levei de presente o livro de Scholastique e lemos juntos um trechinho que podia dar-lhes uma pequena ideia do grande encontro que o livro me proporcionara e que agora eu gostaria de compartilhar:

A casa de Stefania, onde ela poderia levar uma verdadeira vida de mulher, era o inzu (e aqui manterei seu nome em kinyarwanda; pois, em francês, só existem nomes pejorativos para designá-la: cabana, barraca, choça). Em Ruanda, não há mais casas como a de Stefania hoje em dia. Agora elas só podem ser vistas nos museus, como os esqueletos dos animais imensos desaparecidos há milhões de anos. Mas, na minha memória, o inzu não é essa carcaça vazia, é uma casa cheia de vida, com risadas de crianças, conversas alegres de moças jovens, histórias murmuradas à noite, rangido de pedra moendo os grãos de sorgo, barulho de cerveja fermentado e, na entrada, a batida ritmada do pilão. Eu queria tanto que o que escrevo nesta página fosse uma trilha que me levasse até a casa de Stefania.(…) O grande domo de palha do inzu, como se fosse erguido da terra, ocupa o fundo desse pátio principal. Para entrar nele, é preciso se encaixar, primeiro, por baixo de um tipo de viseira de palha bem penteada, depois sob a abaulado enorme feito de cana ou de papiros que serve de moldura para a porta. Já no lado de dentro, quando nos erguemos, os olhos devem se acostumar à penumbra morna e quente antes de poder descobrir os cantos arredondados e maternais do inzu. ‘No inzu, dizia mamãe, não são os olhos que nos guiam, mas o coração.
MUKASONGA, Scholastique. A mulher de pés descalços. São Paulo: NÓS, 2017, p.31-33

Na maioria dos casos, seguia-se um silêncio após a leitura, alguns reliam, outros comentavam: “bonito!”, mas faltavam palavras para descrever o impacto do texto. “Não entendi algumas coisas, tem palavras que não conheço”, também foi um comentário recorrente. Havia mesmo algo de estrangeiro atravessando-nos naquele momento. Uma formadora de São Paulo, que acabara de voltar de uma feira literária no Rio de Janeiro, trazia de presente para um município mineiro, aos pés da Serra do Caraça, o romance autobiográfico de uma escritora ruandesa, vivendo atualmente na França. Ainda não sabíamos ao certo, mas descobriríamos, em breve, que esse estranhamento faz parte da experiência que nos ligaria a partir da leitura dessa obra. Estranhar nos deixa em certo estado de suspensão, libera-nos do automático, do já conhecido, do rapidamente identificável. É uma condição a que comumente somos lançados diante de uma obra de arte literária, como nos diz Compagnon:

A literatura, ou a arte em geral, renova a sensibilidade linguística dos leitores através de procedimentos que desarranjam as formas habituais e automáticas da sua percepção. (…) O uso cotidiano da linguagem é referencial e pragmático, o uso literário da língua é imaginário e estético. A literatura explora, sem fim prático, o material linguístico.
Compagnon, ANTOINE. O demônio da teoria – literatura e senso comum. Ed. UFMG, 2006, p.40 e 41

Vale esclarecer, agora sim, os critérios e as razões que me levaram a oferecer este livro às escolas de Catas Altas e que se tornaria mais tarde o primeiro título do Clube de Leitura. Queria compartilhar com o grupo o arrebatamento que a leitura provocara em mim, do ponto de vista estético e afetivo, intensificado pelo modo de narrar e pela força que os aspectos autobiográficos, vinculados a um chocante contexto histórico, causavam. E tudo isso em um livro de apenas 160 páginas, traduzido por uma poeta também admirada, Marília Garcia, publicado por uma editora independente em uma bela e edição.

A força de A mulher dos pés descalços revela-se logo nas primeiras páginas, em um pacto em que o narrador traz o leitor como cúmplice:

“Mãezinha, eu não estava lá para cobrir o seu corpo, e tenho apenas palavras – palavras de uma língua que você não entendia – para realizar aquilo que você me pediu. E estou sozinha com minhas pobres palavras e com minhas frases, na página do caderno, tecendo e retecendo a mortalha do seu corpo ausente.”
MUKASONGA, Scholastique. A mulher de pés descalços. São Paulo: NÓS, 2017, p.7

Para que um pacto se firme e permaneça, uma condição se faz necessária: desejo e confiança. No romance, a narradora não apenas deseja, como necessita cumprir um pacto feito quando criança com sua mãe, agora morta. É condição para sobreviver, é sinônimo de resistência. Ao presentear as quatro escolas do município e a Casa do Professor com essa pungente narrativa, seguindo impulsivamente um desejo e confiando plenamente no valor artístico da obra, a primeira reposta que veio foi da então coordenadora pedagógica da Secretaria, Elaine Adriana Rodrigues de Paula, que trabalhava na Casa do Professor1Instituição ligada à Secretaria da Educação da cidade de Alto Alegre do Pindaré. e retirou imediatamente o livro para ler. Arrebatada, logo me enviou uma mensagem pelo whatsapp, agradecendo imensamente que a leitura lhe proporcionara e contando sobre o quanto o livro a havia emocionado e perturbado. Conversamos longamente sobre Stefania, personagem principal, a mulher de pés descalços que dá título ao livro, sobre Scholastike, sobre nossas mães, nossos filhos, nossos livros preferidos. Em seguida, Elaine leu tudo sobre o genocídio em Ruanda, relatado no livro; sugeri que ouvisse a fala de Scholastique na mesa da FLIP, intitulada “Em nome da mãe” e compartilhada com a escritora brasileira Noemi Jaffe. Elaine ouviu, novamente me enviou uma mensagem e nesse meio tempo, em uma de suas vindas a São Paulo, comprou o livro de Noemi Jaffe, “O que os cegos estão sonhando”, que lindamente se entrelaça com “A mulher de pés descalços”. Do estranhamento que falávamos há pouco, Elaine passou para o encontro certeiro com o que na arte “dá sentido àquilo que não podem dar as brutalidades da vida, um sentido que nos une, porque, no fundo, é inseparável de um ato de justiça”, como lemos na epígrafe de John Berger. Escrever foi, tanto para Scholastique Mukasonga, como para Noemi Jaffe, um ato de justiça para com suas famílias, comunidades, antepassados. Pedi, então, à Elaine, que escrevesse uma breve recomendação de leitura para colocar nos murais das escolas que haviam recebido o livro, estimulando a retirada por outras pessoas. Elaine escreveu o texto que reproduzo abaixo:

Indicação literária
por Elaine R. de Paula

A mulher de pés descalços

Como negar que a leitura abre portas, desperta interesses, curiosidades e amplia nosso conhecimento?

Experimentei tudo isso com a leitura do livro A mulher de pés descalços da escritora ruandesa Scholastique Mukasonga. Logo nas primeiras páginas ela lamenta não ter atendido ao pedido da mãe para que cobrisse seu corpo, depois de morta – ela foi uma das vítimas do genocídio de Ruanda, na África (1994).

O romance autobiográfico traz memórias familiares e não deixa de ser um tributo à mãe Stefania, uma mulher alegre e totalmente dedicada aos filhos. A autora compartilha com o leitor costumes e valores dos tutsi, seu grupo étnico de origem.

A leitura é um convite à reflexão sobre o que de fato é importante na vida. Scholastique comove por sua capacidade de perceber a grandeza da mãe mesmo vivendo os horrores da guerra civil. Conheça a força e a trajetória admirável dessa autora que sabe envolver o leitor.

Boa leitura!

A resenha de Elaine motivou a retirada do livro por parte da diretora Ana Paula Eugênio Nunes de uma das escolas do município, Escola Municipal João XXIII, e também por um professor do Ensino Fundamental I na Escola Municipal Agnes Pereira Machado, Cristiano de Souza Rodrigues.

Os dois estiveram presentes no primeiro encontro do Clube de Leitura, quando apresentaria a todos os dois títulos que teríamos para ler nos dois encontros previstos para o semestre, precisando decidir qual deles seria lido primeiro: A mulher de pés descalços ou Harvey, de como me tornei invisível (de Hervé Bouchard e Janice Nadeau).

O livro de Scholastique estava em vantagem, claro, em função de já ter sido lido por alguns profissionais da rede e recomendado por escrito por um deles. De qualquer maneira, foram lidas as contracapas dos dois livros, todos puderam folheá-los rapidamente e a votação teve resultado próximo ao empate: por dois votos de diferença, A mulher de pés descalços foi escolhido como primeira leitura.

Esse encontro inicial foi bastante breve, pois a ideia do Clube de Leitura já tinha sido apresentada a todos nos encontros de formação com gestores, diretores, coordenadores e professores, que puderam se inscrever. Houve uma procura grande – cerca de 45 inscritos – , um número um pouco menor de pessoas efetivamente presentes no encontro e, consequentemente, de retiradas de livros. Foram 25 empréstimos.

Tão importante quanto o convite, a conversa e o contato com os livros nesse primeiro encontro foi a escolha e preparação do local. Foi escolhida a Casa do Professor, espaço inaugurado no contexto de um projeto feito em parceria com CE CEDAC no ano 2000 e que abriga atualmente uma biblioteca aberta para a comunidade, além de espaço para acompanhamento psicológico, psicopedagógico e reuniões. No caso de Catas Altas, o imóvel onde está a Casa do Professor é um casarão antigo tombado pelo IPHAN com uma bela área nos fundos, uma mangueira, um jardim. Esse espaço externo era pouco usado e foi lá que resolvemos realizar nosso primeiro encontro do Clube de Leitura, num final de tarde:

O Clube de Leitura foi aberto a todos os funcionários das escolas e a retirada dos livros foi feita tanto por professores, como por coordenadores, diretores, gestores, profissionais de apoio (psicopedagoga). Todos teriam um mês, aproximadamente, para ler o livro, antes de nos reunirmos novamente. No encontro do mês seguinte, a cidade vivia uma novidade: a filmagem de uma série por uma grande emissora de TV. A mudança realizada no município foi enorme. Catas Altas virou, praticamente, uma cidade cenográfica, por onde transitavam atrizes e atores famosos, carros antigos e vários moradores atuando como figurantes. Um dos espaços ocupados pela produção da emissora foi justamente a Casa do Professor, onde realizaríamos o encontro do Clube de Leitura. Uma das escolas, então, nos cedeu um espaço no pátio para nos reunirmos.

Os desafios desse segundo encontro eram, principalmente, garantir um espaço para que todos que desejassem compartilhar sua experiência com a leitura de A mulher de pés descalços pudessem fazê-lo sem que isso se tornasse enfadonho e, ao mesmo tempo, garantir um espaço para apresentar o próximo livro a ser lido e outros que haviam sido escolhidos na Casa do Professor, já que como teríamos um período de férias entre esse encontro e o seguinte, o convite foi para que levassem o livro do Clube e algum outro título da Casa do Professor, ficando a critério de cada um realizar ou não o empréstimo de ou dois livros. Diferente do primeiro encontro, esse foi um pouco mais longo – quase duas horas de duração. Iniciamos com a leitura de uma reportagem sobre a vinda de Scholastique Mukasonga para a FLIP, na qual ela contava um pouco a origem do livro, seu processo de escrita e os dados autobiográficos presentes na obra. A ideia com essa leitura inicial era, não só ampliar os conhecimentos sobre o livro e a autora, mas também aquecer o grupo para a fala, já que poderiam estabelecer relações entre trechos da entrevista e impressões causadas pela leitura. Foi o que se deu. Um dos trechos da entrevista mais comentados pelo grupo foi:

Quando viu as imagens do genocídio que vitimou 800 mil pessoas em Ruanda, seu país natal, em 1994, Scholastique Mukasonga vivia na França há dois anos. Mais de duas décadas tinham se passado desde que ela fora obrigada, aos 18 anos, a abandonar a família em Nyamata, a cerca de 30 quilômetros da capital, Kigali, e cruzar a pé a fronteira com o vizinho Burundi, na madrugada, para evitar ser deportada. Ao ver as imagens da barbárie contra o seu próprio povo, da etnia tutsi, e intuir o destino de seus familiares, ela compreendeu que não podia deixar a memória deles desaparecer junto às suas vidas. Scholastique precisava escrever.
Jornal O Tempo, abril de 2017

O comentário quase unânime que se seguiu a esse trecho foi “eu não sabia nada sobre esse genocídio! Como podemos não ficar sabendo de algo assim?” Começando a conversa por aí, foi possível perceber, muito rapidamente, que a conversa num Clube de Leitura segue percursos que extrapolam a obra, muitas vezes, ainda que partam sempre dela. No caso, um aspecto histórico tomou conta de uma boa parte da nossa conversa, trazendo a possibilidade de traçarmos paralelos com acontecimentos atuais, como a manipulação da informação pela mídia convencional. E como a conversa vai seguindo uma trama quase imprevisível, mas via de regra bem entrelaçada, desse assunto pulou-se quase imediatamente para o caráter autobiográfico da narrativa, o que, para muitos, aumentou consideravelmente o grau de envolvimento com a obra, intensificando, especialmente, os sentimentos de dor e indignação. “Saber que quase tudo isso aconteceu mesmo é muito desesperador”, desabafou uma das professoras, visivelmente emocionada. Esgotados os comentários a partir da reportagem, pedi que lessem ou comentassem algum trecho marcante do livro. Nesse momento, foi possível observar os múltiplos pontos nos quais a obra tocou cada leitor. Do ponto de vista temático, a questão da maternidade e do próprio aspecto histórico, desconhecido pela maioria, foram os mais citados. Houve poucos comentários sobre a forma narrativa. Um deles, dizia respeito ao apreço pelas descrições, que não eram exageradas e ajudavam a imaginar um lugar desconhecido. Minhas falas iam na direção de ligar um comentário a outro, amplificando as vozes e, em alguns casos, eu também selecionava um trecho para ler, especialmente para destacar algum aspecto no discurso literário que havia me encantado. Essa escolha deve-se, sobretudo, a uma percepção, ali mesmo no momento, de que esse era o tipo de comentário menos frequente, já que a maioria das falas se detinham ao conteúdo da história e não à forma como era narrada.

A segunda parte do encontro foi mais curta. Lemos a contracapa de Harvey, de como me tornei invisível e todos puderam folhear. Uma das perguntas que surgiram imediatamente foi se o livro era ou não “uma história em quadrinhos”. Falamos sobre novelas gráficas e livros ilustrados e aproveitei para mostrar a todos os livros que havia selecionado da Casa do Professor, em sua maioria, novelas gráficas, desconhecidas por quase todos: Persépolis, Marjane Satrapi, Quadrinhos na Cia; Notas sobre Gaza, Joe Sacco, Quadrinhos na Cia; Nova York, Will Eisner, Quadrinhos na Cia; 1 real, Federico Delicado, Pulo do Gato, entre outros.

Além das novelas gráficas, em diálogo com Harvey, havia selecionado também alguns relatos autobiográficos, como o de Scholastique. Valorizar e divulgar o acervo da Casa do Professor foi bem importante, assim como ter a oportunidade de apresentar brevemente títulos como Quarto de despejo, Carolina Maria de Jesus, Ática; O diário de Zlata, Zlata Filipovic, Seguinte; As boas mulheres da China, Xinran, Companhia de Bolso; Os da minha rua, Ondjaki, Língua Geral.

O interesse em conhecer estes livros foi enorme e mais da metade do grupo levou dois livros – Harvey e alguma novela gráfico do acervo Casa do Professor. Um dos livros mais disputados, no entanto, foi Seu eu fechar meus olhos agora, de Edney Silvestre, Record, que deu origem a série que estava sendo gravada na cidade. Ninguém havia reparado nesse livro na Casa do Professor e quando encontrei os dois exemplares, logo imaginei que seriam os mais desejados. Dito e feito. E o planejamento do terceiro encontro do Clube de Leitura começava a se desenhar ali: por que tantos desejaram aquele livro? E os que leram, o que tinham a dizer? Conhecem outras obras literárias adaptadas para séries de TV? Quais? Auto da compadecida, de Ariano Suassuna? Grande Sertão: Veredas, João Guimarães Rosa?

Algum outro? Consideram esses livros citados um clássico? E Harvey, poderia se tornar uma série televisiva? Por quê? Perguntas, mais do que respostas, é o que compartilhamos nos Clubes de Leitura.

Selecionados pela equipe de Língua Portuguesa da instituição, as escolhas dos livros indicados para os Clubes de Leitura nas cidades onde atuamos são feitas com o cuidado de apresentar certa diversidade no que diz respeito ao tema, gênero, nacionalidade do autor. Os critérios de escolha dos livros que podem compor o acervo disponível para um trabalho com clube de leitura passam, inadvertidamente, por um percurso muito parecido com os critérios que pautam as múltiplas escolhas pessoais – e é importante que seja assim. Por não se tratar de uma atividade em que predominam fins pedagógicos ou didáticos, configurando-se antes de tudo como uma prática social, o clube de leitura, mesmo quando realizado como uma das ações em um projeto de formação de professores, precisa conservar o que tem de agregador no significado da palavra “clube”, aproximando-se, o máximo possível do que pode haver de comum entre a acepção dessa palavra e de uma outra que, a mim, parece ainda mais apropriada: comunidade.

Para abrir um atalho nesse já super-habitado lugar comum que se convencionou chamar “comunidade de leitores” pode-se recorrer a um conceito de comunidade trazido por Constantino Bértolo: “(…) A comunidade (que não é o mercado), é quem confere, nega ou questiona o discurso do autor. Na raiz da literatura está o pacto entre o autor e a comunidade a quem o discurso se remete (comunidade esta que é proprietária das palavras), e esse pacto, que cria responsabilidade tanto no autor como na comunidade é parte intrínseca, essencial, do ser da literatura.” É nesta concepção que diferencia, sobretudo, a comunidade de leitores, do mercado de consumidores, que se insere uma proposta como o Clube de Leitura. A diferença não se dá apenas pelo fato de os livros serem emprestados, lidos e depois devolvidos para que outros leitores, de novos municípios, possam ler. A mútua relação de compromisso proposta na ideia de um pacto entre o autor e a comunidade (e aqui Bértolo se refere, ainda, ao autor como “porta-voz” de uma determinada comunidade) cabe, em nosso, caso, duplamente: porque um pacto se estabelece entre os que participam espontaneamente do clube de leitura, podendo ou não levar um livro emprestado ao final do encontro e tendo igual liberdade de finalizar ou interromper a leitura até que chegue o encontro seguinte e podendo ou não compartilhar suas impressões acerca do que foi lido.

E como este artigo foi escrito a quatro mãos, encerro com a reflexão da minha parceira Alda Beraldo: Discutir uma produção literária provoca descobertas pessoais sobre assuntos em foco, esclarece conceitos, expõe preconceitos, revela e aflora nossa percepção sobre o ato criativo. Nos envolve esteticamente: como as palavras repercutiram em nós, como as imagens criadas pelo autor impactaram. E vamos aprendendo a reconhecer estilos – tudo assim, com olhar muitas vezes minucioso, porque em nós, como formadores, além do prazer da reunião, da troca de impressões, é prazeroso viver a leitura como “consciência literária”, de que fala Constantino Bértolo, em O banquete dos notáveis. Possibilita que compartilhemos o fenômeno da leitura em cada um de nós, nossas estratégias leitoras, nossos comportamentos de leitor – o que fomos antecipando, que relações estabelecemos com outras obras, como fomos avaliando a produção, como cada uma dialogou com nossa intimidade, com nossa ideologia. Em um clube de leitura, podemos estar atentos à maneira como a obra desperta nossa narração autobiográfica, nossa bagagem literária, sabendo que o julgamento da obra, depois de um encontro de leitura, não é definitivo, a memória do texto, como diz o mesmo Bértolo, continua “sendo lida para além do ato temporal e físico que representa terminar o texto e fechar o livro”. Como neste momento, em que podemos dizer do autor e de suas obras, quando escrevemos, por exemplo, sobre o quanto é expansivo, prazeroso e produtivo participar de um clube. De um Clube de leitura.

Os encontros foram gravados e estão disponíveis em:

Dom Casmurro
Perto do Coração Selvagem
1984


Imagem: Ilustração de Anna Cunha.


Referências Bibliográficas

BÉRTOLO, Constantino. O banquete dos notáveis. Trad.: Carolina Tarrío. São Paulo: Livros da Matriz, 2014, p.175.

CHAMBERS, Aidan, Conversaciones, Editorial: S.L. Fondo De Cultura Economica De España, p. 188.

PELLEJERO, Eduardo. “Justiça Poética – A literatura além do ponto final”. Caderno de Leituras. No 59. Belo Horizonte: Chão da Feira. Março de 2017.

Nota

  • 1
    Instituição ligada à Secretaria da Educação da cidade de Alto Alegre do Pindaré.

Compartilhe

Post Author

Autor

  • Alda Beraldo

    Formada em Letras (USP), especialização em alfabetização (IVC). Formadora da Comunidade Educativa CEDAC há 15 anos, atuando em vários Estados do Brasil presencialmente. Atua como formadora do curso a distância Itinerários Literários Virtuais, pela CE CEDAC. Participou da equipe de elaboração do material adaptado para o Brasil, Myra, juntos pela leitura – programa inspirado no Lecxcit – Leitura para o êxito escolar (Catalunha), parceria CE CEDAC e Fundação SM. Faz parte da equipe de apoio permanente da Revista Emília.

Artigos Relacionados

Algumas receitas existem

O espaço da criação e a criação do espaço

A formação do promotor de leitura

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *